2017: 500 anos da Reforma

2017: 500 anos da Reforma

Magali do nascimento cunha


Já existe uma contagem regressiva até 2017, quando serão lembrados os 500 anos de um movimento religioso que deixou marcas no mundo: a Reforma Protestante; 31 de outubro é o dia em que se celebra o ápice desse movimento, nascido europeu, e que propôs novas formas de viver a fé cristã a partir de um protesto. Uma posição, principalmente, contra a forma como a Igreja predominante na época, a Católica Romana, colocava condições para fiéis encontrarem perdão para os seus pecados e estimulava a prática de penitências associada ao elemento financeiro. Do protesto emergiram reflexões de fé de personagens como o alemão Martinho Lutero, o mais destacado, além do escocês John Knox, do francês Jean Calvin, do suíço Ulrich Zwingli e do alemão Thomas Müntzer, este um líder dos sem-terra da época, entre outros. Daí nasceram as diferentes tradições chamadas protestantes (luteranas, presbiterianas, metodistas, batistas).

Bases comuns

Mesmo com toda a diversidade desses grupos, é possível identificar bases comuns. A base que representa a maior herança da reforma, em especial aquela pregada por Martino Lutero, é a radicalidade da graça. A graça de Deus é compreendida como o fundamento da vida e da fé e sentido da redenção do ser humano: a salvação se dá pela graça, ou seja, o perdão de pecados é resultado do amor incondicional de Deus, e para alcançá-lo é preciso ter fé. A Bíblia emerge nesta compreensão como fundamento para a fé e a vida que residem na graça de Deus. A herança está assentada nas cinco frases em latim que sintetizam o sentido da Reforma Protestante: Sola Gratia (somente a Graça), Solus Christus (somente Cristo), Sola Scriptura (somente a Escritura), Sola Fide (somente a Fé) e Soli Deo Gloria (glória somente a Deus). Todos estes cinco princípios representam protesto e oposição aos ensinamentos da Igreja Romana, que teria monopolizado os atributos de Deus e os transferido para a Igreja e sua hierarquia, especialmente para o Papa.

Desses princípios deriva um outro, também importante, que é o do sacerdócio universal de todos os crentes - um questionamento do clericalismo e uma valorização do lugar dos fiéis no propósito missionário do Senhor da Igreja. Com isso, os diferentes grupos protestantes empreenderam uma popularização da leitura bíblica, bem como a ampla atuação e liderança dos leigos (os não ordenados). Consequência direta desse posicionamento foi a tradução da Bíblia, por Lutero, para a “língua vulgar”, o alemão, o que transformou radicalmente a relação dos fiéis com ela e abriu caminho para a livre interpretação do texto bíblico.

Uma postura

Ao escrever sobre o “princípio protestante”, o teólogo luterano alemão do século XX Paul Tillich reconheceu que é própria do cristianismo, à luz da postura do Cristo, a dimensão profética, contestatória, protestante. Para o teólogo a Reforma significou a encarnação desse princípio; uma volta às origens do ser cristão. No entanto, vale ressaltar que Tillich reconheceu que esse espírito não é propriedade exclusiva de qualquer grupo religioso, podendo se manifestar em diferentes formas religiosas, culturais e políticas.

Ocorreu que, no desenrolar do processo, a aliança dos reformadores com príncipes, latifundiários e burgueses pré-capitalistas comprometeu o caráter profético do movimento. Isto reforça o fato de o “princípio protestante” poder ser levado adiante por distintos grupos, como foi o caso dos camponeses, com Thomas Müntzer, que pagaram com a vida o preço do compromisso de fé. Dimensão que levou estudiosos, como o sociólogo Max Weber, a estudar a relação entre a ética protestante e o espírito do capitalismo.

De qualquer forma, foram as bases teológicas que moldaram as doutrinas das diferentes confissões protestantes que se constituíram na Europa e nos Estados Unidos e, mais tarde (a partir do século XVII), se expandiram por todos os continentes, por meio dos esforços missionários. E foi assim que esses segmentos cristãos chegaram à América Latina há quase dois séculos e sofreram muitas transformações, em especial com a chegada dos pentecostais, décadas depois. A identidade “protestante” nunca foi bem afirmada por boa parte desses grupos, que sempre optaram por se denominar “evangélicos”, reforçando disputas religiosas com o catolicismo romano que povoava o continente desde a colonização ibérica. Lamentavelmente, a história explica que a inserção protestante na América Latina se deu, de forma predominante, na perspectiva sectária, para se diferenciarem dos católicos, colocando-se como detentores “do verdadeiro Evangelho”.

Na América Latina

Em nossos dias, o segmento é tão amplo e diverso, com uma presença tão significativa e crescente no continente, que é tarefa difícil nomeá-lo, explicá-lo e agrupá-lo por afinidade. Em tese, teriam raiz comum: a Reforma Protestante e seus movimentos originários. A expressão “em tese” é usada aqui porque levando-se em conta as transformações ocorridas na teologia e no jeito de ser de boa parte dos evangélicos latino-americanos, muito pouco ou quase nada foi herdado da Reforma. Isso pode ser identificado em muitas práticas predominantes. Pregações e cânticos, por exemplo, há muito não enfatizam o amor incondicional de Deus. Pelo contrário, seu conteúdo realça um Deus que age condicionado às ações humanas: pela quantidade das orações, pelo sacrifício que se deve fazer para alcançar as bênçãos (seja por meio de obrigações religiosas ou de ofertas financeiras), como no tempo das indulgências. O poder e o controle dos líderes religiosos têm sufocado a voz e a ação dos leigos. A leitura fundamentalista, descontextualizada, tem tornado a Bíblia um livro estéril. Desaparece aí o protestantismo na sua razão de ser.

No entanto, precisamos fazer justiça e recordar as sementes do jeito protestante de viver a fé na história. Com os evangélicos que alfabetizaram tantos latino-americanos por meio da leitura da Bíblia. Com aqueles que pagaram com suas vidas o compromisso com a justiça, povoando as prisões das ditaduras militares, resistindo às torturas, enfrentando a morte ou o exílio. Com quem cultua, em comunidade, o Deus da graça e da vida. Com quem busca forças para viver em vários esforços de solidariedade com empobrecidos, dependentes químicos, presos, vítimas de violência. Como há protestantes nessas frentes!

Na esperança ecumênica

Recordar os 500 anos da Reforma Protestante é também uma oportunidade de avaliar a raiz dos tantos rompimentos entre os cristãos e o escândalo das divisões. E aqui temos uma chance de reconhecer a causa da unidade e as tantas iniciativas que envolveram diálogo e cooperação que, nesses cinco séculos de história, significam a não conformação com a separação, a intolerância e a competição que mutilam o corpo de Cristo. Ocasião para reafirmar. Essas ações se deram no campo da ação missionária, da reflexão teológica, da disseminação do texto bíblico, da educação cristã, da ação social, e representaram a gênese, na passagem do século XIX para o século XX, do que hoje denominamos “movimento ecumênico”.

Ressaltar o que une, mais do que o que divide, e testemunhar a unidade visível do corpo de Cristo num mundo tão marcado por rupturas e divisões, é a vocação do movimento ecumênico, que encontra expressões concretas em diálogos bi e multilaterais entre as confissões de fé, em organismos associativos e em organizações de serviço e promoção da vida.

Resultado deste processo foi a célebre Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação, assinada, em 1999, por representantes da Igreja Católica Romana e da Federação Luterana Mundial, em Augsburg, na Alemanha. Naquela cidade, em 1530, os seguidores de Lutero, convocados pelo rei alemão Carlos V, assinaram uma declaração de fé que rompia com a Igreja romana e enfatizava a doutrina da salvação pela graça. Na passagem para o século XXI, católicos e luteranos registraram, pela Declaração Conjunta, que estão de acordo sobre as verdades básicas relativas à doutrina da justificação pela fé, um dos pilares da Reforma Protestante. Este foi um passo importante, um testemunho de que o diálogo e a cooperação são possíveis, sem desconhecer que ainda é preciso trabalhar outros aspectos antes de se alcançar um acordo total entre luteranos e católicos sobre o significado do evangelho da justificação na vida da Igreja.

A Igreja Católica e a Federação Luterana Mundial assumem que a Declaração Conjunta não é o objetivo final, mas um importante passo na peregrinação comum para a completa unidade visível. É um testemunho e um estímulo para novas ações que envolvam outras confissões cristãs, na esperança ecumênica.

Vale concluir recordando um dos princípios da Reforma Protestante que não mencionei: “Igreja reformada está sempre se reformando”. Essa visão dinâmica não deve ser exclusiva dos que se identificam como evangélicos. Serve para as igrejas em geral. Serve para as demais religiões. Serve para a revisão da vida nos seus muitos sentidos. Por isso, todas as pessoas, de alguma forma, podem ser protestantes.

 

Magali do nascimento cunha

Assessora do Conselho Mundial de Igrejas, São Paulo, SP, Brasil