A Reinvenção das Nacões Unidas
A Reinvenção das Nacões Unidas
UMA ORGANIZAÇÃO INDISPENSÁVEL
Miguel D’Escoto, Leonardo Boff
Afirmamos que as Nações Unidas (ONU) é uma organização indispensável para a salvação do mundo, embora estejamos plenamente conscientes do pouco sucesso que tem tido ao longo de todo o tempo de sua existência. Não obstante isso, as instituições não devem ser avaliadas só pela quantidade de coisas “boas” que pode ter feito. Sua avaliação deverá ser baseada na consecução de sua razão de ser. De fato, coisas que objetivamente podem ser boas, institucionalmente podem chegar a ser consideradas más se nos afastam das obrigações essenciais da instituição e nos fazem pensar que as coisas andam bem.
A ONU foi criada com um único propósito: deter o que se temia ser uma onda irreversível de conflitos bélicos como os dois grandes na primeira metade do século XX. Imaginou-se que era preciso se pôr de acordo conforme um código de comportamento civilizado entre as nações e criar uma instância judicial para dirimir controvérsias sem ter de recorrer a guerras.
Pensou-se também que, além de respeitar o império do direito nas relações internacionais, era imprescindível desativar alguma bomba de tempo que mais cedo ou mais tarde poderia estourar em outra guerra mundial ainda mais sangrenta que as duas anteriores: a fome e a pobreza existentes já há 64 anos. Estas foram as razões que levaram à assinatura da Carta de São Francisco e à criação das Institucionais de Breton Woods, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, que, na verdade, em vez de propiciar a superação da pobreza no mundo, têm contribuído para aprofundá-la mais.
Cabe notar que, na época de sua criação, a ONU não tinha a consciência da questão ambiental e das graves ameaças que no futuro iriam desafiar todos os povos. Buscava com razão o Bem Comum de todas as sociedades que hoje, com a consciência que temos, deve ser enriquecido com o Bem Comum da Terra e da Humanidade.
Analisada a ONU a partir desses dois objetivos essenciais, não podemos deixar de constatar que infelizmente não atingiu seus propósitos. Isso se evidencia pelo triste fato de que, a uma obrigação tão importante como a declaração do Estado Palestino, continua sem se lhe dar cumprimento, e agressões genocidas e invasões, como as atuais contra o Iraque e o Afeganistão, que continuam matando centenas de milhares de pessoas, geralmente inocentes, continuavam impune.
A imensa maioria dos habitantes da Terra considera a ONU uma instituição enfraquecida, ineficaz e até desnecessária. O país mais poderoso da Terra, pouco preocupado com o futuro-ecológico da Mãe Terra, ajudou a desmoralizar a ONU ao não respeitar suas decisões, comportar-se como seu dono e manipular a seu capricho o Conselho de Segurança.
Não obstante, mesmo reconhecendo todas estas críticas como válidas, não duvidamos em afirmar que a solução não está em esquecer a ONU. É nossa Organização. Foi criada em nome de “nossos povos”, e estes povos consideram abusivo e antidemocrático o privilégio que alguns poderosos se arrogam de interpor vetos e assim bloquear questões fundamentais para o mundo.
Tudo isso podemos e devemos mudar se quisermos que a ONU esteja a serviço da Paz e da Vida, e que nela se respeite o princípio da igualdade soberana de todos os Estados-membros; sem privilégios de nenhuma espécie para ninguém; em que decisões que afetam a todos sejam tomadas por todos e não somente pelo pequeno grupo que detém o privilégio injusto de apor veto; uma Organização na qual todos sejam igualmente obrigados a se abster de cometer crimes contra a dignidade da Mãe Terra e da Humanidade ou, do contrário, se ater às consequências, independentemente de que sejam, ou não, parte dos tratados ou protocolos pertinentes. O fato de não ser parte de um tratado não equivale a ter uma licença para cometer o tipo de crimes que o tratado pretende evitar.
Para salvar a ONU, é preciso refletir um pouco sobre como um desvio tão dramático dos propósitos fundacionais pôde ocorrer. Não se pode negar que não convinha aos poderosos ter uma instância mais alta à qual se devessem submeter. Por causa disto, não se acreditou no poder da lei nas relações internacionais. Infelizmente a lei da selva, ou seja, o direito do mais forte, continua dominando. Negamo-nos a aceitar que algum país reivindique exceções. A Mãe Terra não conhece um “Destino Manifesto”, porque todos os povos são seus filhos e filhas queridos, e todos, com igual dignidade e direitos, moram na mesma Casa Comum.
Ao longo dos anos, na ONU foram sendo introduzidas normas de procedimentos cujo único objetivo foi limitar o poder da Assembleia Geral, centro nevrálgico de todo o sistema da ONU, e reduzir o presidente da Assembleia Geral a uma figura meramente protocolar, apesar de que, segundo a Carta, é o mais alto funcionário da Organização com status de chefe de Estado, e o Secretário-Geral é somente o chefe da imensa burocracia, submetido muitas vezes a pressões insuportáveis por parte dos países abastados.
Tudo isso, contudo, pode ser mudado. O poder da Assembleia Geral, do Grupo dos 192, pode ser resgatado e, em grande parte, o foi durante o 630o período de sessões. Este resgate do poder da Assembleia Geral, quer dizer, a democratização da ONU, é possível e deve continuar.
Para contribuir para este resgate do poder de “nossos povos” dentro da ONU, nós nos propusemos trabalhar em:
I Uma Declaração Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade como documento essencial para a reivindicação da ONU e que complemente a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Estamos conscientes de que o excessivo antropocentrismo, a cobiça e o egoísmo da cultura dominante dificultarão a adoção da dita Declaração, mas conseguiremos.
II Uma Carta da Organização em sintonia com as exigências do século XXI, que deverá garantir nossa sobrevivência, promovendo o Bem Comum da Terra e da Humanidade.
III A criação de um Tribunal de notáveis, procedentes das cinco regiões que integram a ONU, para conhecer acusações de crimes contra o Bem Comum da Terra e da Humanidade, interpostas por membros da Organização. Seu funcionamento seria semelhante ao da atual Corte Internacional de Justiça, com a difererença de que as condenações não poderão ser ignoradas, como fizeram os Estados Unidos no caso interposto pela Nicarágua contra ele em Haia.
Miguel D’Escoto
Presidente da Assembleia da ONU 2008-2009
LEONARDO BOFF
Professor Emérito de Ética da Universidade do Rio de Janeiro