A reparação histórica. Velhas raízes, novo desafio
A reparação histórica
Velhas raízes, novo desafio
Pensar que os delitos coletivos internacionais como a conquista, o genocídio, a escravidão, a colonização ou o saque cultural dos povos pudessem ser reparados pelos continuadores históricos daqueles que cometeram-nos ... parece-nos na América Latina algo tão distante e impossível que nem sentido foi tocado. A Conferência de Durban (Sul da África 2001) teve o mérito de levantar a bandeira da reparação e proclamar que não é absurda, que não é impossível, e que lhe assiste todo o fundamento jurídico que podemos imaginar.
O tema, entre nós, ainda não está maduro. Mas uma intuição nos invade: aí está o filão da ver-da-de histórica, uma verdade que se abrirá passo a passo e que também “nos tornará livres”. É a hora de aprofundar essa intuição, ainda que para muitos talvez seja uma loucura...
No dia 27 de junho de 1977 a então denominada “Subcomissão de Prevenção de Discriminações e Proteção às minorias”, do Conselho Econômico e Social da ONU aprovou um informe sobre este tema que é pouco conhecido e que merece ser lido detalhadamente: reconhece o direito à reparação de tais delitos e reconhece como violação “moderna” dos direitos econômicos, sociais e culturais os fenô-me-nos como a dívida externa, os ajustes estruturais, os embargos comerciais, a fraude fiscal... Vejamos um resumo do texto. Trabalhe-o com seu grupo...
34. As ações internacionais ilegais que compro-me-tem a responsabilidade de um Estado para com outros Estados ou para com a comunidade internacional cons-tituem o que se denomina um delito de Estado. O dever de processar e castigar os delitos contra o direito in-ter-nacional recai inicialmente o Estado cujo território foi ultrajado e no qual os autores podem ser capturados.
35. A obrigação de reparar os danos causados recai nos indivíduos, os Estados e em toda comunidade in-ter-nacional. Compete ao Estado e à comunidade inter-na-cio-nal organizar o marco político e legal necessário para levar adiante a campanha contra a impunidade de vio-la-ções dos direitos econômicos, sociais e culturais, indi-vi-duais ou coletivos.
I. A Escravidão
37. A forma sistemática e de maciça em que se rea-lizou a escravidão sobre os povos africanos, foi abso-lu-ta-mente desproporcional em respeito ao que aconteceu em outros lugares. Levada adiante da maneira mais desu-ma-na, foi a que mais custou vidas humanas, a mais des-trui-dora do tecido social e a que produziu o maior saque econômico e cultural que a humanidade conheceu.
38. O longo e doloroso período no qual floresceu o comércio de escravos foi iniciado por indivíduos, con-tinuado por empresas ou companhias e, por último, dirigido e organizado por Estados, todos eles europeus. Durante séculos, milhões de homens, mulheres e crianças foram arrancados de sua sociedade, expatriados e tra-ta-dos da maneira mais desumana e degradante.
39. Não só os povos africanos foram vítimas da escravidão. Os povos indígenas da América foram des-po-jados de todas as suas terras, que passaram a ser ex-plo-rada pela mão de obra gratuita que geradora da escra-vi-dão. O duplo genocídio permanece impune.
40. A escravidão deixou a África num estado de ruína econômica e cultural, do qual nunca se recuperará.
41. A comunidade internacional dos Estado benefi-ciados pela escravidão reconheceram o dano causado aos povos vitimados, mas as desculpas pedidas à África não são suficientes para apagar o crime e desfazer as conse-qüências: extrema pobreza, subdesenvolvimento, misé-ria, enfermidade e ignorância.
42. A escravidão leva ao saque das riquezas e dos recursos dos países vitimados e quando tal exploração continua durante séculos, é inegável que o dano causado é imenso e difícil de avaliar.
II. A Colonização
43. Com o tempo os poderes escravagistas conver-te-ram-se em Poderes coloniais. Os conflitos que prece-de-ram e acompanharam as conquistas coloniais foram brutais e desumano. A partir do Direito internacional, a colonização não é mais que uma tentativa de esta-be-le-cer uma relação de subordinação entre as nações.
44. Os modelos de civilização e desenvolvimento impostos serviram só para aprofundar o trabalho de destruição empreendido pelos colonizadores, que não estavam interessados em ajudar aos povos colonizados. A comunidade internacional, através de seu organismo deliberativo do momento – a Assembléia Geral da Liga das Nações, que estava dominada pelos países ociden-tais, havia autorizado estes países a dividir o terceiro mundo para formar impérios coloniais. Além disto con-ta-vam com o apoio da comunidade internacional para saquear o terceiro mundo e desapropriar os povos co-lo-nizados de quase todas a suas terras e propriedades. Deste modo, sentiram-se fortalecidos para não se deter diante de nenhuma forma de exploração.
45. A escravidão e a colonização acabaram arrui-nan-do o terceiro mundo, que nunca pode se recuperar. Du-rante séculos, os Poderes coloniais saquearam a riqueza dos países colonizados em seu benefício e em nome de seus cidadãos, para assegurar seu próprio desenvol-vi-mento econômico e social.
47. Os antigos Poderes coloniais, que utilizam uma série de coações para impor sua vontade sobre a antiga colônia, agora convertida em “Estado soberano”, mas sem meios ou poder.
Nesta desigual relação entre o assistido e o assis-ten-te, o último impõe sua vontade e assim mantém a orien-tação geral das estruturas econômica, social, e cultural. Qualquer que seja a forma com que se conseguiu a des-colonização, em todas as partes conduziu ao mesmo resultado desastroso de dependência e exploração, man-tendo uma ordem econômica mundial injusta, que os países em desenvolvimento, compostos essencialmente pelas antigas colônias, insistem em que deve ser revisto para alcançar um equilíbrio mais justo.
El Apartheid
48. O apartheid, vestigio trágico da dominação colo-nial, recorda a escravidão. O sistema consistia no des-fru-te por parte de uma minoria branca de toda a riqueza e dos recursos naturais de um povo dominado e excluído em termos raciais. Instituiu-se como um sistema de governo e foi aplicado, durante um século, acompanhado de violações dos Direitos Humanos, tanto direitos eco-nô-micos, sociais e culturais como Direitos Civis e Políticos.
Estas violações, em massa e graves, nunca foram reparadas; embora tivessem sido caracterizadas em seu conjunto como crimes contra a humanidade, não foram sujeitas a nenhuma sanção e não prescreveram.
49. Desde o estabelecimento da primeira colônia holandesa, os “brancos” estenderam gradualmente seu domínio sobre todo o território do Sul da África. Esta tendência era intensificada com a chegada dos britâ-ni-cos e outros grupos de populações “brancas” que, por meio da violência ou da astúcia, apropriaram-se de quase todas as terras agrícolas e residenciais no território sul africano. Os “brancos”, que representavam 20% da po-pu-lação, controlavam e usavam 80% do território, enquan-to os “negros” que representavam 70% da população, controlavam só 13% das terras.
O saque do patrimônio cultural do terceiro mundo
50. Os patrimônios culturais foram saqueados. Hoje em dia, os bens culturais que pertenciam a estes povos se encontram facilmente nos museus do Ocidente, sem nenhuma compensação.
51. A escravidão, a colonização, o apartheid e o saque cultural ocasionaram violações graves e siste-má-ticas dos Direitos Humanos e um total desprezo ao direi-to de desenvolvimento. Nunca foram reparadas e privam as vítimas da possibilidade de desenvolvimento e de uma vida digna.
52. As práticas enumeradas pertencem ao passado mas tem conseqüências funestas na vida econômica dos países que foram vítimas. Hoje em dia, estes povos vivem num estado de absoluta pobreza. Os graves delitos de violações em massa dos Direitos Humanos produzidos por estas práticas continuam. O princípio é: enquanto não cessem os atos infames não pode haver prescrição, além de que estes são crimes contra a humanidade e, portanto, imprescritíveis e sujeitos aos princípios da jurisprudência universal.
Veja o texto completo (bem mais extenso) em http://latinoamericana.org/2003/textos
O Coletivo Ronda de Advogados de Barcelona (Spanha), patriagrande.net, e a Equipe NIZKOR convocam para um concurso sobre:
A Reparação Histórica:
nova exigência para um mundo reconciliado.
Motivação: o texto destas páginas (218-219) da Agenda Latino-americana 2003.
Conteúdo: o que se quer premiar é a criação de um instrumento de educação popular de nível médio, para comunidades, grupos de educação , colégio, ou universidade... que sirva para conscientizar sobre o tema da “Reparação histórica”: seus motivos históricos, seu fundamento jurídico, suas possibilidades de ação.
Idioma: Português, espanhol (ou outro, acompanhando a tradução ao português ou espanol).
Prazo: deverá ser enviado a agenda@latinoamericana.org antes do dia 31.03.2003, pelo correio-eletrônico.
Prêmio: 1000 euros US$, mais a publicação na Rede. Poderá ficar sem prêmio ou conceder accésits adicionais.