A saúde pública na outra economia

A saúde pública na outra economia

Teresa Forcades i Vila


«A minha liberdade acaba onde começa a tua», anuncia-nos, ameaçador e violento, o capitalismo. «Ninguém será plenamente livre até que todos sejamos livres», reza a máxima anarquista e feminista. Esta última constitui o ponto próprio da nova economia e da noção da saúde que lhe é própria: «Ninguém será plenamente são enquanto todos não formos sãos». Somente superando a dicotomia que separa o «eu» do «nós» e o julga feliz em uma quimérica autorrealização solitária tem sentido falar de saúde pública de uma forma alternativa.

As quatro características principais desta «outra saúde pública» são, no meu entender: independência dos interesses comerciais, desmedicalização, pluralidade de opções terapêuticas dentro do máximo rigor científico e modelo dialogal de atenção integral ao paciente.

1. Independência dos interesses comerciais (sem regulamentar excessivamente)

A Organização Mundial da Saúde (OMS), o organismo que olha pela saúde em nível planetário, foi estabelecida, antes da Segunda Guerra Mundial, com base à adesão livre dos países membros, os quais se comprometeram em dotá-la de fundos suficientes para o exercício adequado e independente de suas funções. Nos últimos anos, à medida que crescia a crise neoliberal e os pressupostos nacionais iam diminuindo paulatinamente nos anos, ao lado das ganâncias claras de certas megamultinacionais, o capital privado ofereceu doações tão generosas à OMS, que hoje em dia esta organização chave é financiada em mais de 50% pelo capital privado. Uma das empresas que mais peso têm no seu financiamento é a Microsoft, através da Fundação Bill e Melinda Gates. A Agência Europeia de Medicamento (EMEA), organismo encarregado de aprovar a comercialização de medicamentos na União Europeia e de controlar o aparecimento de efeitos secundários inesperados após a comercialização (fármaco-vigilância), é financiada em mais de 75% pela mesma indústria farmacêutica que se beneficia da comercialização rápida de novos medicamentos e da retirada lenta, quando se demonstra a existência de efeitos secundários perigosos. A EMEA tem o compromisso de manter uma base de dados de acesso público sobre os efeitos secundários dos medicamentos comercializados na Europa, mas, na prática, torna-se impossível obter informação útil sobre ela. Os grupos de peritos que assessoram a OMS na maioria dos casos foram integramente constituídos e financiados pelas companhias farmacêuticas. As faculdades de medicina, as revistas médicas especializadas, os congressos científicos e a investigação básica e clínica dependem atualmente, de modo crescente, destas companhias e dos seus interesses econômicos privados. A alternativa acaba por separar de forma radical a saúde do mercado: a saúde não é uma mercadoria, não se compra nem se vende, é um direito da pessoa que influencia no conjunto a sociedade.

Indubitavelmente não é responsabilidade do Estado, nem do conjunto da sociedade impor algum estilo de vida saudável, por muito razoável que pareça. Dirigir sem cinto de segurança ou sem capacete, ser promíscuo sexualmente e consumir álcool, cigarro ou outras drogas não deveriam ser delitos na nova economia. Por que deveríamos estar de acordo em gastar em todos os estilos de vida perigosos para a saúde? Porque é plenamente viável economicamente eliminar as ganâncias especulativas que derivam da mercantilização da saúde e porque é o ponto adequado de liber-dade para uma antropologia de confiança, que não assume que o ser humano mais do que controlado, deve ser potenciado e animado. As que devem ser controladas são as empresas, não as pessoas.

2. Desmedicalização

No tempo moderno, à medida que avança a medicina, retrocede a enfermidade. Nos nossos dias, à medida que proliferam os progressos médicos, aumenta a enfermidade, de modo que hoje em dia «o normal» é ter uma etiqueta diagnóstica ou outra, inclusive na idade infantil, e tomar medicamentos ou realizar diagnósticos periódicos ou restrições no estilo de vida em função dela.

Sabe-se que 45% dos adolescentes nos Estados Unidos tomaram eventualmente algum medicamento psicoativo para depressão, e 10% das crianças em idade escolar na Holanda tomam medicamentos psicoativos para hiperatividade e falta de atenção. Problemas sociais como a injustiça econômica são etiquetados como médicos (depressão ou ansiedade) e são assim despolitizados, individualizados e farmacologizados. A desmedicalização chega a desmantelar a relação saúde-mercado, mas chega também à «desmedicamentalização», isto é, a mudar nosso modo de pensar sobre o sentido da vida: viver mais não pode ser um objetivo em si mesmo, depende para que se vive. Onde deixa aos profetas a definição da saúde da OMS: «a saúde é um estado de completo bem-estar físico, psíquico e social»?

Em que sentido podemos afirmar que os profetas têm “completo bem-estar social”? É preciso estar atento ao perigo de etiquetar como insana a insatisfação social. Jesus de Nazaré, segundo esta definição da OMS, estaria na realidade enfermo e assim estariam todas as pessoas críticas que apresentam «dissonância cognitiva» em relação ao pensamento hegemônico.

3. Pluralidade de opções terapêuticas dentro do máximo rigor científico

A desvinculação da saúde pública do interesse privado fará emergir naturalmente uma pluralidade de opções terapêuticas muito maior do que a que existe atualmente. Tratamentos de acupuntura, terapia neural, homotoxicologia, homeopatia, naturopatia... e um longo etcétera, deveriam ser estudados com mais interesse e deveriam integrar-se de modo mais pleno ao sistema público, dando o seu potencial para solucionar ou melhorar os problemas da saúde e melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Hoje em dia estas são terapias reservadas às pessoas que têm poder aquisitivo alto. Deve-se evitar a todo custo o falso debate entre «medicina convencional» (farmacologizada e dirigida por interesses econômicos) e «medicina alternativa», como se a «convencional» fosse a única científica e as chamadas «alternativas» se baseassem em tradições superadas que não resistem à investigação rigorosa. Isto não é certo. O movimento da medicina baseada na evidência (BEM) demonstrou que mais de 70% dos tratamentos propostos pela medicina convencional não têm uma base científica suficiente que os leve a se realizar bem pela rotina e bem por interesses comerciais associados. A ciência e o método científico devem seguir sendo um dos braços essenciais para a medicina. E outra é a arte do exercício médico e disto falarei na última parte.

4. Modelo dialogal de atenção integral com o paciente

O respeito devido a toda pessoa, pelo fato de existir, deve tornar-se ainda mais agudo no caso de a pessoa ser enferma, por ser ela mais vulnerável. Organizar as prestações sanitárias de modo que a prioridade seja a atenção personalizada e não uma utopia, e seja a base da satisfação tanto do profissional da saúde, como do paciente. A experiência da doença e da dependência pode ser vivida como um enriquecimento pessoal e comunitário. Na porta de entrada da enfermaria do mosteiro de Bose, na Itália, há uma pintura que mostra um monge jovem carregando aos ombros um monge maior do que ele. A legenda que acompanha a pintura diz: «Quem carrega quem»?

Os debates atuais sobre a saúde pública descartam a possibilidade de uma pessoa doente ou anciã dependente ser uma fonte de riqueza para a sociedade, pois somente valorizam a riqueza monetária. Nos mosteiros e em muitos lugares que ainda não se mercantizaram, a experiência da doença e da dependência pode ser vivida, mas como oportunidade de crescimento, não somente para a pessoa enferma, mas, sobretudo, para os que dela cuidam. O olhar que dirigimos à pessoa anciã ou enferma como é? Que mensagem lhe transmite?

Na nova economia a pessoa enferma ou dependente não pode ser nunca concebida somente nem principalmente como um peso, visto que ela revela de modo privilegiado a profundidade da dignidade da pessoa, da dimensão antropológica aberta ao transcendente que, independentemente da produtividade e dos critérios utilitaristas, dá ao ser humano sua dignidade.

Nas palavras da irmã M. Natividade, que morreu no meu mosteiro aos cem anos de idade: “Este corpo não serve para nada, mas é meu e eu o amo”.

 

Teresa Forcades i Vila

Monja beneditina do Mosteiro de Sant Benet de Montserrat,

Barcelona, Espanha