A pátria grande e a outra economia

A pátria grande e a outra economia

Valter Pomar


Vivemos um momento de crise. Crise econômica, social, política, militar, ideológica, ambiental, energética. Alguns falam em crise civilizacional.

A crise não é igual para todos. Pessoas e países experimentam e reagem à crise de maneiras diferentes.

Como serão as coisas depois da crise? Podem ser iguais, piores ou melhores, a depender das soluções que prevaleçam aqui e agora, hoje e amanhã. Da reação que tenhamos frente à crise, pode surgir um mundo melhor.

Nossa América Latina e Caribenha já deu vários exemplos de como as crises podem ser momentos de mudança.

Quando a Europa entrou em crise, na Era das Revoluções (1750-1850), o Novo Mundo aproveitou para seguir um caminho próprio, através das independências.

Depois, as metrópoles européias e os Estados Unidos converteram novamente nosso território em fonte de riquezas, mercado consumidor e local para exportação de capitais. Antes colonialismo, agora imperialismo, as veias seguiam abertas.

Quando veio a nova crise, entre 1914 e 1945, com direito a duas Guerras Mundiais e uma grande depressão econômica, parcelas importantes da nossa região conseguiram industrializar-se, buscando somar independência política com independência econômica.

Na década de 1970, nova crise. Para enfrentá-la, os grandes capitalistas deflagraram uma campanha ideológica, política e econômica cujo objetivo era desmontar todos os avanços e conquistas que os trabalhadores e os povos haviam conseguido, depois de 1945.

A lista de vítimas do neoliberalismo é extensa: os países africanos que haviam conquistado sua independência política, foram recolonizados economicamente; os países latino-americanos envolvidos na crise da dívida externa tiveram suas economias destruídas, privatizadas e saqueadas; na Europa, começou o desmonte das políticas de bem-estar social; e o socialismo existente na URSS caiu sob o efeito combinado de seus próprios problemas e dos ataques externos.

Os neoliberais pensaram que este seria o fim da história. Mas desde 2007 vivemos uma nova grande crise, com três dimensões: a crise do neoliberalismo (ou seja, da economia controlada por grandes bancos e transnacionais); a crise dos Estados Unidos (que como todo Império, chegou naquela fase em que não consegue mais financiar os custos de sua própria manutenção); e a crise do Velho Mundo (que desde 1500 hegemoniza o mundo, mas agora está vendo o poder deslocar-se em direção à outras regiões do planeta Terra).

Esta crise pode constituir-se numa grande chance para a América Latina e Caribenha construir uma alternativa para si e ajudar a construir uma alternativa para o mundo.

Nossa região possui enorme potencial natural, aquífero, biogenético, energético, humano, cultural, tecnológico e político. Este potencial está distribuído por todo o território continental. Este é um dos motivos que tornam necessária a integração regional, através de instituições como a Unasul e a CELAC (Comunidade de estados latino-americanos e caribenhos).

Precisamos de um modelo de integração que esteja à serviço de melhorar a vida da maioria de nossos povos. Isto significa integração política e cultural, mas também integração social e econômica.

Precisamos sair da situação atual, onde temos uma economia à serviço de gerar lucros para uma minoria, para uma economia organizada em torno do objetivo de elevar continuamente a qualidade de vida de todos.

Uma economia que coloque a riqueza produzida pela população latino-americana, à serviço dos que produziram esta riqueza.

Isto exige três grandes mudanças.

A primeira mudança é acabar com a ditadura dos bancos e da especulação financeira. No curto prazo, reduzir a taxa de juros e empurrar o capital especulativo em direção ao investimento produtivo. No médio prazo, reformar o sistema financeiro, fortalecendo o setor financeiro público, criando um banco público para financiar os pequenos/médios e democratizando o setor privado.

Democratizar o setor privado significa estabelecer um limite para o tamanho dos bancos privados: o modelo atual, de poucos bancos gigantescos, deve ser substituído por um novo modelo, onde coexistirão vários bancos públicos de grande porte e alguns bancos privados de médio porte.

A segunda mudança é acabar com o oligopólio das transnacionais (ou seja: um pequeno número de empresas, que controlam toda uma área econômica).

As transnacionais não têm compromisso com os interesses nacionais, nem têm compromisso com as necessidades populares.

Nas áreas essenciais para a segurança e o bem-estar da população --tais como a produção e distribuição de alimentos, saúde e produção de remédios, educação e comunicação, fornecimento de água e saneamento, telefonia e energia elétrica, gás e petróleo, entre outras-- é preciso ampliar a presença de empresas públicas, de empresas cooperativas, de empresas de médio e pequeno porte.

No médio prazo, precisamos reorganizar o parque produtivo nacional e regional. Precisamos de autonomia em todos os ramos fundamentais da indústria moderna, para não dependermos de outras regiões do mundo. E precisamos, também, de maior capacidade produtiva, para atender as necessidades quantitativas e qualitativas do conjunto da população latino-americana e caribenha.

A terceira mudança é realizar quatro grandes reformas estruturais: a reforma tributária, a reforma agrária, a reforma urbana e a Consolidação das Leis Sociais.

A reforma tributária visa adotar um sistema progressivo de impostos, onde quem tem mais, paga mais. E onde exista um imposto sobre grandes riquezas.

A reforma agrária, associada a maior investimento nos pequenos e médios proprietários rurais, visa ampliar a produção de alimentos, barateando o preço da comida para a maioria da população e garantindo os estoques necessários para que tenhamos segurança alimentar.

A reforma urbana visa diminuir o custo e melhorar a qualidade de vida dos que vivem nas cidades (no caso do Brasil, 80% da população), através do transporte coletivo, da garantia de habitação decente e da reconstrução de nossas cidades.

A Consolidação das Leis Sociais permitirá a formação de uma população politizada, solidária, profundamente culta e altamente produtiva.

De um lado, trata-se de universalizar as políticas sociais de saúde e educação, cultura e esportes, comunicação, ciência e tecnologia.

De outro lado, a Consolidação das Leis Sociais significa ampliar os direitos do Trabalho: menor jornada de trabalho, maiores salários, aposentadoria digna.

Para fazer as mudanças citadas acima, os países mais ricos da região (como Brasil, Argentina e Venezuela) terão que ajudar os países mais pobres (como Paraguai e Nicarágua).

A integração é necessária para superar tanto as desigualdades sociais, quanto as desigualdades regionais. A integração também é necessária para enfrentar a oposição política das grandes potências (como os Estados Unidos) e das classes dominantes de cada país da região, que lançam mão de diversos mecanismos para manter a sociedade funcionando a seu serviço.

Por tudo isto, a integração exige a formação de uma consciência latino-americana, democrática e popular, comprometida com um novo mundo.

Hoje, a maioria dos que vivem em nosso continente formam sua visão de mundo com base nas idéias difundidas pela indústria cultural, pelos grandes meios de comunicação, pelas escolas tradicionais e por visões religiosas conservadoras. Além disso, a maioria trabalha submetida à uma disciplina concebida exatamente pelos que controlam a sociedade que queremos mudar.

Para mudar isto precisamos de investimento público em cultura, democratização da comunicação social, mudança no conteúdo dos currículos escolares e reforma política.

Se não fizermos isto, se nos contentarmos em reconstruir aquilo que foi destruído pelo neoliberalismo, ao final da operação estaremos de volta ao ponto de partida, ou seja, a como éramos e vivíamos antes do neoliberalismo, época em que nossos pais e avós lutavam por um mundo melhor, porque aquele também lhes parecia insuportável.

Nosso desafios são enormes. Há motivos de otimismo? Sim, claro. Nunca os setores populares latino-americanos tiveram tanta força. Precisamos aproveitar esta força para realizar as mudanças necessárias.

Se tivermos êxito, teremos Pátria Grande.

 

Valter Pomar

São Paulo, SP