A cultura periférica no centro da resistência política

 

Renato Almeida

O mundo todo vem se tornando cada vez mais urbano e, no Brasil, essa realidade não é diferente. Com o crescimento das grandes e médias cidades no país nas últimas décadas, diversos bairros bem distantes das regiões centrais se formaram ou se ampliaram significativamente. Na maioria dos casos, esses bairros tiveram um crescimento populacional acentuado combinado com uma precária oferta de serviços públicos e graves problemas de infraestrutura urbana e, geralmente, são conhecidos pelos altos índices de violência e criminalidade. O conjunto desses bairros mais precarizados e distantes do centro é comumente chamado de Periferia.

Em São Paulo, o arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, ainda no início dos anos 1970, lançou a Operação Periferia, fazendo com que a Igreja, profeticamente, se comprometesse com os desafios vivenciados nas regiões mais empobrecidas da metrópole. O resultado foi o abundante florescimento das Comunidades Eclesiais de Base nas décadas de 1970 e 1980, celeiro de importantes movimentos sociais. Isso ocorreu em diversas outras cidades do país, de Porto Alegre a Manaus.

Mesmo que o uso da palavra “periferia” já remetia a certa ideia de resistência política desde o período da redemocratização, para a maioria dos seus moradores (até os anos 1990) havia certa vergonha em se assumir como “periférico”, sobretudo, para os mais jovens. Geralmente, ocultavam os seus locais de moradia por conta do pesado preconceito que sofriam no trabalho ou nos espaços de lazer das regiões centrais. Essa situação começa a se alterar ainda na mesma década de 1990, tendo as letras e a sonoridade do rap como principais protagonistas desta mudança. Os bairros periféricos passam a ficar famosos não mais por conta do noticiário policial, mas por aparecerem nas letras das músicas cantadas por toda uma geração juvenil, inclusive por jovens que não moravam em periferias.

A explosão do rap na virada do milênio abriu caminho para o surgimento de um forte movimento cultural nos anos 2000. O movimento de cultura (ou da arte) periférica passa a ganhar cada vez mais força nas grandes cidades, extrapolando esse estilo musical e atingindo diferentes linguagens artísticas. Por serem constituídas, em sua maioria, por pessoas negras, descendentes de indígenas e por migrantes ou filhos de migrantes, as periferias possuem uma rica e diversa identidade cultural. E toda essa diversidade é combustível para a produção da arte de periferia. Escritores e moradores de bairros periféricos passam a fazer saraus em praças, bares e diferentes espaços públicos. Jovens cineastas passam a produzir vídeos com baixos recursos (e com alta qualidade!) que tratam das suas vivências, das suas realidades. Grupos e comunidades urbanas passam a resgatar expressões rurais da cultura popular que há tempos não se praticavam... Uma gama bastante ampla de formas artísticas é experimentada e reinventada no cotidiano da vida periférica por uma imensidão de coletivos juvenis que brotam dos becos, escadões e vielas.

Essas expressões culturais ganham muita força na virada da primeira para a segunda década do milênio também porque vão encontrar no país um poder público tentando formular uma noção de cidadania cultural. Havia todo um esforço por parte dos agentes públicos (no governo federal e em algumas cidades) de criar políticas culturais que pudessem promover a diversidade artístico-cultural e fomentar ações produzidas pelas comunidades e coletivos historicamente alijados do orçamento público. Diferentes editais, políticas de fomento, bolsas, etc., contribuíram para que a produção cultural das periferias ganhasse maior visibilidade e força política.

No entanto, a novidade trazida pela produção cultural periférica não está tão somente na forma artística, mas também (e sobretudo!) no seu conteúdo. Trata-se de uma estética totalmente encarnada em uma ética. A arte periférica é uma arte de resistência política. Ela não é chamada de “periférica” simplesmente porque seus criadores moram na periferia. Mas porque a mensagem que essa produção cultural carrega tem compromisso com a melhoria e mudança dessa realidade a qual se vive. Não por acaso, os temas da violência policial e do racismo institucional são conteúdos fundamentais desse tipo de arte. Desde o vídeo passado no campo de futebol à poesia lida no boteco, a denúncia do genocídio dos jovens negros nas periferias é um dos temas centrais desse tipo de produção artística.

A identidade cultural afro-brasileira, as matrizes indígenas, as expressões das culturas nordestinas, o respeito à ancestralidade e aos saberes da vida rural, a busca por maior equidade de gênero, a denúncia das desigualdades entre as classes sociais, a luta de enfrentamento ao racismo, o combate à homofobia, o direito à cidade, o direito à existência, etc., são todos conteúdos dessa arte que vem brotando nas favelas e periferias do Brasil. A palavra periferia vem assumindo um sentido político de resistência não somente ao “centro da cidade”, mas ao centro do poder e ao centro de qualquer padronização cultural. O movimento de arte periférica é herdeiro do movimento negro, do movimento de mulheres, do movimento LGBT, do movimento de Direitos Humanos, das CEBs... Todas as bandeiras que esses movimentos carregavam e carregam possuem fortes elementos culturais que se contrapõem a uma padronização de “ser humano” imposta por nossa herança colonial. É periférica a pessoa e o coletivo que, além de ser oriundo da periferia, se posiciona contra o padrão de sociedade branca, heteronormativa, burguesa e violenta.

E na medida em que a cultura periférica passou a ganhar força no país em um cenário de maior avanço das políticas sociais (em fins da primeira década do milênio e início da segunda), os temas que ela mobilizou também tiveram maior notoriedade e suscitaram debates e aguçadas polêmicas. No conjunto da sociedade, ampliou-se a denúncia à violência e letalidade da polícia. O Estado se viu obrigado a rever posturas e a criar órgãos de fiscalização e controle. As práticas de racismo, homofobia e sexismo - muito comuns na história do Brasil - passaram a receber duras críticas. Obviamente, a cultura periférica não é a única força responsável por essas mudanças e questionamentos públicos. Mas, por ser herdeira dos movimentos que historicamente trataram dessas questões e por ter ganhado tamanha notoriedade nos últimos tempos, a arte de periferia assumiu um papel catalizador de representação simbólica dessas lutas. A geração juvenil que produz e consome essa cultura periférica se reconhece mais preta, mais feminista, mais lésbica, mais gay, mais trans, mais diversa que qualquer outra geração jovem que o país já teve em sua história.

Em uma sociedade altamente hierarquizada, desigual, patriarcal e racista como o Brasil, a reação das camadas ricas e médias a toda essa força da cultura periférica veio em forma de fascismo. Em nome da “moral e dos bons costumes”, as elites fizeram aliança com os militares, com as milícias e com os evangélicos mais conservadores (para alcançar uma parte significativa da população mais pobre) e elegeram Bolsonaro para presidente. Além das contrarreformas que prejudicam diretamente a vida dos trabalhadores; do desrespeito às políticas de proteção ao meio ambiente; e, da subserviência aos interesses norte-americanos; o governo Bolsonaro pretende travar uma espécie de “Cruzada” contra os valores culturais que estariam “dividindo” o país entre brancos e pretos e “desviando” a sociedade do seu caminho. Não é à toa que os filhos do capitão querem acabar de todo modo com o “marxismo cultural” que dizem ser muito forte no Brasil. Esses ataques do governo encontram na arte de periferia seu alvo fundamental já que essa arte se caracteriza pela denúncia às desigualdades e opressões.

Ao mesmo tempo em que parte significativa do país elege pelas vias democráticas um tosco presidente autoritário, contraditoriamente, para o parlamento foram eleitas mulheres pretas transexuais moradoras de favelas e de periferias e experiências inovadoras de mandatos coletivos. Ou seja, há um acirramento radical de valores e posturas políticas antagônicas no interior da sociedade brasileira. Aliás, o que parece é que isso está presente em boa parte das sociedades latino-americanas e no mundo. A luta de classes também se dá no campo simbólico. A arte de periferia é alvo do governo exatamente porque é uma das principais formas de unificação simbólica da classe trabalhadora. Nesse contexto, a cultura periférica passou a ocupar o centro do debate político e da resistência ao fascismo no Brasil.