A violência de Gênero. Um calendário para se manter viva: nem uma a menos

A violência de Gênero
Um calendário para se manter viva: nem uma a menos
 

Nancy Cardoso


Nossa agenda dolorosa

Começou o ano de 2018 e até o final deste janeiro, em um mês, 300 mulheres e meninas serão mortas só porque eram mulheres e meninas latino-americanas e caribenhas – diz a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL).

De fevereiro de 2017 até este fevereiro de 2018: em um ano 2089 mulheres terão sido vítimas de feminicídio, mortas por parentes e conhecidos, diz o Observatório de Igualdade de Gênero da América Latina e Caribe da ONU.

Quando março de 2018 completar seus dias, na Argentina, a cada 30 horas, uma mulher terá sido assassinada.

No Brasil, a cada seis horas uma mulher é assassinada por um homem de suas relações íntimas, o que significa dizer que em abril de 2018, 120 mulheres serão assassinadas, informou a ONU-Mulher.

Em maio de 2018 no Chile a cada dois dias uma mulher será assassinada por seu marido/companheiro ou ex-marido/companheiro, segundo dados da CEPAL.

Quando junho de 2018 terminar 70 mulheres terão sido assassinadas na Guatemala, de acordo com a Polícia Federal desse país.

Julho em Honduras vai terminar com menos 44 mulheres vítimas de violência homicida, de acordo com a CEPAL.

No México, a cada dia de agosto 2018, 6,3 mulheres serão assassinadas, aponta a ONU-Mulheres.

No Peru, em setembro de 2018, dez mulheres serão assassinadas por maridos ou ex-maridos, segundo a CEPAL.

De 3,6 para cada 100 mil mulheres na República Dominicana correm o risco de ser assassinadas por situação de gênero, o que em outubro de 2018 pode chegar a oito mulheres com mais de 15 anos.

Novembro de 2018 na Venezuela matará dez mulheres em situação de violência de gênero e onze conseguirão sobreviver, aponta a CEPAL.

E quando chegar dezembro de 2018 nós vamos nos lembrar que, na maioria dos países latino-americanos e caribenhos, não é possível ter dados corretos de qualidade para dizer dos casos de feminicídio; em muitos lugares esses crimes não são tipificados. Os números são muito maiores! E vamos nos lembrar daquelas que foram mortas e nem foram contadas.

Nossa memória dolorosa

Mas também a cada mês, e o ano inteiro, vamos contar as mulheres agredidas e estupradas. A cada 11 minutos no Brasil uma mulher será estuprada, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. E o mesmo acontece em todos os demais países latino-americanos. E as agressões físicas e as humilhações, as severas restrições e falta de acesso a recursos básicos de viver. As mulheres negras e a tripla jornada de trabalho e exploração. As mulheres indígenas e a violência antiga e atualizada. Um calendário todo marcado! Uma agenda que já não aguenta anotar os casos, rabiscar os nomes e fazer memória das tantas formas de violência de gênero.

Do mesmo modo, as mulheres latino-americanas defensoras dos Direitos Humanos e da terra são, de modo crescente, violentadas e mortas por empresas, corporações, milícias e proprietários de terra. A liderança delas ao lado de companheiros e comunidades evidencia o protagonismo de mulheres fortes, que já superaram os modelos machistas. Essas mulheres são perigosas duplamente: porque enfrentam o capitalismo e porque superam as marcações de gênero desenhadas para elas:

Berta Cáceres (Honduras), Irmã Dorothy (Brasil), Nicinha do MAB (Brasil), Ruth Alicia Lopez (Colômbia), Margarita Murillo (Honduras), Rocio Mesino (México), Adelinda Gómez Gaviria (Colômbia), Margarida Alves (Brasil), Mamá Tingó (República Dominicana), Marianela Villas (El Salvador), Irmãs Mirabal “Las Mariposas” (República Dominicana), Dorcelina Folador (Brasil), Yolanda Cerón Delgado (Colômbia), Pualita Úbeda de Morales (Nicarágua), Aurora Vivar Vásquez (Peru), Isaura Esperanza, “Chaguita” (El Salvador)... e muitas outras. Sempre lembradas! Sempre vivas.

As razões das violências

A violência de gênero tem uma função a cumprir nas sociedades capitalistas desiguais, racistas e patriarcais: é uma violência que precisa ser reproduzida, atualizada, repetida para manter os padrões patriarcais que sustentam o poder das minorias.

A violência de gênero é na cultura intencionalidade, disciplinamento das relações sociais de poder e sexo. O que não funcionar como convencimento e submissão voluntária, o que for pretensão e desejo de mulheres que não aceitam obedecer... acionarão a “racionalidade” do uso da violência para manter a percepção comum e massificada do poder do macho.

O violentador/violador não é um alguém de fora do cenário, nem um alguém desconhecido que ataca aleatoriamente uma mulher. Na maioria das vezes é alguém do âmbito familiar ou do trabalho/escola, homens normais que não aceitam a ruptura ou a negação da cláusula de obediência e permissão.

Quando uma mulher diz “não” um alarme corta toda a engenharia social e disponibiliza os formatos de violência para fazer tudo voltar ao normal. será pega na marra. Será dominada, espancada, domada, comida, derrubada, currada, golpeada, abusada, violentada, agarrada, machucada, enfiada, gozada, arrombada, chutada, apertada, deflorada, arregaçada, asfixiada, lambuzada e todo o léxico disponível.

Porque é conflito na cultura a violência de gênero pode ser identificada, enfrentada e superada. Não é uma condição essencial do masculino nem da sexualidade. É constructo social. Engenharia. Modo de organização do poder.

Por isso mesmo a luta contra a violência de gênero é pessoal e coletiva, estrutural e conjuntural.

Nossa agenda de lutas

Todos os anos os movimentos de mulheres na América Latina ocupam as ruas e praças com suas denúncias e protestos, propostas e desejos. “Ni una menos” foi o grito que começou na Argentina e se espalhou pelo continente, criando uma unidade e força importantes no combate ao machismo e suas violências que passam pela exploração do capitalismo e suas políticas de ajustes, a violência policial, a burocracia sexista da justiça e o sensacionalismo das mídias.

Os movimentos feministas estão presentes em todos os outros movimentos mas não aceitam mais subordinar ou reduzir nossas lutas e políticas em nome de uma unidade artificial. Bem organizadas, com um profundo processo de formação das companheiras e um desafiante processo de renovação da juventude vamos precisar de espaço na agenda para muitas atividades e lutas!

Priorize em seu calendário as lutas das mulheres. Elas vieram para ficar. Contra a tirania dos números da violência contra as mulheres, vamos anotar e rabiscar nesta agenda a nossa indignação, nossa capacidade de enfrentamento e nossas propostas: na casa comum do bem viver latino-americano machista não entra!

O fundamentalismo de políticos e igrejas exigirá muito de nós. Eles querem paralisar nosso direito de decidir sobre nossas vidas! Não passarão com sua agenda conservadora: a defesa da família patriarcal, a defesa da autoridade masculina na igreja, da heteronormatividade, da moral e os bons costumes que eles decidiram, a suspensão da escolha, a demonização do direito de decidir e o constrangimento das autonomias. Não passarão!

As mulheres latino-americanas não se rendem e nem se calam: nem uma a menos!

A conversa sobre “violência de gênero” precisa sim acontecer nas igrejas e as mulheres cristãs feministas participam de muitas frentes de luta; uma das frentes vitais é enfrentar o delírio violento da “ideologia de gênero” organizado pelas hierarquias cristãs que desqualificam as lutas por “justiça de gênero” nos campos da educação, das políticas de saúde e programas sociais, justificando as posições mais atrasadas do patriarcado entre nós.

Afirmamos o Evangelho libertador de Jesus e nossa fidelidade com a comunidade de iguais:

nem um macho a mais!

nem uma mulher a menos!

 

Nancy Cardoso
Rio de Janeiro, RJ, Brasil