A função social da propriedade agrária

 

João Pedro Stédile

Analisemos, primeiro, de forma suscinta, um pouco da história da propriedade. No feudalismo, a nobreza era dona, proprietária dos castelos, do território e da população, que em regime de servidão, lhe devia a renda sobre o produto (50%, no mínimo,
de tudo o que cultivava) e a renda sobre o trabalho, onde, parte dos dias da semana, trabalhava de graça para eles.
Com advento do capitalismo mercantil, no século 13, os bens se tornaram mercadoria, ou seja, as pessoas que o fabricavam ou cultivavam, se tornaram proprietários e tinham o poder de vendê-los. E os comerciantes se transformaram nos primeiros
capitalistas, pois acumularam capital, dinheiro, com o poder de comprar e vender essas mercadorias.
A partir do século 18, surge o capitalismo industrial. Com ele, os meios de produção (maquinas, matérias primas, energia...) se concentraram em unidades de produção com um proprietário, ou seja, com poder sobre eles e, ao mesmo tempo, separou-se
o trabalhador do produto do seu trabalho. Agora, os operários poderiam vender apenas sua força de trabalho, que lhes era pago na forma de salário.
Passaram a ser proprietários apenas de sua própria força de trabalho, não do produto resultante do trabalho. Já, os capitalistas industriais, passaram a acumular muito mais dinheiro, capital e poder, pois se apropriaram do valor a mais, produzido pelos trabalhadores, superior ao que recebiam do valor do salário. E, com o capitalismo industrial, surge a propriedade privada dos bens. Os capitalistas industriais passaram a ser donos, proprietários privados, dos meios de produção (máquinas, galpões,
energia, matérias primas...), e exerciam o poder de decidir a quem contratariam como trabalhadores. Ou seja, de quem comprariam a força de trabalho, essa energia produtora de bens.
E levaram essas leis fundamentais do capitalismo industrial para agricultura que, até então, era dominada pela classe dos camponeses que, na maioria dos países europeus, haviam derrotado A função social da propriedade agrária João Pedro Stédile São Paulo, SP a nobreza, às vezes, até em guerras prolongadas e, portanto, viviam em seus territórios, como produtores autônomos dos bens agrícolas.

O capitalismo industrial introduziu a propriedade privada das terras. A burguesia industrial, proprietária dos bens de produção, passou a controlar o Estado e, através dele, impôs sua lógica na forma de leis. O primeiro país que teve lei de propriedade privada das terras foi a Inglaterra e, depois, se disseminou por todos os países europeus e nas Américas.
A propriedade privada das terras, um bem da natureza, até então controlado por camponeses, pelas igrejas ou ainda como terras públicas de uso comunitário, passa a dominar juridicamente o meio rural. E a terra, apesar de ser um bem da natureza, passa a ter preço e se transforma em mercadoria, que poderia ser comprada e vendida.
Os pensadores clássicos da economia política defi niram a terra como uma mercadoria especial, porque ela não é fruto do trabalho humano e, portanto, não se poderia estabelecer seu preço ao ser comprada e vendida. Daí, encontraram a explicação na lógica de acumulação do capital, o preço da terra era determinado pela expectativa de lucro médio que os capitalistas poderiam auferir depois de comprá-la, ao produzirem mercadorias agrícolas naquele território.
A introdução da propriedade privada das terras é, na verdade, uma convenção jurídica. O Estado criou um direito à propriedade para os capitalistas e os protegia, através de um documento de propriedade reconhecido por ele. E, então, nas operações de compra e venda de terras, na verdade, está se vendendo o direito a explorar a terra, já que ela não é uma mercadoria comum e nem poderia ser transportada.
Assim, o direito à propriedade da terra dá o oder de decidir o que fazer sobre ela e, inclusive, não fazer nada. E, para proteger esse poder de propriedade, nasceu a cerca. Nasceu a violência armada para protegê-la, particular ou do Estado.

O Brasil
No Brasil, tivemos uma história singular, determinada também pelas leis fundamentais do capitalismo. A partir de 1500, nosso território, antes chamado de Pindorama pelos povos que o habitavam, foi conquistado pelos governos capitalistas europeus, que já estavam na fase do capitalismo mercantil.
Transformamo-nos, juridicamente, em colônia de Portugal e a coroa determinou que todas as terras a ela pertenciam por direito. Por tanto, não havia propriedade das terras. No entanto, os comerciantes europeus aspiravam produzir mercadorias nessas terras para revender e lucrar no mercado europeu. E, assim, passaram a organizar a produção de mercadorias, antes trazidas do distante oriente, como açúcar, café, algodão, pimentas, couro da pecuária, e aproveitaram, de nosso ambiente, o tabaco e o cacau.
O regime adotado pela Coroa foi a forma de concessão de uso, aos capitalistas que tivessem capital e vontade política de produzir aquelas mercadorias. Foi assim que surgiram as sesmarias, em geral, cada fazendeiro capitalista recebia a concessão de uma área equivalente a 6 mil hectares, segundo os registros históricos. E, para produzir aquelas mercadorias, adotaram o trabalho escravo. Esse modelo de grandes fazendas, produção de
mercadorias para Europa e trabalho escravo, foi caracterizado a posteriori pelos historiadores como o modelo da plantation, adotado na maior parte das colônias europeias.
O regime de concessão de uso das terras previa o direito à herança aos filhos e herdeiros, mas impedia de comprar e vender. Caso desistisse de produzir, as terras seriam devolvidas à Coroa. E havia uma cobrança de impostos sobre elas, na forma de dízimos sobre a produção.
Em 1850, já em clima de muitas revoltas e lutas antiescravagistas em todo mundo, Dom Pedro II, preparando-se para o final da plantation, decreta a lei nº 601, que introduz, na sociedade brasileira, a propriedade privada das terras.
Pela lei, a Coroa estabeleceu um preço mínimo por hectare para que os capitalistas, antes concessionários da terra, pudessem comprar e se transformar em proprietários privados da terra.
E assim nascia o latifúndio. A grande propriedade privada das terras, no Brasil, pois apenas dos grandes
fazendeiros e capitalistas, que tinham dinheiro para compra-las. Desta forma, foi negado o direito ao acesso à terra a outras pessoas, como os ex-escravos, mestiços ou pessoas pobres.
Quando foi decretado o fim da escravidão, em 1888, nenhum trabalhador escravo se transformou em proprietário de terras, porque, no plano dos capitalistas, os escravos deveriam se transformar em peões, assalariados, como de fato aconteceu em muitas regiões do país, em especial, com os escravos da cana de açúcar.
Esse regime concentrador da propriedade da terra, e excludente da maioria da população, vigora de 1850 até hoje.
Nesse interim, o governo estimulou a migração de camponeses pobres da Europa, para substituir o trabalho escravo e produzir alimentos para o nascente mercado interno, formado pelas cidades. Porém, as famílias de camponeses migrantes recebiam terras públicas, em média de 25 hectares, chamadas de colônias e, para terem o título de propriedade, tinham que pagar essas terras ao governo.
Em São Paulo, na região produtora de café, com o fim da escravidão, surgiu um novo regime, o colonato, em que os fazendeiros entregavam, em parceria com os colonos migrantes europeus, linhas de café já formados e dividiam com eles a produção. Muitas dessas famílias pouparam seus ganhos durante anos e, posteriormente, chegaram a comprar pequenos sítios e formou, no Estado, uma região de camponeses autônomos, de origem europeia.
A função social da Terra 
O debate sobre a função social da terra, a necessidade de reparti-la e de garantir seu acesso aos camponeses sem terra, só teve audiência no país durante o governo Goulart, quando, diante da primeira grande crise do capitalismo industrial, o governo propôs uma reforma agrária. Ou seja, partir do pressuposto de que era necessário “desapropriar” o latifúndio, para distribui-lo às famílias sem-terra e, assim, transformá-lo em terras produtivas, gerando mercadorias para o mercado interno e tornando os camponeses em consumidores dos bens industriais.
Surge, então, os temas agrários no debate político, como a noção de que a terra é um bem da natureza e a sociedade, através do Estado e das leis, deveria definir como usá-la. Surgia a condenação ao latifúndio, como grande propriedade privada, que só servia para especulação e acumulação de capital. Surgiu a proposta da necessidade da desapropriação dos latifúndios. Ou seja, o Estado, em nome da sociedade, tinha o direito e o dever de irar a propriedade privada desse latifundiário. “Desapropriar”, daí o sentido do verbo, tirar a propriedade
de..., mas admitia uma indenização ao fazendeiro desapropriado, em que o Estado pagaria, à vista, as benfeitorias construídas pelo trabalho, e o preço da terra seria indenizado com o pagamento de parcelas ao longo de 20 anos.
A Lei da reforma agrária de Goulart foi enviada ao Congresso no dia 18 de março de 1964 e, no dia 1º de abril, houve o golpe militar, que derrubou o governo.
Mesmo assim, a situação era tão iníqua que, em 30 de novembro de 1964, o Marechal Castelo Branco decretou o Estatuto da Terra, que era, na verdade, uma lei de reforma agrária, que incluía o direito e dever do Estado de desapropriar os latifúndios. A lei foi aplicada, com alguma relevância, somente depois da redemocratização, a partir de 1984.
E, na constituinte de 1988, a lei de reforma agrária teve modificações e impôs limites a que tipo de fazendas poderia ser desapropriado. Assim, com a Nova Constituição, proibiu-se a desapropriação de fazendas produtivas e, somente latifúndios improdutivos, poderiam ser desapropriados.
Mas a Lei introduziu uma condicionante interessante, o grande proprietário de terras somente teria direito à propriedade privada dessas terras se elas cumprissem uma função social. Ou seja, não apenas desse lucro ao seu proprietário, mas atendesse também a necessidades de toda a sociedade. Portanto, estabelece uma função social
para a propriedade. E, entre elas, descreve que o estabelecimento agrícola deveria atender:
a) à melhoria das condições de vida dos trabalhadores que lá viviam;
b) que a forma de exploração deve respeitar o meio-ambiente, preservando os bens de interesse geral, como água, árvores etc.;
c) não ter cultivos de psicotrópicos e uso para contrabando ou outras atividades ilegais;
d) produzir e ter uma produtividade média, igual ou superior à da região agrícola localizada.
Por esses critérios, dava para imaginar que se poderia desapropriar muitas fazendas no Brasil. A existência de trabalho escravo ou de superexploração dos trabalhadores; a existência de crimes ambientais contra a natureza; o cultivo de psicotrópicos... e a baixa produtividade agrícola de terras, que são mantidas apenas para especulação, dão base legal à desapropriação.
No entanto, nenhuma fazenda foi desapropriada por ter agredido sua função social, descrita nos itens a, b,
e c. E, nos últimos anos, o INCRA somente desapropriou em negociação, em acordo com seu proprietário que,
às vezes, transformava a desapropriação num bom negócio. E, com a indenização, comprava outras fazendas em outras regiões.
Isso deveu-se também porque os governos mudaram as regras do Estatuto da Terra e, hoje, a maior parte das indenizações são pagas em dinheiro, muitas vezes superavaliadas, com os títulos da dívida pública vencíveis em, no máximo, 5 anos, que permite ao fazendeiro negociá-los no mercado de capitais.
Há, também, outra condição de desapropriação da propriedade por “interesse social”. Neste caso o governo decreta a desapropriação de determinada área rural ou urbana, alegando que a sociedade precisa para alguma obra pública, como estrada, ruas, escola, barragem para irrigação ou usina hidrelétrica. Poderia aplicar esse preceito legal, também, em caso de conflito social no campo, alegando interesse da sociedade em resolver o
problema, decretando a desapropriação. Nestes casos, o governo é obrigado a pagar à vista, depositando, em juízo, o valor que arbitrar pelo imóvel. O proprietário só pode contestar o valor, mas não o ato de desapropriação.
O resultado é que, apesar de termos uma lei que determina a necessidade da propriedade em cumprir uma função social, exigida pela sociedade, os governos não a aplicam. E, em vez de uma reforma fundiária, temos apenas assentamentos pontuais, em geral, com a distribuição de terras degradadas e de pouco interesse para o fazendeiro.
Daí a propriedade da terra continuar cada vez mais concentrada nas mãos de menos capitalistas, acelerada pela lógica de acumulação do capital e, do outro lado, a desigualdade social e a exclusão dos trabalhadores da propriedade, que aumenta a cada dia.