A máquina de trair palavras

A máquina de trair palavras

Eduardo GALEANO


Sigmund Freud o tinha aprendido de Jean-Martinn Charcot: as idéias podem ser implantadas na mente humana por hipnotismo,.

Passou mais de um século. Desde então, houve um grande desenvolvimento da tecnologia da manipulação. Uma máquina colossal, do tamanho do planeta, nos manda repetir as mensagens que nos introjeta. É a máquina para “trair palavras”.

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O presidente da Venezuela, Hugo Chavez, tinha sido eleito, e reeleito, por uma grande maioria, com comícios muito mais transparentes do que a eleição que consagrou George W. Bush nos Estados Unidos.

No ano de 2002, a máquina deu força ao golpe de estado que tentou derrubá-lo. Não pelo seu estilo messiânico e nem pela sua tendência à verborragia, mas, com certeza, pelas reformas que tinha proposto e as heresias que tinha cometido. Chavez tocou os intocáveis. Os intocáveis, donos dos meios de comunicação e de quase todo o resto, começaram a gritar mais alto que puderam. Com toda liberdade, denunciaram o extermínio da liberdade. Dentro e fora das fronteiras, converteu Chavez num “tirano”, num “autocrata delirante” e num “inimigo da democracia”. Contra ele estava a “cidadania”. Com ele estavam “as turbas”, que não se reuniam em locais mas em “tocas”.

A campanha mediática foi decisiva para a avalanche que desembocou no golpe de estado, programado de longe contra esta feroz ditadura que não tinha nem um preso político só. Então, ocupou a presidência um empresário, votado por ninguém. Democraticamente, como primeira medida de governo, dissolveu o Parlamento. Ao dia seguinte, subiu a Bolsa; mas uma mobilização do povo devolveu a Chávez o seu lugar legítimo. O golpe mediático só tinha podido gerar um poder virtual, como comentou o escritor venezuelano Luis Britto García; e pouco durou. A televisão venezuelana, baluarte da liberdade de informação, não se inteirou da desagradável noticia.

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Enquanto isso, outro votado por ninguém, que também chegou ao poder por um golpe de estado, reluz com êxito no seu novo look: o general Pervez Musharraf, ditador militar do Paquistão, transfigurado pelo beijo mágico dos grandes meios de comunicação. Musharraf ganha as eleições que fabrica, mas o único voto no que acredita é o voto de obediência à chamada «comunidade internacional».

Quem te viu e quem te vê: ontem Musharraf era o melhor amigo de seus vizinhos, os talibans, e hoje se converteu no líder liberal e valente da modernização do Paquistão».

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E com tudo isto, continua a matança de palestinos, que as fábricas da opinião pública mundial chama «caçada de terroristas». Palestino é sinônimo de «terrorista», mas o adjetivo jamais se adjudica ao exército do Israel. Os territórios usurpados pelas contínuas invasões militares se chamam sempre «territórios em disputa». E os palestinos, que são semitas, resultam ser «anti-semitas». Há mais de um século, eles estão condenados a expiar as culpas do anti-semitismo europeu e a pagar, com sua terra e com seu sangue, o holocausto que não cometeram.

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Existe um grupo de acomodados na Comissão de Direitos humanos das Nações Unidas, que aponta sempre para o sul e nunca para o norte.

Cada ano, os governos dos países que integram a Comissão disparam contra a vítima da vez. Nenhum deles diz: «Faço-o para que me comprem o que vendo», nem: «Faço-o para que me emprestem o que preciso», nem: «Faço-o para que afrouxem a corda que me aperta o cangote». A arte do bom governo permite não pensar no que se diz, mas proíbe dizer o que se pensa.

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«Comunidade internacional» é, também, o pseudônimo que ampara as grandes potências em suas operações militares de extermínio, ou «missões de pacificação». Os «pacificados» são os mortos. Nas guerras, os que lançam as bombas são as «forças aliadas» e os bombardeados, «hordas de fanáticos», que deixam no chão um rio de cadáveres: se forem civis, velhos, mulheres e meninos que pagam contas alheias, chamam-se «danos colaterais».

Para explicar suas guerras, o presidente Bush não diz: «O petróleo e as indústrias das armas precisam delas, e meu governo é um oleoduto e um arsenal». Também não diz, para explicar seu multimilionário projeto de militarização do espaço: «Vamos anexar o céu, como anexamos o Texas». Nada disso: é o mundo livre quem deve defender-se da ameaça terrorista, aqui na terra e além das nuvens, embora o terrorismo tenha demonstrado que prefere as facas de cozinha aos mísseis. Talvez seja por isso que os Estados Unidos se opõem ao Tribunal Penal Internacional, nascido para castigar o terrorismo de estado.

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Por regra geral, as palavras do poder não expressam seus atos, mas sim os disfarçam; e isso não tem nada de novo. Faz mais de um século, na gloriosa batalha do Omdurman, no Sudão, onde Winston Churchill foi cronista e soldado, 48 britânicos ofereceram suas vidas. Além disso, morreram 27 mil selvagens. A coroa britânica levava adiante a sangue e fogo sua expansão colonial, e a justificava dizendo: «Estamos civilizando a África através do comércio». Não dizia: «Estamos comercializando a África através da civilização». E ninguém perguntava aos africanos o que opinavam do assunto.

Mas nós temos a sorte de viver na era da informação, e os gigantes da comunicação maciça amam a objetivi-dade. Eles permitem que se expresse, também, o ponto de vista de inimigo. Durante a guerra do Vietnam, por exemplo, o ponto de vista inimigo ocupou três por cento das notícias difundidas pelas cadeias ABC, CBS e NBC.

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A propaganda, confessa o Pentágono, forma parte do gasto bélico. E no ano 2002 a Casa Branca contratou a perita publicitária Charlotte Beers, que tinha imposto no mercado local certas marcas de comida para cachorros e de arroz para pessoas, para impor no mercado mundial a cruzada terrorista contra o terrorismo. «Estamos vendendo um produto», explicava Colin Powell.

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«Para não ver a realidade, a avestruz afunda a cabe-ça no televisor», comprova o escritor brasileiro Millor Fernandes.

A máquina dita ordens, a máquina atordoa.

Mas em 11 de setembro do ano 2001, também ditaram ordens, também aturdiram, os alto-falantes da segunda torre gêmea a de Nova Iorque, quando começou a ranger. Enquanto as pessoas fugiam, voando escada abaixo, os alto-falantes mandavam que os empregados voltassem para seus postos de trabalho.

Salvaram-se os que não obedeceram.

 

Eduardo GALEANO

Montevidéu, Uruguai