200 anos que preparam outro projeto de sociedade

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Juan Luis Hernández Avendaño


Faz 200 anos que o México se chamava a Nueva España e durante três séculos sofreu o colonialismo e a escavadura. Para a maioria da população, isso era normal e não podia ser de outro modo. O espanhol era o senhor; os demais, seus servos. Dois curas de aldeia, Miguel Hidalgo e José María Morelos, com o estandarte da Virgem de Guadalupe à frente, gritaram que a realidade poderia ser diferente. Iniciaram a luta pela Independência, quer dizer, a luta para que o povo fosse sujeito de sua própria história, para que, dono de sua liberdade, se governasse a si mesmo, para que houvesse um projeto de vida para o máximo possível.

Hidalgo e Morelos foram excomungados e seus inimigos conseguiram ver suas cabeças dependuradas para servir de lição aos demais. Contudo, a semente estava lançada e o México viu a luz como nação independente em 1821. A independência foi possível pela força social do povo. Mas esse anseio de liberdade e justiça para os pobres, para as maiorias dos excluídos, para os sem-terra, se estendeu por todo o Continente. No Caribe, na América Central, e na América do Sul grandes homens e mulheres forjaram Independências, lutaram para terem direitos e, sobretudo, para tornar as nações livres.

O que é uma nação? Uma nação é «o coletivo», o «nós» que se une após um sonho, de uma utopia, de uma luta. Faz duzentos anos as Independências na América Latina quiseram construir esse Nós que hoje chamamos de Pátria Grande, nossa América mestiça e indígena. Hoje, de que queremos nos tornar independentes? Faz duzentos anos as Independências foram basicamente políticas. Hoje, que tipo de Independências queremos para nossos povos?

Faz duzentos anos o conquistador se apossava das riquezas de nossa terra, tinha nossos antepassados como escravos e não acreditava que todos fôssemos filhos de Deus, filhos do mesmo Pai que deseja a igualdade e a fraternidade entre todos. Hoje, que lutas de Independência deverá haver para resistir, mas, sobretudo, para lutar por um novo projeto de sociedade?

Neste ano em que celebramos o bicentenário do grito de Independência mexicano, podemos recuperar esse espírito libertário, identificando os novos gritos de Independência do século XXI. Esses gritos poderiam ser:

a) Independência do capitalismo, voraz essencialmente não solidário e antifraterno. Hoje a força social do povo, o «Nós» da América Latina tem no capitalismo e em seus seguidores neoliberais um conquistador que se nega a dar vida aos fracos enquanto insiste em gerar cada vez mais pobres. É preciso lançar o grito de Independência contra o capitalismo, modelo econômico que tem no egoísmo e na avareza seus principais regentes. O grito de Independência é fomentar e incrementar as redes de comércio justo, as trocas e os intercâmbios de bens e produtos, o apoio das diferentes formas de economia social e solidária, o fomento de uma economia baseada no desenvolvimento sustentável e na austeridade como modo de vida.

b) Independência das multinacionais, «rapaces», exploradoras e inumanas. Os conquistadores de hoje vêm com nomes de marcas, querem levar os muitos recursos que têm nossa terra mestiça e indígena. Hoje o grito de Independência é contra a depredação das multinacionais. A luta para ter a terra continua sendo um dos fatores mais importantes que dá Independência. Quando o povo tem a terra é livre e independente.

c) Independência do colonialismo tecnológico e cultural. Nossa América Latina é enormemente rica em cultura, identidade, tradições, solidariedades, expressões simbólicas, artes, história. Contudo, nossa região está sempre inundada de novas tecnologias e propostas culturais, principalmente dos Estados Unidos que buscam basicamente consumidores, que contam o êxito no ter e não em ser para os outros, que desenvolvem espiritualidades superficiais, que fazem indivíduos e não pessoas, autistas e não comprometidos sociais. Hoje o grito de Independência é para fortalecer nossa identidade mestiça e indígena, para tornar possível um projeto de sociedade a partir dos interesses e a cultura de nossas comunidades, nossos bairros, nossas nações.

Pensemos em nossas comunidades, grupos, -associações e movimentos. Que outras Independências necessitamos encabeçar há duzentos anos daquelas primeiras lutas que nos herdaram Hidalgo e Morelos, Bolívar, San Martín e tantos desconhecidos que acreditaram que uma Pátria Grande seria possível, que derrubaram as mentalidades que pensavam que não era possível expulsar o conquistador, que venceram o medo de enfrentar a Inquisição e suas torturas, que animaram a outros em sua esperança para ter um projeto de sociedade diferente da que então dominava? Faz duzentos anos que os libertadores conhecidos e não conhecidos pensaram que outro mundo era possível e construíram as Independências. Hoje sigamos as pegadas de nossos libertadores e conquistemos nossas Independências. Com a força social do povo é possível.

Mas também neste ano de 2010 celebramos os cem anos da Revolução Mexicana, acontecimento que deitou por terra uma ditadura de 33 anos, que fez da Constituição de 1917 a primeira a garantir direitos sociais a trabalhadores e camponeses, que fez de Emiliano Zapata e Pancho Villa representantes do povo que não quiseram o poder e terminaram atraiçoados pelos que somente queriam poder.

A Revolução Mexicana é Zapata dizendo: «A terra é de quem a trabalha» e erguendo o lema «Terra e Liberdade». A Revolução é um milhão de mortos que se levantaram contra os caciques, fazendeiros e latifundiários que, uma vez mais, eram os donos absolutos da terra. A Revolução é ver Flores Magón impulsionando o direito à greve e a uma jornada de trabalho de oito horas diárias. A Revolução é o grito de «votação efetiva, não reeleição». A Revolução é ver os de baixo mudando as regras injustas da sociedade de então, é ver os de baixo sendo protagonistas na construção de um novo projeto de sociedade.

Faz cem anos que os de baixo fizeram a Revolução. Hoje quem está fazendo novas Revoluções? Que novas Revoluções se deverão fazer? Que novas Revoluções é preciso lançar para esse século XXI? Talvez possamos identificar duas coisas importantes:

a) A Revolução contra o governo dos piores. As democracias que chegaram a nossos países logo nas ditaduras estão degenerando em governos municipais, regionais e nacionais de políticos corruptos, gângsters, narcotraficantes. Políticos que não têm a mínima noção do interesse comum e que somente veem o governo como presa de guerra para repartir entre sua família e seus amigos. É preciso fazer a Revolução para que a política seja revalorizada, a luta cívica e cidadã seja revitalizada, e que seja o povo quem verdadeiramente governe, seja com seu contrapeso organizado, com o controle e o seguimento da agenda pública, com a mobilização popular, com a resistência ativa na criação de projetos alternativos.

b) A Revolução contra a apatia e a desesperança. Às vezes parece que o eixo do mal, quer dizer, a impunidade, a violência, o consumismo, o saque, a exploração de pessoas não tem fim e é mais forte que nós. Vemos com frequência que nossos vizinhos, amigos ou irmãos se cansam, se afastam, se desesperam de tanta ignomínia, de tanta apatia social. É justo então que façamos a Revolução. Não há nada mais revolucionário que tentá-lo uma vez mais, justamente quando tudo se tentou. O ser humano é o único que pode voltar a começar, quando fracassado anteriormente. A Revolução contra a apatia e a desesperança é fundamental em tempos em que lutar, resistir, criar projetos de vida ou é de loucos ou é de minorias escandalosas. Façamos a Revolução do dia a dia, onde se joga minuto a minuto nossa força física e anímica, nosso elã ou nosso desânimo.

Que novas Revoluções se identificam a partir de nossa experiência local? A duzentos anos das lutas de Independência e a cem da Revolução Mexicana parece que nossa Pátria Grande, nossa América Latina, está urgindo novas Independências e novas Revoluções. Para os sinais dos tempos atuais, essas lutas estão em três trincheiras. Na trincheira política é imprescindível o protagonismo do povo, seja como cidadãos ou como «eu coletivo». Requer-se mais o povo das ruas, apropriando-se da vida pública. A segunda trincheira e o fomento do diálogo e a cultura da paz diante da violência que se aninha como câncer em nossas sociedades. A violência é cada vez mais «útil» para muitos setores sociais. Será fundamental trabalhar pela paz e pela construção de acordos diferentes. Finalmente, mais uma trincheira poderá ser o trabalho cotidiano para repartir a riqueza que tenhamos, muita ou pouca. «Não ajuntar mas distribuir» poderia ser um lema para continuar fomentando a solidariedade e uma melhor repartição do escasso na região mais desigual do mundo, que é nossa Pátria Grande.

Independência e Revolução. Sonhos sociais que se deverá seguir estimulando para construir outra sociedade, com possibilidades de oferecer vida em abundância, particularmente aos mais humildes.

 

Juan Luis Hernández Avendaño

Universidade Ibero-Americanca de Puebla, México