A formação da consciência crítica hoje

A formação da consciência crítica hoje

J.B. LIBÂNIO


As transformações profundas do sistema capitalista têm desmontado os processos conscientizadores de décadas anteriores. Pessoas lúcidas pedem que se esque-ça o que escreveram. Antigos militantes afogam as desi-lusões nos bares e com os amigos de farra ou capitulam diante da tecnologia e endossam os dogmas yuppies de jovens executivos, profissionalmente bem remunerados e requintados no trajar e viver. Não faltam os que se entregaram aos braços religiosos do carismatismo fácil. E poucos persistem fiéis, intrépidos, perguntando-se como conservar a consciência crítica e alimentá-la em tempos de neoliberalismo.

A queda do socialismo real

Por que se deu a ruptura de um momento conscienti-zador para uma situação de marasmo alienante? O fato externo mais significativo aconteceu com o desmorona-mento do sistema socialista e com a perda do horizonte utópico que ele oferecia. A derrocada não foi produzida por nenhuma derrota bélica nem pela imposição de um poder externo invasor, mas pela própria falência do sistema, viciado e corrompido por dentro. Assim a decepção de milhões, se não bilhões, de pessoas atingiu grau extremado. Paradigmático foi o suicídio do oficial soviético depois de dizer: “tudo em que cri desabou” e com isso o sentido da vida. Só a morte foi a resposta. Nem todos bordejaram esses extremos.

Processo de conscientização de décadas anteriores

O capitalismo na sua fase industrial e com fortes raízes nas nações permitia que se identificassem, em cada país, os adversários. A luta de classe ocupava o centro. E nela os dois pólos bem visíveis favoreciam desenvolver a consciência crítica. Pôr-se num campo era opor-se ao outro. Era preto sobre branco. Mesmo que a análise sofresse de certo simplismo, ela permitia, no entanto, decisões claras para agir.

A formação da consciência crítica implicava no desmascaramento da ideologia dominante que propunha o modelo capitalista como solução também para os problemas dos pobres. E eles entendiam facilmente que nada disso estava a acontecer e que, portanto, tal proposta capitalista não passava de engodo ideológico.

Formava-se nos agentes da pastoral e na base uma capacidade de mergulhar na própria experiência e perceber como ela era pouco transparente para eles mesmos. E apontavam-se os principais empecilhos a tal clareza. Predominava nas pessoas uma visão da realidade ligada às necessidades da natureza que remetia em última análise à vontade de Deus e não se captavam os reais jogos dos interesses sociais e políticos. A formação da consciência crítica implicava passar de uma matriz de compreensão da realidade a partir do modelo da natureza para o da história, desmitificando, logo de início, uma vontade de Deus que justificava a pobreza, o sofrimento dos pobres em vista de uma vida futura de felicidade.

Nesse sentido, a teologia da libertação cumpriu precioso papel de conscientizadora, ao desocultar os mecanismos sociais de opressão na sociedade em oposi-ção às leis fixas e inexoráveis da natureza. O processo conscientizador entrava para dentro da estrutura familiar e eclesiástica, quebrando os autoritarismos patriarcais de ambas as instâncias. Eles inibiam a consciência crítica dos súditos.

Todo esse processo ainda continua válido para muitos agentes de pastoral. Em nosso continente, tanto a estrutura familiar como a eclesiástica mantém em diversos lugares as mesmas prepotências de longa data. Embora haja rápida urbanização dos países, gerações que vivem na cidade retêm os esquemas rurais, míticos e religiosos tradicionais à espera de uma depuração.

A nova situação de alienação

Com o neoliberalismo e com a pós-modernidade a alienação cresceu, já não pela ingenuidade rural nem pela piedade tradicional, mas por um trabalho invasivo, sutil, insidioso e solerte do sistema neoliberal mancomu-nado com o aparato ideológico da mídia. Embaralham-se de tal modo as classes que os contornos se esfumam. Não se identificam com clareza os inimigos. Necessita-se de redobrada atenção para a novidade da situação.

O pensamento neoliberal tem conseguido a dupla façanha de desqualificar qualquer oposição e impor-se como única solução possível. A primeira se conseguiu com o evidente colapso do socialismo, único sistema alternativo posto na arena político-econômica. Fato de tal modo evidente que se justifica por si mesmo. Apresenta-se o capitalismo vitorioso como resultado de melhor performance e do fracasso do partido oposto. E qualquer menção ao socialismo recebe a pecha de saudo-sismo, de volta aos entulhos do passado, de retrogressão imperdoável. Esse primeiro aspecto representa a ideolo-gia quimi-camente pura. Pois consegue gerar a impressão de que se está diante de um fato insofismável, de evi-dência objetiva, realizando o provérbio latino: «Não existem argumentos contra os fatos».

A segunda conclusão decorre dessa. O neoliberalismo proclama-se único, porque não existe outro sistema. A prolongação ideológica esconde outro fato: quem disse que não pode surgir e se criar uma alternativa? Dá-se por evidente que essa hipótese nem sequer é possível.

A obstrução da consciência crítica continua pela insinuante pós-modernidade, vestida de informática. A ambigüidade reside na maneira como ela enfrenta a questão da razão. Com justeza denuncia uma razão instrumental que encurta a razão comunicativa. Pois o sistema neoliberal alimenta-se da instrumentalidade racional que estabelece um objetivo, ordena os meios para obtê-lo de um modo eficiente, competente, baixos custos e altos benefícios. Essa razão, assim posta, infla o capitalismo com o oxigênio para sadia e prolongada existência. Ao voltar-se criticamente contra a razão instrumental, a razão comunicativa pós-moderna atina com real ponto vulnerável e bate forte contra ele. Sob esse ponto, ela favorece a consciência crítica. Não tolera o reinado isolado da racionalidade instrumental.

Prosseguindo a caminhada, a pós-modernidade acorda os mitos da emoção, da afetividade. Nada mau. No entanto, opera-se facilmente uma inversão perigosa. Abandona-se a racionalidade na sua totalidade, confun-dida com seu aspecto funcional, para deliciar-se com o presentismo hedonista. Concentra-se no momentâneo para sugar-lhe todo o prazer que dá de si. A emoção e o prazer são péssimos conselheiros quando caminham de mãos dadas sem nenhuma outra companhia.

O duplo efeito negativo advém de que tal esponta-neísmo termina deixando que a razão instrumental faça sua devastação. Esquece-a ou nega-a, como se ela não existisse. Nada melhor para ela tal postura porque, assim entregue a si mesma, assume um desembaraço sem peias. E aquilo que se criticava, torna-se ainda pior. Quanto mais as pessoas se entregam ao emocional, mais o sistema trama suas jogadas, explorando midiaticamen-te essa sensibilidade alienante. Realiza-se mais uma vez o provérbio latino: panem circenses – pão e espetáculos de circo. E além disso, o emocional aliena por não se deixar iluminar pela razão. É levado por im-pulsos antes instintivos e incontrolados. Permite criar um bem-estar afetivo sem referência aos sofrimentos dos outros.

Repensar o processo conscientizador

O jogo principal trava-se na cultura. Vem-se gerando desde o século passado uma cultura de massa. É a única cultura própria da idade moderna, produzida segundo a matriz da fabricação industrial. O fordismo na indústria estabeleceu um tipo de produção em série para as massas, especialmente urbanizadas. Segundo esse modelo, a mídia propaga pelas técnicas de difusão massiva um tipo de cultura endereçada às massas. Ela foi forjada especialmente nos EUA. Incorporou os valores típicos do way of life da classe média da sociedade americana. A enorme força indutiva dessa cultura e os poderosos meios de transmissão a universalizaram pelo mundo ocidental por meio dos símbolos do carro próprio, da refeição Mcdonald, da bebida coca-cola, da boneca Barbie, da calça jeans e dos filmes hollywoodianos. É uma cultura que conjuga dois ingredientes sedutores: o espelhismo da realidade com suas paixões e desejos misturados com uma pitada de romantismo e sonho. Mescla a dura realidade com sonhos coloridos, violência com evasão em shangrilás de beleza. Produz por isso uma alienação quase insuperável. O realismo dá a impressão que se mostra o que de veras está acontecen-do. O lado onírico consola e arranca as pessoas do real para deixá-las vagar pelas aspirações quase sempre irrealizáveis para as camadas mais pobres.

A consciência crítica consiste em mostrar esse jogo sedutor, tanto desmascarando o que se apresenta como realidade quanto aquilo que se propõe como desejo. Ambos falseiam a consciência. A realidade é vista sob o ângulo daquilo que as pessoas querem ver e não daquilo que necessitam conhecer. Saltam aos olhos os dois temas mais envolventes: a violência e a intimidade afetivo-sexual de que o programa Big Brother é a mais lídima expressão. Está-se a viver alienante inversão. O mundo privado e íntimo é lançado aos ventos da publici-dade. E, por outro lado, as coisas públicas, como o Esta-do, o dinheiro dos impostos, as estradas, as estatais são privatizadas quer legalmente quer pela via da corrupção. E mais que simples fatos isolados, implanta-se uma cultura do uso privado dos bens públicos ao lado do devassamento quer voyeurista quer «legal» das intimida-des e dados pessoais. Ainda não nos demos conta sufi-cientemente da gravidade da situação que se implantou depois de 11 de setembro de 2001. Para combater o terrorismo os direitos pessoais e a confidencialidade vêm sendo cerceados por parte de um Estado policial. Há, nessa nova cultura, enorme campo de conscientização dos direitos humanos, consagrados pela ONU, mas que vêm sendo abolidos pelas nações ditas civilizadas.

 

J.B. LIBÂNIO

Belo Horizonte, Brasil