A FORÇA ESPIRITUAL DA LUTA EMANCIPADORA DOS INDÍGENAS NA AMÉRICA LATINA
Eleazar López Hernández
Algo de novo está nascendo na América Latina
Hoje está se cumprindo a profecia guadalupana do Nican Mopohua[1], porque nos múltiplos Tepeyac[2] de Abia Yala[3] brotam flores e cantos[4] que nos sinalizam que está para amanhecer um novo sol de libertação, de justiça, de paz e de vida plena, como o sonharam os nossos ancestrais e também Jesus de Nazaré.
Diante da obscuridade dos tempos atuais, diante do inverno que apodrece as flores, e frente à enfermidade mortal do pobre, que foi trazida desde fora, por culturas opressoras, o índio Juan Diego e os mais pobres das diferentes periferias existenciais do mundo, nunca se resignam ao destino de morte ao qual o conduzem os donos do poder e do dinheiro, mas sempre acreditam e criam um novo despertar de vida, unindo os esforços dos anawim[5] do mundo para fazê-lo possível para o bem comum de todos.
Os profetas do nosso tempo, - como Monsenhor Proaño, Dom Oscar Romero, Dom Pedro Casaldáliga, Tatic Samuel Ruiz, o Tata Bartolomeu e agora o Papa Francisco -, reconhecem que os indígenas da América Latina e do Caribe estão se levantando e ficam de pé, estão retomando a sua sabedoria antiga e vão abrindo novos caminhos com o dinamismo das suas raízes ancestrais, fortalecidas pelo Evangelho do Reino que vem de Jesus.
Junto com eles, os afrodescendentes, as mulheres, os jovens e os pobres em geral recusam de continuar sendo escada, folha caída da árvore, ou escoria da sociedade. Os Juan Diego de hoje estão tomando consciência de que não têm nascido para a morte, embora assim o decretem os que só procuram as riquezas através dos corpos e territórios do pobre, sem preocupar-se com a destruição da vida no planeta. Os povos originários sabem que o Deus da Vida, a quem chamam de Ometeotzin Ipalnemohuani[6], Criador e Formador, Mãe/Pai de todos os povos, que nos forjou com as suas mãos amorosas para o Bem Viver ou Conviver[7].
Na sabedoria dos perdidos e descartados de continuar vivos e sonhar futuros novos está a prova maior de que Deus está do lado deles e os torna capazes de gestar e dar à luz um mundo onde reine a paz verdadeira, a terra que mana leite e mel e onde há vida em abundância. Já Moises (Ex 3) tinha descoberto que a única explicação do porque a sarça no deserto, - que simboliza a resiliência dos povos nômades - não se consome, apesar do fogo que joguem em cima dela: é porque nela está a presença de Javé, Deus dos vivos, não dos mortos, e desde lá convoca Moises, e os demais solidários com ele, a lutar pela libertação dos irmãos escravizados pelo jugo dos faraós de então e de hoje.
No horizonte de hoje, descobrimos sinais de esperança deste novo amanhecer o Pachakutik quando o povo se levanta do pó e luta pelos seus direitos; quando uma boa parte das igrejas sai do centro rumo às periferias e apoia desinteressadamente os pobres nas suas lutas; quando muitos homens e mulheres no mundo manifestam sua indigestão (nojo-recusa) do mal que prevalece e expressam apaixonadamente seu basta e se comprometem para que chegue logo este outro mundo que nos leve ao Bem Viver e à Terra sem Males[8]. E assim, desde as periferias, todas-todos empurramos a história até a realização dos sonhos de Deus e dos nossos ancestrais.
O paradigma guadalupano, força e sínteses teológica dos pequenos
Sabemos que, por todo o território da América Latina, encontram-se evidências de que ainda existe uma sabedoria ancestral que sabe tecer a espiritualidade mais antiga com aquela que chegou meio milênio atrás. O podemos ver no caso de Caacupé no Paraguai, Copacabana em Bolívia, Koromoto em Venezuela, Aparecida no Brasil, e em outros lugares mais. Porém a expressão mais ampla e estudada desta força espiritual dos pobres é Tonantzin Guadalupe vivida pela maioria do povo mexicano, narrada e explicada no Nican Mopohua, primeiro texto de teologia ameríndia. Nela se repropõem os grandes conteúdos da espiritualidade anterior à presença europeia, harmonizando-a com o coração da proposta dos primeiros evangelizadores.
Por isso, o Guadalupismo é uma voz antiga que vem de milênios atrás, e de vez uma palavra nova e atual dos xocoyume (os “mais” pequenos) que, diante dos avanços implacáveis dos projetos de morte, renovam constantemente a sua capacidade de resistência, levando-a até sua última trincheira que é o âmbito religioso e da espiritualidade. Depois de quinhentos anos do evento guadalupano, a devoção, a fé e a proposta de Tonantzin não morreram. Pelo contrário, continua fazendo arder o coração do povo pobre como consolo, esperança e motor de luta para as maiorias deste continente Abia Yala, agora chamado América.
Alguns desafios a serem assumidos para o intercâmbio de sabedorias
Na Pastoral Indigenista e na Teologia Índia elaborados na América Latina, temos descoberto que a contribuição dos povos originários e afrodescendentes nos desafia a:
- Superar a colonialidade pastoral e teológica existente nas igrejas, estritamente ligadas às culturas e esquemas dominantes do primeiro mundo, para estar em condição de abrir-se e receber humildemente a pluralidade das flores e dos cantos teológicos da periferia.
- Passar da perspectiva da verdade sobre Deus, que se baseia sobre a razão e se desenvolve em teses e livros, para chegar à mistagogia[9] ou comunicação da proposta do Bem Viver e Conviver, segundo o plano de Deus, que se constrói em unidade de esforços. Dizendo de outra maneira, passar de uma teologia como doutrina que se remete à razão, para conseguir uma “Vidalogia”, que se transmite, se coraçona (pelo coração) ou se sentipensa (com sentimento) com todo o nosso ser, em vista de responder às exigências da vida a partir do projeto de Deus.
- Assumir a integralidade da Teologia dos Pobres que sabem que nada e ninguém está fora do amor de Deus. É o que Santo Irineu já colocava desde os primeiros séculos da Igreja: “O que não se assume, não se redime”[10].
- Levar a sério nas igrejas que o verdadeiro sujeito da fé e da teologia é a comunidade dos crentes, e não devoções (luzinhas) individuais desligadas da vida do povo.
- Usar conscientemente a linguagem analógica e simbólica do povo como a melhor maneira de falar do mistério de Deus, saboreando o viver e estar com Ele-Ela, e não tanto querer entender, com ideias claras e distintas, o mistério divino.
- Reconhecer e acompanhar a ação de Deus presente nos povos originários e afrodescendentes reconhecendo que é o mesmo Deus de Jesus Cristo que leva adiante o seu projeto salvífico em todos os povos do mundo e em toda a criação.
- Desconstruir radicalmente a prática piramidal e clerical, que por muitos séculos tem prevalecido na Igreja, e gerar uma nova práxis sinodal desde a periferia, e com as bases laicais ocupando o lugar que lhes compete e corresponde ao desígnio de Deus.
- Escutar e aprender dos povos que têm uma longa trajetória de uma sinodalidade vivida, como se propõe no evento guadalupano, irá fazer que as nossas igrejas recuperem sua atratividade e sua capacidade profética de origem.
Os pobres em geral – e os indígenas e afrodescendentes em particular – não deixarão de continuar a oferecer, como o fizeram no Sínodo Panamazônico de 2019, a sabedoria de suas flores e cantos a quem, dentro e fora das igrejas, abra seu coração e se una à construção dos novos céus e nova terra que sonharam os ancestrais e Nosso Senhor Jesus Cristo.
[1] Primeiro texto teológico do povo nahuatl do México que narra o evento guadalupano
[2] Morro sagrado no México onde Juan Diego se encontrou com Tonantzin Guadalupe (N. Sra. de Guadalupe)
[3] Nome em língua Guna com que se designava e se designa o continente agora chamado América
[4] Expressão difásica que os mesoamericanos usam para falar de suas verdades fundantes
[5] Termo bíblico com que se identificam os pobres de Javé, o resto de Israel
[6] Categorias teológicas dos povos nahoas para falar da Divindade como dualidade
[7] Palavras com que os povos andinos propõem seu ideal de vida na terra
[8] Utopia que inspira os povos Guarany do Cone Sul
[9] Expressão teológico-pastoral das igrejas orientais para caracterizar a transmissão do mistério de Deus
[10] São Irineu, Adversus Haereses, citado pelo Doc. de Puebla, 400, e nos fundamentos teológicos da Pastoral Indigenista do Episcopado Mexicano, 63