A participação popular, a organização coletiva e a luta pela transformação social

 

Eduardo Rezende Pereira, Karina Bispo

“A utopia está lá no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar” Frase atribuída a Fernando Birri, citado por Eduardo Galeano (1994).

Os processos ditatoriais vivenciados em diversos países latino-americanos no século passado, e as recentes movimentações golpistas vividas nessas primeiras décadas do século atual, mostram o quão perigoso são certos projetos, mesmo que, em alguns casos limitados, em prol dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, da soberania e da libertação dos povos, são caracterizadas como inimigos do capitalismo neoliberal — esse sistema de desvínculo, como dizia o escritor uruguaio Eduardo Galeano, que não dá de comer aos famintos de pão, e nem de amar aos famintos de abraços.
Isto ocorre, porque um povo, que pensa com sua própria cabeça e que constrói o seu destino com suas próprias mãos, que é, portanto, protagonista de sua própria história, subverte a lógica necessária àqueles que estão no poder: é necessário, à dominação dos povos e dos seus recursos e territórios, que haja obediência e comodidade, para que o sistema, que beneficia a classe dominante, seja mantido e, assim, aprofundado.
As revoluções triunfantes latino-americanas demonstram que é possível tal subversão. Que é possível que o povo se organize, construa e coloque em prática um projeto político de transformação radical da sociedade. Um projeto que tenha a vida, e não o lucro, como o centro do debate, e a coletividade, e não o individualismo, como caminho a ser seguido.
O povo em primeiro lugar
Elaborar, aprimorar e propagar um projeto de sociedade, que coloca o povo em primeiro lugar, envolve um tipo de participação e de democracia que estão além das atuais experiências permitidas pelas instituições e pelo direito constituído pelas classes dominantes, justamente porque essas experiências demonstram estar muito distantes de cumprir o objetivo de dar, ao povo, o poder, ou seja, a efetiva capacidade de decidir sobre suas próprias urgências no presente e projeções e desejos para o futuro.
A participação popular envolve, necessariamente, a ampliação daquilo que concebemos por cidadania, e se dá no próprio processo em que caminhamos para sua radicalidade. Ela se materializa na auto-organização da classe trabalhadora: é feita coletivamente pelo povo, no tempo presente, em direção aos seus próprios interesses e materialização de seus sonhos, que só irão se realizar plenamente com uma participação popular ainda maior. É, portanto, peça fundamental, e muito pedagógica em seu fazer, para o nascimento de uma nova sociedade. É o que chamamos, com referência ao educador brasileiro Paulo Freire, por educação popular.
Participação é organização e ação
Para que o processo de transformação radical da sociedade possa ocorrer, é necessário que o povo esteja em movimento, em luta, pois participação popular é ter o povo como parte na organização e na ação. As experiências históricas demonstram que são várias as questões que servem como chama no pavio da indignação popular. O povo se movimenta quando nota que, mesmo que seja dura, a realidade que o cerca é passível de mudança; se movimenta quando sente que pode ganhar ou perder algo que lhe é muito caro. Esta convicção entre os oprimidos, por sua vez, só se dá na compreensão de que, coletivamente, temos mais força para alterar a realidade, do que sozinhos.
O que nos movimenta
São diversas as questões que afligem os povos, sobretudo, os que tiveram as páginas de suas histórias marcadas pela exploração e pela colonização: a violência do Estado; a miséria promovida pelas classes dominantes; as desigualdades de classe, raça e gênero; a falta de acesso aos direitos sociais; as precárias condições de trabalho…
No caso da juventude, temos visto, nos últimos anos, que a falta de acesso ao emprego, a violência policial, a ausência de políticas de incentivo ao lazer e cultura e, sobretudo, as questões relacionadas à educação — desde o acesso e a permanência nas instituições à qualidade do ensino público — têm se tornado as principais pautas de mobilização.
Essas pautas de mobilização são resultados do projeto de miséria e exploração feito pelas classes dominantes. Muitas dessas pautas, que tem apelo no seio da sociedade, que mobilizam a juventude e outros seguimentos sociais, são apropriadas pelo neoliberalismo, sob o discurso da autonomia; mascaradas pela política do possível, sob a ótica de que as instituições ou as figuras públicas, por si só, conseguem responder aos problemas coletivos; e, ainda sob o véu da política do possível, atrelado ao discurso derrotista, que de nada vale a pena lutar, pois eles, os nossos inimigos, são maiores do que nós.
A juventude demonstra ter muito protagonismo em processos de lutas por reformas e revoluções. Atuamos com essa categoria social por seu papel histórico nas lutas contra o projeto das classes dominantes: é a juventude, antessala da vida adulta, que sofre diretamente com os efeitos dos aparelhos repressivos e ideológicos do Estado, por um lado, e que permite a oxigenação das mobilizações populares e a renovação dos quadros das organizações políticas, por outro.
Os desafios à organização popular
Lutamos porque concebemos que a história é movimento — que vale a pena sonhar e dedicar tempo e energia para a construção de uma outra realidade que é possível. O principal desafio dos movimentos sociais é a capacidade de direcionar as diferentes pautas, que geram indignação individual, à organização coletiva: capacidade de criar sentido entre a aflição pessoal com uma pauta específica ao sentimento coletivo por um projeto de transformação social mais amplo. Isto, porque, é justamente na organização coletiva que se madura a compreensão de que todos os anseios do povo só poderão ser suprimidos numa realidade em que sejam esses os interesses previstos na agenda daqueles que detém o poder.
Além desse principal desafio, deve-se destacar a própria sobrevivência ideológica e material das organizações coletivas, que, em tempos de avanço do conservadorismo, sofrem
com a desmoralização e a violência patente. No Brasil, por exemplo, a criminalização, a prisão e a morte de lideranças operárias e camponesas e a perseguição contra entidades representativas e organizações populares, são frutos da combinação do avanço do movimento neofascista com o projeto neoliberal.
Tudo isso gera uma sensação de pressão, medo e impotência no interior da sociedade. Cria um sentimento de paralisia diante da derrota política, que é maior do que a força popular. E, então, fica a questão: é possível construirmos esperança, num mundo que desaba?
Outra realidade é possível
A história nos mostra que nenhum prognóstico pessimista se sustenta de verdade. Outra realidade é possível, e as experiências revolucionárias latino-americanas demonstram que, sob difíceis e diferentes conjunturas, as lutas populares podem avançar.
O cultivo da memória dessas experiências e o exemplo de lutadores e lutadoras — que não é saudosismo ou personalismo, mas prática de aprendizagem —, o exemplo pedagógico dos que lutam, aos que ingressam na luta, a prática política cotidiana — que gera pequenas e relevantes vitórias no presente — e a própria projeção de sonhos para o futuro, criam o cimento que dá sustentação às organizações coletivas e à participação popular.
A disposição à luta é despertada por diferentes motivos, muitos deles extremamente pessoais e imediatos. Vemos isso constantemente em nossa atuação com a juventude. É a solidariedade e o companheirismo, que se materializam dentro das organizações coletivas, mas também fora delas, e que são parte do sentimento de participação popular, que rompem aquilo que o poeta brasileiro Thiago de Mello apelida por “solitária vanguarda de nós mesmos”. Para ele, “se trata de ir ao encontro (...). Se trata de abrir o rumo. Os que virão, serão povo, e saber serão, lutando”.