‘Roteiro de leitura’ para o livro de Piketty

‘Roteiro de leitura’ para o livro de Piketty

Nicolau João Bakker


Deus nos fala através dos sinais dos tempos, diz-nos o documento conciliar Gaudium et Spes (36). Por isso, para todos nós, religiosos/as ou leigos/as, é importante saber “ler” nossa sociedade cada vez mais complexa, em especial sua “economia”, o “eixo” que faz girar todas as engrenagens. O Capital no Séc. XXI, de Thomas Piketty, é um livro que desafia tanto os da direita quanto os da esquerda. Para incentivar a leitura do livro apresentamos, a seguir, um pequeno “roteiro”, selecionando, a título de exemplo, apenas algumas das questões fundamentais que o livro aborda.

Questão 1: Da “renda nacional”, qual a parte que cabe ao trabalhador?

Piketty diz: “Por definição, a renda nacional mede o conjunto das rendas de que dispõem os residentes de um país ao longo de um ano” (p. 49)... “Renda nacional = renda do capital + renda do trabalho” (p. 51)... “Em termos práticos, a renda nacional de uns 30.000 euros por habitante em vigor nos países ricos se decompunha em aproximadamente 21.000 euros de renda do trabalho (70%) e 9.000 euros de renda do capital (30%)” (p. 58)... “O caso mais importante... é sem dúvida o da alta participação do capital durante as primeiras fases da Revolução Industrial (1800-1860). No Reino Unido, cujos dados são mais completos, os trabalhos históricos disponíveis... sugerem que a participação do capital se expandiu em dez pontos percentuais da renda nacional, passando de cerca de 35-40% ao fim do Séc. XVIII e no início do Séc. XIX para 45-50% em meados do Séc. XIX, momento em que o Manifesto Comunista era redigido” (p. 220).

O conceito de “renda nacional” é básico em análise de economia, pois permite indicar qual a parte que cabe ao trabalhador e qual ao capital. Os numerosos e riquíssimos gráficos de Piketty mostram a famosa “curva em U”: o capital era forte no Séc. XIX, decresceu na primeira metade do Séc. XX, e voltou a crescer com força na segunda metade do Séc. XX (especialmente com a onda neoliberal).

Questão 2: O “mercado livre” é anjo ou demônio?

Piketty dice: “Essa desigualdade fundamental, que denotarei como r > g, em que r é a taxa de remuneração do capital (isto é, o que rende, em média, o capital durante um ano, sob a forma de lucros, dividendos, juros, alugueis e outras rendas do capital, em porcentagem de seu valor) e g representa a taxa de crescimento (isto é, o crescimento anual da renda e da produção), desempenhará um papel essencial nesse livro. De certa maneira, ela resume a lógica de minhas conclusões” (p. 33)... “É importante ressaltar que a desigualdade fundamental, r > g, a principal força de divergência no meu estudo, não tem relação alguma com qualquer imperfeição do mercado... É possível imaginar que instituições e políticas públicas possam contrabalançar os efeitos dessa lógica implacável: por exemplo, a adoção de um imposto progressivo sobre o capital pode atuar sobre a desigualdade r > g, alinhando a remuneração do capital e o crescimento econômico” (p. 34).

Para Piketty, o mercado livre está mais para anjo. A falta de políticas públicas adequadas, contudo, o transformam em demônio.

Questão 3: Qual a marca principal do capitalismo atual?

Piketty diz: “Desde os anos 1970-1980, assiste-se a uma explosão sem precedentes da desigualdade da renda nos Estados Unidos. A parcela do décimo superior passou de 30-35% da renda nacional nos anos 1970 para cerca de 40-45% nos anos 2000-2010, uma alta de quase quinze pontos percentuais da renda nacional americana” (p. 287)... “Dos 15 pontos percentuais de renda nacional suplementar que foram absorvidos pelo décimo superior, em torno de 11 pontos - quase três quartos - foram arrebanhados pelo 1% (isto é, o grupo das rendas atuais superiores a 352.000 dólares em 2010), e a metade disso foi para o 0,1% (o grupo das rendas anuais acima de 1,5 milhão de dólares)” (p. 289)... “A nova desigualdade americana tem relação estreita com o advento de uma sociedade de ‘superexecutivos’” (p. 295)... “A parcela do milésimo superior (0,1%) passou de 2% a quase 10% da renda nacional” (p. 310)... “As ordens de grandeza obtidas para a parcela do centésimo superior na renda nacional nas nações pobres ou emergentes são, a princípio, extremamente próximas das observadas nos países ricos” (p. 318)... “A arrecadação fiscal hoje se tornou ou está a ponto de se tornar, regressiva no topo da hierarquia das rendas na maioria dos países” (p. 483).

Piketty atribui a decolagem dos “superexecutivos” ao surgimento das macroempresas modernas e ao “extremismo meritocrático”, sem nenhuma ligação lógica com aumento de produção, além da “enorme queda da taxa do imposto sobre a renda marginal superior nos países anglo-saxões a partir dos anos 1970-80” (p. 327).

Questão 4: Fazendo sua análise “do capital”, Marx errou ou acertou?

Piketty diz: “Marx rejeitou a hipótese de que o progresso tecnológico pudesse ser duradouro e de que a produtividade fosse capaz de crescer de modo contínuo - duas forças que poderiam, em alguma medida, se contrapor ao processo de acumulação e concentração do capital privado. Sem dúvida, faltavam-lhe dados estatísticos para refinar suas posições... O princípio de acumulação infinita proposto por ele contém uma noção fundamental, tão válida para a análise do Séc. XXI como foi para a do Séc. XIX” (p. 17-18).

Não valem as placas de “aprovado” ou “desaprovado” nem para o capitalismo, nem para o marxismo. Tudo depende do foco em discussão. As generalizações são demasiadamente comuns, também na Igreja. Marx foi o ícone do passado, Piketty é o ícone do presente.

Questão 5: Fazendo sua análise “do Capital”, Piketty traz algo novo?

Piketty diz: “A lição geral de minha pesquisa é que a evolução dinâmica de uma economia de mercado e de propriedade privada, deixada à sua própria sorte, contém forças de convergência importantes, ligadas sobretudo à difusão do conhecimento e das qualificações, mas também forças de divergência vigorosas e potencialmente ameaçadoras para nossas sociedades democráticas e para os valores de justiça social sobre os quais elas se fundam... A melhor solução é o imposto progressivo anual sobre o capital. Com ele, é possível evitar a espiral desigualadora sem fim e ao mesmo tempo preservar as forças de concorrência e os incentivos para que novas acumulações primitivas se produzam sem cessar” (p. 555-556)... “O imposto progressivo exprime, de certa forma, um compromisso ideal entre justiça social e liberdade individual” (p. 492).

A proposta de um imposto progressivo sobre o capital, como complemento aos impostos sobre a renda e a herança, não elimina o sistema capitalista, mas inova no sentido de impedir a “acumulação infinita” que faz parte de seu DNA.

Questão 6: No sistema capitalista, os salários são sempre achatados?

Piketty diz: “Na Europa Ocidental, na América do Norte e no Japão, a renda média passou de pouco mais de 100 euros por mês e por habitante em 1700 para mais de 2.500 euros por mês em 2012, multiplicando-se em mais de vinte vezes. Na realidade, a expansão da produtividade, ou seja, da produção por hora trabalhada, foi ainda mais elevada... O poder de compra médio em vigor no Velho Continente quase não mudou entre 1700 e 1820, depois mais do que dobrou entre 1820 e 1913 e, por fim, aumentou mais de seis vezes entre 1913 e 2012” (p. 90).

Cuidado com este “médio” do poder de compra. As médias escondem grandes disparidades. Todos ganharam, mas alguns bem mais que os outros.

Questão 7: O abismo entre países ricos e pobres continua crescendo?

Piketty diz: “A participação dos países ricos (...) na renda global (mundial) alcança 46% em 2012 se usarmos a paridade de poder de compra, contra 57% se utilizarmos as taxas de câmbio nominais... A participação dos países ricos na renda global tem diminuído de forma sistemática desde os anos 1970-1980. Qualquer que seja a medida utilizada, o mundo parece ter entrado numa fase de convergência entre países ricos e pobres” (p. 72)... “A experiência histórica sugere que o principal mecanismo que permite a convergência entre países é a difusão do conhecimento, tanto no âmbito internacional quanto no doméstico” (p. 75)... “A parcela do milésimo superior (do mundo) atualmente parece estar próxima de 20% do patrimônio total, a do centésimo superior, perto de 50% do patrimônio total, e a do décimo superior, entre 80 e 90%; a metade inferior da população mundial possui, sem dúvida, menos de 5% do patrimônio total” (p. 427).

Os países ricos e pobres continuam se distanciando uns dos outros, mas o ritmo está diminuindo. O gráfico 1.3 de Piketty mostra a desigualdade mundial de 1700 a 2012. Adotando a média mundial como 100%, o hiato aproximado é de: 140%/90% (do PIB por habitante) em 1700; 220%/37% em 1950; 245%/45% em 1990, e 225%/61% em 2012 (p. 66).

P.S.: (Análise muito mais completa sairá em breve numa revista de circulação nacional).

 

Nicolau João Bakker

Diadema, SP, Brasil