A EDUCAÇÃO POPULAR, ENREDADA, NO PRESENTE E NO FUTURO
Claudia Korol
Muitas vezes, nas experiências de educação popular, nos perguntamos sobre os
desafios produzidos pela irrupção de profundas e vertiginosas mudanças científicas e
tecnológicas que tendem a individualizar e a alienar a experiência da vida – inclusive a da
sobrevivência. Procuramos interpretar como se modificam as subjetividades, e de que
maneiras as políticas do poder agem para desinformar, aterrorizar, manipular, atenuar, cooptar e controlar as possíveis desobediências perante regimes cada dia mais autoritários e
repressores, que se servem da multiplicação de seres humanos isolados, narcisistas,
consumistas, apáticos.
Como educadoras e educadores populares, nos colocamos longe das posições que se
entretêm com a queixa, o lamento, a nostalgia de outros tempos, ou que se paralisam diante
dessas mudanças, gerindo refúgios em lugares de conforto, que oscilam entre a repetição
dogmática do que foi aprendido e a mera aposta no mundo virtual. Questionamos o
deslocamento do conflito social, da vida cotidiana dos povos para as lógicas das redes, como
se estas fossem o lugar privilegiado do protesto, da crítica e inclusive da gestão sentimental.
Embora o mundo virtual seja um território poderoso para a legitimação de ideias que
se tornam força material quando assumidas por amplas frente da sociedade, substituir o
encontro físico e espiritual entre as pessoas, com seus conflitos, tensões, afetos... pelo diálogo
mediado por máquinas nos conduz a terrenos dominados plenamente pelo capital, onde cada
"ideia" dominante conta com patrocinadores e é respaldada pelo "deus dinheiro" que a
financia e expande. As pessoas que não acessam esses meios são expulsas para as zonas de
exclusão, de invisibilidade, de onde regressam mediante sua irrupção massiva, plebeia, que
desordena os cálculos do poder.
Setores comprometidos da academia e ativistas sociais estudaram os modos com que
as tecnologias aplicadas à informática, à comunicação, à biotecnologia, à genética,
controladas pelo poder transnacional, patriarcal, recolonizador, atuam para desarticular
movimentos coletivos, fragmentar grupos, controlar corpos, criando uma esperança de
transformações estritamente individualista e gerando descrença na possibilidade de mudanças
sociais da realidade.
As revoluções passam a um terreno imaginário no ciberespaço, onde as lutas pela
informação e contrainformação se dirimem entre hackers, crackers, que procuram contribuir
com os povos, e cyber especialistas, com seus exércitos de trolls, que agem de acordo com a
lógica das corporações e dos governos opressores.
Na educação popular, vemos como desafio socializar os saberes que permitiriam uma
intervenção massiva, de povo organizado, em redes, comunicações, e na disputa de saberes.
Se é evidente que uma das dimensões da guerra é virtual, esta não pode ficar submetida à
vontade de "especialistas", por mais companheiros/companheiras que sejam. Precisamos gerar estratégias coletivas para reconhecer os modos de intervenção dessas tecnologias, pensá-las criticamente, recriá-las para que sejam incorporadas pelos movimentos populares, não como donativo dos eleitos, mas como ação sistemática daqueles e daquelas que se organizam na luta revolucionária.
A educação popular está desafiada a refazer seus modos de ação, combinando, de
maneira criativa, a pedagogia do mundo "do real" com a pedagogia do mundo "virtual". Nessa
tensão temos que colocar o mundo real, as relações sociais de poder, de opressão e de
insubordinação frente às dominações e à historicidade, como fundamento dos processos
sociais. Precisamos questionar as lógicas pós-modernas baseadas no deslumbramento diante
do instantâneo, do efêmero, do fragmentário, o "acontecimento" a-histórico. As emoções, as
reflexões, os desejos transitam entre esses dois mundos, mas se constituem a partir dos nossos corpos, no corre-corre cotidiano do esforço para viver.
No "Encontro de Mulheres que Lutam", realizado em Chiapas, chegou-se a um acordo
simples e contundente: "decidimos viver". Em um continente marcado por sucessivos
genocídios, feminicídios, etnocídios, o acordo multiplicou-se entre mulheres hétero, lésbicas,
trans, travestis do Abya Yala[1].
Mas a decisão de viver não pode ser concretizada virtualmente. Precisamos garantir
direitos elementares como o de nos alimentar, trabalhar, estudar, ter uma moradia digna,
autonomia, liberdade. Em tempos nos quais as políticas do poder arrasam com esses direitos,
torna-se mais necessário que nunca reinventá-los, a partir da organização popular. Os
mutirões campesinos na Colômbia, os acampamentos do Movimento Sem-Terra no Brasil, as
experiências de soberania alimentar do movimento campesino, os Caracóis Zapatistas, as
Missões Bolivarianas na Venezuela, o povo cubano em revolução, os piquetes, ollas[2],
refeitórios, bacharelatos populares na Argentina, a vida comunitária dos povos originários e
suas lutas por terra e território, as fábricas sem patrões, a organização das comunidades
quilombolas e negras cuja base é a liberdade, as redes de rádios comunitárias, os coletivos
feministas que enfrentam a violência e geram saberes sanativos, as lutas por identidade e
direitos de associações de lésbicas, trans, travestis, são apenas algumas das muitas
experiências nas quais são reinventadas a alimentação, a saúde, a educação, o trabalho, a autodefesa, a segurança coletiva, em bases comunitárias e populares.
Olhar-se nos olhos, abraçar-se, apoiar-se para enfrentar a dor e a desesperança,
caminhar de mãos dadas quando tudo parece desmoronar, organizar-se, é o que permite
entender que as revoluções sociais fazem parte de um horizonte desejável e possível de ser
reinventado quantas vezes for necessário.
O desafio da educação popular, nesse contexto, continua sendo o de contribuir para
criar a força organizada para revolucionar o mundo. Isso exige que planejemos,
simultaneamente, todas as batalhas, inclusive as que têm a ver com o domínio dos
conhecimentos científicos e das novas tecnologias.
A ciência e técnica hegemônicas estão hoje semeando a morte e justificando a
destruição da natureza e dos povos, que fazemos parte dela. Quanto à ciência dominante, está
subjugada, e somente se deixa reconhecer através das tecnologias que ela produz para o lucro.
Mas a luta revolucionária não pode prescindir dos conhecimentos técnico-científicos. Por
isso, precisamos valorizar, com o exemplo de Andrés Carrasco e de muitas outras
companheiras e companheiros, a experiência política da Ciência Digna, uma forma de ciência
que não está a serviço do lucro nem das transnacionais, e que reconhece uma diversidade de
saberes e aproximações às tecnologias, a partir das necessidades reais dos povos, em
harmonia com a natureza e o meio ambiente. Ciência que enfrenta não somente a exploração
capitalista, a agressão imperialista, a opressão racista e colonial, a dominação heteropatriarcal, mas também uma verdadeira guerra que quer nos submeter ao dogma da
tecnociência capitalista, que abarca todas essas dimensões. O diálogo entre os saberes
acadêmicos e os populares é crucial, e esta é uma contribuição que a educação popular pode
realizar, de modo sistemático.
Enfrentar um sistema baseado na morte e na conquista, na destruição, na pilhagem, e
criar um sistema fundado na vida, exige revoluções que requerem desde uma grande
diversidade de saberes criados pela humanidade e a invenção de novos saberes, urgentes e
necessários, para fortalecer a posição política de oprimidos e oprimidas. Trata-se de percorrer um caminho, no qual o trabalho de base não poderá realizar-se nas mesmas bases artesanais
que foram semeadas ao longo do século XX e do século XXI, até agora. Partindo das mesmas,
buscamos recuperar tudo o que existe de saberes críticos, políticos, sociais, culturais,
tecnológicos nas distintas gerações, lutando para desindividualizá-los e socializá-los, de
acordo com as necessidades de nossas lutas presentes e futuras.
Se assumirmos esses desafios, junto com a recuperação dos saberes ancestrais, em
tudo o que têm de político, e de um modo de conhecimento distante da ciência positivista e
próximo ao cosmocimiento[3], poderemos ir vivendo nossas revoluções como grandes aventuras
coletivas dos povos, nas quais não existe distância entre a arte, a indagação, o pensar, o fazer,
o trabalho intelectual e o trabalho manual, a razão, a intuição e o sentir a terra desde a raiz.