A religião do mercado

A reeligíao do mercado
Só as religiões, unidas, podem enfrentá-la

Paul F. KNITTER


O que me proponho sinalizar é por que esta tarefa -vincular o diálogo inter-religioso com a libertação inter-religiosa- é hoje mais urgente e mais complexa do que nunca. A minha tese, se assim pode ser chamada, é que a razão principal e a causa essencial da crescente injustiça econômica no mundo e da pobreza desumanizante que resulta de tal injustiça é, em si mesma, religiosa. As forças que estão gerando tanta riqueza e ao mesmo tempo tanta disparidade na sua distribuição converteram-se elas mesmas em uma religião. O mercado livre global se tornou uma religião exclusivista mundial. As religiões do mundo, tanto individual como inter-religiosamente, devem participar de um diálogo libertador profético com esta nova religião mundial. Sem um diálogo inter-religioso com a religião do mercado, não se poderá desafiar e «converter» eficazmente o poder desumanizante do mercado. Seja-me permitido explicar.

A religião do mercado

Ao contrário da afirmação de Samuel Huntington de que hoje estamos enraizados em um «choque de civilizações», creio que o choque que na realidade está acontecendo – e eu acrescentaria que «não pode deixar de acontecer», não é entre civilizações. É entre religiões! Sem dúvida as religiões que lutam entre si não são as comunidades religiosas tradicionais. Refiro-me mais à oposição fundamental, entre as chamadas religiões mundiais de um lado, e a nova Religião do Mercado de outro lado.

David Loy, em um artigo que provocou ampla discussão, argumentou com cuidado e eloqüência que a religião dominante, a mais extensa em todo o mundo, é a «Religião do Mercado». Especialmente nos paises desenvolvidos como os EUA, Europa e Japão esta é a religião à qual pertence a maioria da população, e a que reclama os seus compromissos religiosos fundamentais. A sua devoção à Religião do Mercado precede e modifica a sua devoção ao cristianismo, judaísmo ou budismo (The Religion of the Market, «Journal of the American Academy of Religion», 65/2 (1997) 275-90).

Para o crente comum, Religião do Mercado significa religião do consumismo. Alguém pratica a sua fé e encontra salvação consumindo nos templos que são «centros comerciais», uma liturgia e uma adoração diárias, não reduzidas ao domingo, ao sábado ou às sextas-feiras.

Para os prelados e poderosos desta nova religião, Religião do Mercado significa a religião do «economicismo» segundo John B. Cobb Jr. Os devotos do «economicismo» colocam a sua fé total, absoluta (e poderíamos acrescentar «cega») na crença de que o crescimento econômico conduzido sem restrições e sem interferência do governo, tanto por pessoas individuais como por países individuais, trará a salvação ao mundo. Em palavras de Cobb:

«O economicismo é essa organização da sociedade que intencionalmente está a serviço do crescimento econômico. Todos os demais valores, inclusive a soberania nacional, se tornam subordinadas a este fim, com a sincera esperança de que uma prosperidade suficiente permitirá ao mundo solucionar também as suas necessidades não econômicas» (Cobb, BCS, 4-5).

Para a Religião do Mercado, que se baseia na fé incondicional no economicismo, o ser humano é um ser econômico (homo economicus), isto é, um ser «...que procura racionalmente obter o maior número possível de coisas com o menor trabalho possível. As suas relações com os outros seres são de competência» (BCS, 11).

Esta Religião do Mercado tem todos os riscos que encontramos nas religiões tradicionais:

* Os seus credos são feitos de economia neoliberal do (Papa) Friedrich von Hayek e o (Ayatollah) Milton Friedman. Os seus teólogos ou «ulemá» (doutores) são os economistas (principalmente economistas ocidentais).

* Os seus missionários são o vasto exército de anunciantes que proclamam a sua mensagem de consumo em «comerciais» que enchem as transmissões de rádio e televisão e nos cartazes publicitários que povoam as nossas cidades e paisagens.

* Os seus centros de aprendizagem são os departamentos de economia de universidades norte-americanas e ocidentais, e o seu tribunal é a Organização Mundial do Coméricio.

* Esta religião tem os seus mandamentos, o pri-mei-ro dos quais é: «Não interferirás no livre mercado». (Ou em forma mais tradicional: «o livre mercado é senhor teu deus, não terás deuses estranhos diante dele»).

* Tem uma teoria da salvação que é clara e absoluta: «Fora do livre mercado não há salvação». Aqueles que não estiverem «dentro» e não forem membros desta religião verdadeira são considerados hereges ou inimigos, a serem controlados ou eliminados.

Diferença entre religiões e religião do mercado

Há uma diferença fundamental, que é uma oposição fundamental, entre a ética do que Cobb chama «economicismo» (ou fundamentalismo de mercado) e a ética das religiões tradicionais. Em formas assombrosamente diferentes, que sem dúvida são também complementares, as tradições abraãmicas (judaísmo, cristianismo, islã), as tradições asiáticas (hinduísmo, budismo, confucionismo, taoísmo) e as religiões indígenas têm um acordo básico de qualquer grau que seja de unidade globalizada que possa alcançar a raça humana, esta unidade tem que se basear em um equilíbrio entre o interesse por um e o interesse por outro.

A ética religiosa sempre é paradoxal. Em uma diversidade de símbolos e com ênfases diferentes todas as tradições religiosas dizem à humanidade que, de forma paradoxal e que também promete, o interesse por um equivale ao interesse pelo outro. A intuição fundamental que está na base das religiões convida as pessoas para uma mudança que lhes encherá de vida e paz, fazendo do interesse por um o interesse pelo outro. Este «outro» sempre é diferente para a mesma pessoa ou é mais do que a consciência que a pessoa tem de si mesma no momento presente. É o Outro com O maiúsculo (a Fonte de Vida Interior de todos), e o outro com o minúsculo: o próximo de cada um.

Assim nos diz Jesus que só nos amaremos verdadeiramente a nós mesmos quando amamos o nosso próximo. Maomé nos adverte que ao cuidar de nós mesmos, ao promover uma boa sociedade, nunca podemos esquecer do cuidado de todos os outros, especialmente dos pobres e abandonados. Para Buda, experimentar a iluminação é sentir compaixão por todo ser sensível. Na ética confuciana, «para que nós mesmos nos afirmemos, devemos ajudar os outros a se afirmarem, para que nós cresçamos, devemos ajudar os outros a crescer...».

Portanto esta é a questão ou desafio que as religiões devem propor aos promotores do livre mercado. A comunidade religiosa deve perguntar aos economistas, aos políticos e aos presidentes corporativos: o interesse por um, que vocês procuram, está equilibrado com o interesse por outro, está inserido nele, é o que o conduz? Certamente não parece ser assim. O princípio condutor do sistema capitalista mundial, governado pelo fundamentalismo do mercado, parece ser: «Se procuramos o interesse por nós mesmos também promoveremos o interesse dos outros».

Isto, segundo as religiões, deve equilibrar com: «Se promovemos o interesse dos outros também realizaremos o nosso próprio interesse». As religiões advertem: se não temos este equilíbrio, se unimos o interesse por nós mesmos com o interesse pelo bem estar dos outros teremos problemas. De fato, esta é a razão pela qual o chamado livre mercado globalizado não está respondendo à grande disparidade da riqueza no nosso mundo globalizado, ou na realidade está sendo a sua causa.

Diálogo inter-religioso com a religião do mercado

Ainda que seja difícil, as religiões tradicionais do mundo devem participar de um diálogo profético e crítico com esta nova Religião universal do Mercado. As religiões devem enfrentar os comandantes e os sumos sacerdotes da globalização e confrontá-los com o «choque», com a diferença fundamental entre a Religião do Mercado e as religiões tradicionais históricas. Os dirigentes e mestres religiosos devem fazer ver claramente que no momento atual, e dada a forma em que a Religião do Mercado entende a si mesma, não é possível que um individuo seja «membro» da Religião do Mercado e ao mesmo tempo seja seguidor de Maomé, de Jesus, Buda ou Abraão. Aqui não cabe a «dupla pertença». A pessoa deve escolher: prostrar-se diante de Deus/Alá/Dharma... ou diante do Mercado.

O diálogo inter-religioso com a Religião do Mercado é extremamente difícil, sobretudo porque o Mercado insiste, como o fez a Igreja Católica em tempos passados e o fazem atualmente muitas comunidades fundamentalistas cristãs e mussulmanas, que é a única religião verdadeira. Todas as outras seriam falsas. Como bem se sabe pela história das relações inter-religiosas, qualquer religião que afirma ser a única verdadeira não dialoga com outra religião: o que procura é convertê-la.

Sem dúvida é sumamente urgente chegar a algum tipo de diálogo ou encontro entre as religiões do mundo e a Religião do Mercado. Se o Livre Mercado assumiu o poder e a dominação de uma religião mundial, ele informa e dirige as vidas das pessoas em forma penetrante como sempre o fez a religião. Por acaso não se trata então de as religiões tradicionais do mundo se colocarem entre os meios principais para se contrapor a esta nova religião idólatra do Mercado? Se às vezes se necessita de fogo para combater o fogo, hoje precisamos das religiões para «combater», sufocar e re-dirigir a Religião do Mercado. Na atualidade só as religiões podem dar aos povos a visão, a energia, a esperança e a perseverança para dialogar com a Religião do Mercado, lutar contra ela e recuperar seus seguidores, que colocaram o deus do consumismo e do crescimento econômico no lugar do único Deus, que nos assegura que cada um de nós só encontrará a verdadeira felicidade se promover a felicidade de todos.

 

Paul F. KNITTER

Cincinati – Nova Iorque, EEUU