A questão da propriedade
A questão da propriedade
Paul SINGER
1. Como funciona o capitalismo hoje em dia
Com o advento do capitalismo turbinado pelo neoliberalismo, tanto a renda como a propriedade da riqueza vêm se concentrando cada vez mais. A sociedade se polariza entre um pólo absurdamente rico, formado por herdeiros de fortunas, altos executivos de empresas transnacionais, artistas e esportistas de sucesso, etc. e um pólo miserável, formado por excluídos [outsiders] da atividade econômica pelo desemprego crônico, pela idade ou por doenças e outras causas de invalidez (sem mencionar os milhões que moram em regiões intocadas pelo progresso).
Entre estes dois pólos se move a maioria das pessoas, tangida pela ambição de ascender à riqueza e à fama e/ou pelo medo pânico de cair na pobreza. Poucos escapam da roda viva de competição por educação (quando se é jovem), por emprego (quando se é adulto) e por uma aposentadoria (quando se envelhece). Muitos têm a ilusão de que se movem pelo seu próprio esforço, sem perceber que são joguetes das oscilações de sua economia nacional, quase sempre condicionadas pelas vicissitudes da economia global.
O que impulsiona o capitalismo é a acumulação do capital, condicionada pela competição entre as empresas, acirrada pelo progresso científico, que acelera os ganhos de produtividade e cria novas necessidades e hábitos de consumo; e pela movimentação do capital produtivo pelo globo, à caça de locais para se implantar, em que os custos de produção sejam os mais baixos e com acesso fácil ao mercado mundial. Ambas as tendências resultam da busca da taxa máxima de lucro pelos capitalistas e das lutas dos trabalhadores por salários decentes e proteção contra os riscos à saúde e os percalços da velhice. Para escapar destas pressões, os capitalistas tratam de colocar seu dinheiro em paraísos fiscais e suas plantas em «paraísos sociais».
No capitalismo, muitos são os chamados ao mercado do trabalho, mas bem menos os escolhidos. Os que sobram e continuam disputando empregos favorecem os que manejam o capital, pois tornam os que têm empregos ansiosos por agradar e conformados com o que ganham. Com o desemprego em massa, os sindicatos são impedidos de levar os assalariados a lutas para participar dos ganhos de produtividade, que dessa maneira podem ser integralmente embolsados pelo capital privado.
2. A alternativa de um outro mundo
Mas, o desemprego em massa e a redobrada exclusão social vêm sendo enfrentados por suas vítimas mediante a paulatina construção de outra economia totalmente diferente da capitalista, conhecida como economia solidária (ou socialismo do século XXI). Seus integrantes se organizam em empreendimentos coletivos e disputam mercados às empresas capitalistas. Os empreendimentos de economia solidária são propriedades coletivas dos que neles trabalham, que os geram de forma democrática, com participação de todos na tomada de decisões, cada pessoa tendo um voto. Os ganhos são compartilhados por todos, segundo regras acordadas desta forma. Assim, logram escapar da miséria, da competição desmoralizante por empregos escassos e da entrega a condições precárias de trabalho.
É diante desta possibilidade que se coloca a questão da propriedade. Para produzir, as empresas de trabalhadores têm que possuir meios de produção, próprios ou arrendados. E para tanto, têm de dispor de dinheiro. Ora, é exatamente isso o que falta aos trabalhadores. A riqueza produzida pela sociedade é monopolizada pelo sistema financeiro capitalista, que a encaminha exclusivamente aos que já dispõem de capital (os fundos que os bancos e fundos não desejam investir desta forma são, em geral, aplicados em títulos da dívida pública). Este monopólio de acesso ao excedente de riqueza é que assegura aos donos do capital o domínio sobre as classes não proprietárias. Os trabalhadores são induzidos a depositar seu dinheiro em bancos ou fundos, que jamais os financiam quando querem iniciar algum empreendimento -próprio.
Não obstante, os trabalhadores têm conseguido romper o monopólio do capital sobre o excedente acumulável, apossando-se de partes deles através de seguidas lutas. Uma das mais notórias é a que visa a eleição de governos comprometidos com a transferência a grupos de trabalhadores organizados dos meios de produção de que precisam. Outra é pela reforma agrária, que promove a redistribuição da -propriedade do solo aos que dela carecem e é o que já vem ocorrendo no Brasil, na Venezuela e em outros países. Estão sendo capitalizados por políticas públicas cooperativas de catadores de lixo, que se dedicam à coleta seletiva e à reciclagem de resíduos sólidos. E cooperativas de camponeses, pescadores, costureiras, quebradeiras de cocos, seringueiros, artesãos, mantenedores e recicladores de equipamentos de informática, músicos e outros produtores culturais, etc.
Uma luta cada vez mais vitoriosa é a dos trabalhadores de empresas em crise, que se organizam em coo-perativas e obtêm em arrendamento a massa falida, o que lhes permite recuperar a empresa, que acabam adquirindo posteriormente em hasta pública. Multiplicam-se também associações ou cooperativas de produtores autônomos ou familiares, que conseguem adquirir meios de produção por meio do microcrédito (hoje, no Brasil, oficializado em lei de iniciativa do governo federal).
3. Um outro regime de propriedade e de gestão da atividade produtiva: a posse coletiva e a autogestão
Na medida em que a Economia Solidária cresce e avança qualitativamente, o acesso à propriedade dos meios de produção por parte dos trabalhadores não pode mais depender unicamente de medidas do poder público. É preciso que os excedentes resultantes das atividades produtivas da própria Economia Solidária possam ser capitalizados em favor da expansão e melhora dos empreendimentos já existentes e da criação de novos.
Para tanto, é preciso construir um outro sistema financeiro, cujos fundos se destinem ao desenvolvimento da economia solidária e à construção de uma sociedade em que o acesso ao excedente social seja democraticamente acessível a todos. Nos últimos anos, um sistema deste tipo começou a ser erguido, composto por fundos rotativos, cooperativas de crédito e bancos comunitários. O que caracteriza estas entidades financeiras é a autogestão: elas são operadas e dirigidas pelos próprios associados, que nelas depositam suas economias e delas obtêm os financiamentos de que necessitam.
A luta histórica dos socialistas contra o capitalismo tinha por objetivo eliminar a propriedade privada dos meios de produção, socializando-os. Como não estava claro como a sociedade poderia se apropriar de todos os meios de produção, a proposta concreta que surgiu foi a de estatizá-los. Isto foi realizado em muitos países, ao longo do século passado, mas só na Iugoslávia as empresas estatais foram entregues aos trabalhadores em autogestão. Nos demais países, os meios de produção estatizados continuaram sendo geridos de forma tão autoritária como os de propriedade privada capitalista. Ou mais até, porque a competição entre as empresas foi excluída mediante a centralização das decisões em um órgão estatal de planejamento de toda economia nacional. O resultado foi um sistema em que «tudo o que não era proibido era obrigatório», ou seja, em que as liberdades civis e políticas dos cidadãos eram praticamente inexistentes.
Como reação a estas experiências surge agora, no alvorecer do século XXI, uma outra proposta socialista: manter o direito de propriedade privada dos meios de produção, mas torná-lo efetivamente acessível ao conjunto da sociedade. Portanto, quebrar o monopólio da classe capitalista sobre a intermediação financeira e o fornecimento de meios de pagamento, e desenvolver ao seu lado um sistema autogestionário possuído e gerido em conjunto pelos trabalhadores que o operam e os usuários que o lastreiam com os depósitos de suas poupanças.
Isso no que se refere especificamente ao regime de propriedade. Mas, a economia solidária em construção exige outras mudanças institucionais: tornar a administração pública muito mais participativa, complementar a democracia representativa com procedimentos de democracia direta, desenvolver instrumentos de coordenação, planejamento e fomento de atividades econômicas em nível comunitário e, sobretudo, tornar perenes os programas de redistribuição de renda, possivelmente sob a forma de uma renda cidadã de acesso universal que garanta a cada um o direito à vida, à saúde e à satisfação de suas necessidades essenciais.
Paul SINGER
São Paulo, SP, Brasil