A Grande Causa da classe trabalhadora

A Grande Causa da classe trabalhadora

Mauro Kano


Vamos começar com o mundo de Sumak Kawsay: o Bem Viver. Este mundo não é ilusão, é possível para quem o quer construir. Apesar de que este querer não pode ser individual, tem que ser coletivo. Construir uma outra sociedade, com todas as características do Bem Viver, Bem Conviver, exige muita vontade, criatividade e consequências. É o construir de toda uma sociedade, que se faz outra. E como a sociedade não é um ajuntamento de grupos, mas uma relação complexa e muito bem articulada, o desejo de se construir deve ser unitário, em conjunto.

Em pleno desenvolvimento da tecnologia, da informática, cabe ainda falar de utopia? Que significado tem? Nos tempos atuais, as pessoas querem resultados imediatos, exatos, palpáveis. É certo de que há muitas necessidades que estão mais do que atrasadas, exigências que já deveriam ser supridas há tempos, mas precisamos querer mais do que necessidades cotidianas, é preciso que haja a transformação de toda a estrutura, desde suas raízes, para se tornar um mundo de relações humanas plenas, com dignidade e vida, convivência alegre e realizada. Apostar nesse mundo sem saber qual direção tomar para atingi-lo, não poderemos chegar até ele. É puro sonho. Mas quando a este sonho inserimos a ciência, o acúmulo de conhecimento produzido pela espécie humana, e a partir desse acúmulo construímos o caminho, este sonho se torna utopia, isto é, a comunhão entre o sonho e a ciência. Por isso, a utopia é possível e bem atual.

Diante da crise mundial, de grande acento econômico e impacto social, se prioriza o desenvolvimento industrial como reação a recessão, para um reajustamento dos poderes capitalistas. Onde não é possível o capital expandir mais, promove-se guerras – e para isso se busca diversos argumentos: armas químicas de massa, bombas nucleares, ditaduras saturadas, etc. – para destruir e criar novos mercados, maiores investimentos, enfim, circular o capital, isto é, aumentar seus lucros. E quem paga a conta não é outro, senão os mais pobres e explorados, os trabalhadores e trabalhadoras, mesmo quando desempregados.

Numa conjuntura assim, é essencial a atenção aos movimentos de trabalhadores, em especial aqueles diretamente ligados à produção da riqueza, mais precisamente os operários, para evitar que as injustiças e exploração se tornem as principais armas contra a pessoa humana. São esses que irão reconstruir os países, desenvolver as indústrias, criar mais trabalho, circular a produção, movimentar o mercado, desenvolver as nações e garantir a reciclagem do capitalismo.

Num olhar mais amplo, percebe-se nesta rede todos os trabalhadores, sejam eles dos setores de serviços, como transportes, saúde, educação; mulheres negros, indígenas... É preciso intensificar o trabalho junto aos grandes centros urbanos, operários, populares, da periferia, das pequenas cidades, em conjunto com os movimentos camponeses. Os trabalhadores das indústrias, comércio e outros serviços têm se questionado sobre o modo de vida injusto que levam, as contradições e sua exploração, têm procurado uma forma mais sistemática e profunda de se organizar e garantir seus direitos, não se deixando enganar, buscando maior eficiência e eficácia em suas lutas e organização, com formação política, elaboração estratégica e multiplicação na base...

Para se Viver Bem, Conviver Bem, é preciso perceber que as Grandes Causas – Indígena, Negra, Popular, Feminina, Ecológica, etc. – são matizes de uma única e mesma Causa: a Libertação da Pessoa Humana de todo tipo de escravidão-exploração. As Grandes Causas se condensam – ao mesmo tempo que, na dialética, se expandem – na Grande Causa Popular, de toda a classe trabalhadora, que tem sua tarefa principal em construir esta nova sociedade de convivência plena, onde todos e todas vivem bem.

Nos tempos modernos, os trabalhadores e trabalhadoras têm um papel fundamental, ao mesmo tempo que contraditório. São os que darão impulso ao capitalismo, mas também são os únicos capazes de utilizar toda a sua força para a libertação. Por isso, falar da Causa Popular hoje se torna mais urgente do que nunca em nossa história. A capacidade humana tem chegado a um grau de intervenção sobre a natureza e as relações sociais, que demonstra a infinitude de sua vocação. Toda essa força, conduzida para um Sumak Kawsay, é capaz de concretizar qualquer utopia. Mas há um princípio: a unidade na luta de toda a classe trabalhadora, de todos os homens e mulheres de boa vontade, de todos e todas aquelas que se dispõem a se colocar em marcha desta Pátria Grande possível.

Há quem diga que esse tempo já passou. Que as lutas pelas Grandes Causas são trocadas agora pelo diálogo. Nos dias atuais, a palavra de ordem é conciliação. Nos tribunais, antes de se buscar justiça, se propõe a uma «audiência de conciliação». O pequeno aguarda uma proposta de justiça por parte do grande, que nunca virá. O grande pede trégua, quando percebe que não irá vencer, isto é, quando está mergulhado na injustiça. Com isso, dá-se a impressão de que não existem mais lutas, não há necessidade de havê-las. Tudo se resolve através de um caminho burocrático: tem uma reivindicação, apresente-a por escrito! Faz um protesto: envie e-mails por mala direta! Está perdendo um direito: entre com um processo no Tribunal! Tudo é negociável. Um bom diálogo garante a paz.

Mas, com certeza, essa paz não é a proposta de Sumak Kawsay, que, traduzindo do quechua, é, «viver em plenitude». É mais que viver bem, ou viver melhor: é ter Vida Plena, Convivência Plena, todos, todas. A história tem mostrado que a verdadeira paz é sempre conquista de liberdade, terra, pão, trabalho, justiça, saúde, diversão, educação, casa... enfim, é conquista de uma sociedade onde sua organização garanta esses direitos a todas as pessoas. E isso só será possível com muita luta. Os poderosos e magnatas do mundo não irão abrir mão de seus privilégios, lucros e desperdícios espontaneamente. É necessário que se lute pela dignidade, pela conquista de direitos e pelo avanço das relações sociais da convivência humana.

Creio que para se declarar o fim da luta pela Grande Causa, será preciso que se concretize a Vida Plena, que se conquiste sua vitória. E para os trabalhadores e trabalhadoras que possuem apenas sua força de vontade, força de trabalho, força de viver, lutar é a única possibilidade de se construir outra realidade. Sem lutar é que se perde aquilo que foi conquistado e acumulado das lutas do passado.

Para se Bem Viver, é preciso um outro tipo de Sociedade, basta de Capitalismo, basta de ter a exploração como raiz e lógica de toda a Convivência Humana. Como humanizar algo que, para existir, explora o próprio humano? Já se tentou muitas vezes «humanizar» o capitalismo, torná-lo palatável, torná-lo flexível, torná-lo divino... Muitas vezes, ao invés de atingir o coração do dragão, da besta-fera, conseguimos acertar apenas suas garras, quebramos suas unhas, torcemos seu pé, que logo se recompõe. Servimos de manicure de dragão. O capitalismo deve ser acertado em seu coração, romper em seu elo central, para das cinzas nascer uma nova ordem. Uma sociedade onde tudo seja de todos, onde as individualidades sejam respeitadas, não como egoísmo ou diferenças, mas como singularidade. Cada pessoa humana é única. Tem suas limitações, mas também suas capacidades, sua contribuição social, seu crescimento a interação para o desenvolvimento da Convivência Plena. Sumak Kawsay, onde o trabalho humano é valorizado, sendo continuação da Criação, ponte que constrói relações entre os seres humanos. É o trabalho que constrói a riqueza de um povo, que deve servir para aperfeiçoar ainda mais sua convivência. Este Viver Pleno é uma evolução constante, vida plena sempre mais. Isto é Bem Conviver: não há necessitados, pois a cada um é distribuído conforme sua necessidade (cf. At 4,35). Todos os trabalhadores e trabalhadoras têm pão para comer (cf. 2Ts 3,10). Só assim é possível uma sociedade justa.

Por fim, aqui está a necessidade de se manter vivo este propósito: a transformação histórica de nossa sociedade não se dará automaticamente, espontaneamente. Será fruto da insistência dos que se indignam com a injustiça e exploração, da resistência dos oprimidos, da ousadia dos que crêem que a Grande Causa estará esgotada apenas quando Sumak Kawsay for concretizada.

E as lições desta reflexão que podemos tirar: 1) O Pleno Viver, Pleno Conviver é utopia, atual, motivo de luta e caminhada; 2) Utopia não é sonho apenas, é sonho com ciência, um sonho cientificamente possível de se realizar; 3) Esta plenitude só será possível quando houver unidade – na luta, na organização, na utopia – é nossa tarefa tornar as Grandes Causas em Uma Grande Causa, que é a Causa dos Trabalhadores e Trabalhadoras; 4) Não se constrói uma Casa em cima de areia, nem em cima de um terreno minado, o Sumak Kawsay não pode ser construído sobre o capitalismo, que tem em sua essência a exploração do trabalho humano; 5) A vocação da pessoa humana é viver em plenitude, por isso, é capaz de transformar a sociedade – Sumak Kawsay é possível!

Mauro Kano

CEPIS, São Paulo, SP