A Faísca de chapare e los yungas iluminou o continente

 

Carme Vinyoles / Pau Lanao

No ano de 1991, em Los Yungas, Lawar Quispe, um camponês aimara, que vivia perto de Irupana, na rota de Cochabamba, nos explicou que, na guerra contra os cartéis colombianos, a polícia boliviana havia exigido que ele trocasse o cultivo tradicional da coca, que há gerações era o sustento de sua família, pelo cultivo de abacaxis. “Não sei porque me apresentam essa exigência –
afi rmou – não temos ajuda, a folha de coca pesa pouco, é legal, eu facilmente posso trasportar a La Paz ou a El Alto para vender e não posso fazer isso com os abacaxis, pesam muito, não tenho transporte, não posso chegar no mercado”.
No mesmo momento, a 740km, em El Chapare, Evo Morales, que era um dos líderes dos sindicatos camponeses, agrupados nas cinco federações do trópico de Cochabamba, preparava a defesa contra a legislação boliviana que, seguindo os objetivos da DEA, era incostitucional, atuava em um marco de absoluta impunidade, sem respeitar os direitos humanos, havia conduzido, à prisão, muitos pequenos produtores e provocado uma espiral de violência, que o governo de La Paz tentou parar, militarizando as zonas de coca. No livro “Império”, Michael Hart e Antonio Negri, escreveram que a desobediência à autoridade é um ato natural e saudável, que não deixa de ser uma obviedade que os explorados resistam, mas a afi rmação apresenta uma equação de difícil solução: “em umas condições tão complicadas, como as que nos cabe viver, a pergunta não é porque as pessoas se rebelam, mas porque não o fazem. “No caso do Chapare e Los Yungas, a repressão conduziu o fortalecimento da organização sindical, a unidade de ação de uns movimentos sociais, que tiveram que batalhar por seus direitos, tanto na guerra da água (2000) como na do gás (2003), e lançou, defi nitivamente, seus líderes à política nacional. Um passo que, não só mudou a história social e política do país do planalto, mas que repercurtiu em todos os movimentos sociais latinoamericanos. Quando Felipe Quispe, o Mallku – que morreu por COVID no mês de janeiro de 2021 – foi detido em 1992, como membro do Exército Guerrilheiro Tupak Katari, e a jornalista Amalia Pando lhe perguntou qual era a razão pela qual havia apostado pela luta armada, ele respondeu: “Não gosto que minha fi lha seja sua empregada. Então, como posso protestar? Não vou pedir esmola, para que minha fi lha não seja sua empregada”, marcando uma linha de atuação que se sobrepõe ao pensamento de Fausto Reinaga, grande líder indigenista, que nos recebeu em sua casa em La Paz e resumiu em só parágrafo: “Temos que arrancar Cristo e Marx da cabeça do índio. O índio é um povo oprimido e escravizado. O índio não tem que se integrar nem se assimilar a ninguém. O índio tem que se libertar. E a libertação do índio será obra do próprio índio.” Uma proposta atrevida e esperançosa, que
ajudou a romper moldes e colocou cimentos, que ajudaram a construir uma identidade, obrigada a superar o passado de opressão, marginalização e exclusão, em um primeiro momento pela colônia e, depois, pelos estados nacionais que, em nome do progresso e da modernidade, tentaram destruir a idiossincrasia dos povos indígenas e justifi caram a expropriação das terras
ancentrais e a extração dos recursos naturais, o qual comportou a degradação do meio ambiente e um intenso processo de empobrecimento das comunidades. Apesar das rivalidades fratricidas entre El Mallku e Morales, nos últimos trinta anos, as comunidades indígenas bolivianas souberam enfrentar ao neocolonialismo de uns Estados, que converteram as grandes sociedades financeiras no cavalo de Tróia a serviço das elites corruptas, para reconquitar ou subornar o poder e destruir a
coesão ancestral.
Superando os ataques e as desclassificações, as comunidades se posicianaram na agenda internacional e ganharam prestígio e apoio, como defensoras dos Direitos Humanos, conservadoras da natureza, impulsoras das políticas de desenvolvimento sustentável e transformaram a concepção de uns estados, que passaram de egocêntricos a plurinacionais e pluriétnicos. A vos dos movimentos indígenas se escuta, como uma alternativa aos processos de globalização e como uma contracultura, que critica o projeto neoliberal capitalista e como um seguro que preserva as atividades econômicas sustentáveis. Seus objetivos
entram em conflito com as agendas de alguns governantes, que os consideram uma ameaça para a integridade nacional e não duvidam, na hora de ditar políticas públicas contrárias aos direitos, reividicações e demandas dos povos indígenas. A faísca que saltou em Los Yungas e El Chapare comportou a consolidação da COB (Central Obrera Boliviana) e o nascimento do MAS-IPSP (Movimento ao Socialismo – Instrumento Política pela Soberania dos Povos) (1997), que alçou Evo Morales à Presidência do
Estado, mas, antes de tudo, ajudou a consolidar uma frente ampla, alter-globalizador, que tem sabido unir organizações, ecologistas, antiracistas, pacifistas, indigenistas, feministas, em defesa dos direitos humanos, civis e sociais. A pandemia de COVID-19 demonstrou que, quando os sistemas de proteção social da América Latina se tornaram obsoletos e inoperantes, os
movimentos sociais e comunitários souberam se organizar, lutaram pela soberania alimentícia, identificaram as pessoas doentes ou as que precisam de ajuda e apostaram nos setores mais desprotegidos da população. Perante a emergência e o esquecimento das autoridades neoliberais, que utilizaram um golpe de estado para tirar o governo MAS do poder, no planalto
boliviano, onde permanece o saber e a herança vital dos séculos se reforçaram as inter-relações comunitárias, e, quando apareceram os primeiros casos de COVID, os municípios rurais cortaram toda relação com o exterior e impulsionaram a autogestão. A população e as autoridades reforçaram a cultura auto-organizativa, o apoio mútuo, se comprometeram para que não faltasse, a nenhum vizinho, o necessário para poder viver, reforçaram o intercâmbio entre as famílias e conseguiram que os mercados locais dos municípios se abastecessem com os produtos dos pequenos produtores das comunidades, medidas que não eram só uma certeza do presente, mas também um desafio, que ajudará a consolidar o futuro.
Como escreveu Reinaga em seu livro “A Revolução índia”: “A revolução índia não será um Golpe de Estado. Os governos de choupana branco-mestiço, que habitam o Palácio “queimado” de La Paz, podem dormir tranquilos em relação ao Partido Índio da Bolívia (PIB). A Revolução Índia será uma revolução de outro gênero, de outra estirpe. A Revolução Índia será a ressurreição da consciência, do sentimento e da vontade do homem nativo. A Revolução Índia será a substituição da “natureza humana” do Ocidente pela “natureza humana” do inkanato. São palavras do ano de 1970, uma profecia que se cumpriu em 2005 com a chegada de Evo Morales ao poder, de acordo com Reinaga: “Os índios querem organizar um regime socialista; mas não com o
socialismo ou o comunismo importado, concebido, propagado e programado pelos “comunistas” da Bolívia e Indoamérica”. Um socialismo particular que iluminou o continente.