Aceitar sinceramente o pluralismo religioso
Aceitar sinceramente o pluralismo religioso
O ponto chave do «novo paradigma» religioso
Agenda Latino-americana
Depois do “diálogo de culturas”, a palavra da moda é “diálogo de religiões”. Há pouco tempo era um tema para peritos, e chamavam-no de “ecumenismo”. Agora adotou um nome mais concreto e realista, pois não se refere só as igrejas cristãs, senão a todas as grandes religiões do mundo.
O dia 11 de setembro foi uma demonstração de que o “conflito de civilizações” ou de culturas não era uma teoria, mas uma realidade. Em seguida percebemos que atrás das culturas estão as religiões. A religião é a alma da cultura. Como diz Hans Küng: “Não haverá paz no mundo sem diálogo entre as culturas, e não haverá paz entre as culturas sem paz entre as religiões”. E podemos continuar encadeando o argumento: “não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões, sem aceitação mútua entre as próprias religiões”. Ou seja, enlaçando o princípio e o fim da cadeia: “não haverá paz no mundo se as religiões não aceitam o pluralismo religioso”. No coração do problema da paz do mundo atual está, pois essa necessidade de aceitação mútua entre as religiões, a aceitação do pluralismo religioso por parte de cada uma delas, também por parte do cristianismo. Por isso, este Pluralismo Religioso é o novo tema, para todas as religiões e também para o cristianismo. E para cada um de nós.
Viemos em eterno isolamento...
Nós cristãos vivemos os 20 séculos de nossa existência (35 se contamos o Antigo Testamento hebreu) ideologicamente isolados, pensando que para Deus, só existia nossa religião. Só nós o conhecíamos, só nós estávamos em relação com Ele.
Tínhamos o privilégio de ter sido “escolhidos” por Ele para conhecer a verdade... e éramos chamados a torná-lo conhecido aos demais. As outras religiões eram trevas, “paganismo”, religiões “naturais”... nas quais a humanidade buscava às palpadelas o que nós temos em plenitude, “por graça de Deus”. Assim, no mundo religioso, dizíamos que estávamos sós. No plano da “verdade eterna”, que era o plano de Deus, só nós estávamos aí, suspensos entre Deus e o mundo. Podíamos pensar que nos assistia o direito de ignorar as demais religiões...
Por outro lado, no plano das condições materiais, durante a maior parte de nossa história, as distâncias e a falta de comunicação fizeram que vivêssemos reduzidos ao “nosso pequeno mundo”, quase que em nosso hábitat, desconhecedores das distâncias da terra, de outras civilizações, culturas, religiões... E assim foi desde sempre: eternamente isolados. Até ontem.
Sentimo-nos aliviados quando nos conscientizamos de que isto não acontecia só aos cristãos. As outras religiões têm uma história parecida. A maior parte delas se consideravam também “a” verdade, a única, o “depósito” de toda a verdade. Dir-se-ia que fosse um mecanismo espontâneo e natural das religiões: seus interesses institucionais levariam-nas a se auto-entronizar, a crer que são o centro do mundo e da salvação).
O mundo mudou.
Mas no século XX, principalmente na segunda metade, o mundo mudou e aquele eterno isolamento começou a se esquartejar. Por obra da revolução tecnológica, as distâncias diminuíram e as comunicações se tornaram fáceis.
Comunicações instantâneas de alcance mundial e a preço sumamente acessível. Tornou-se possível um velho sonho: “o mundo é um lenço”, ou “o mundo inteiro está na distância de um clic”. Os continentes distantes se aproximaram, as civilizações desconhecidas se colocaram diante de nossos olhos, as religiões exóticas tornaram-se notícia e presença diária. Hoje em qualquer livraria podemos encontrar bons livros, bem fundamentados e acessíveis, sobre as mais diversas religiões... O pluralismo religioso está na nossa frente todos os dias, visível e inevitável.
A maior parte de nossos avós passaram sua vida sem contato com nenhuma pessoa de outra religião. Hoje, em nossas cidades, qualquer um de nós encontramos no trabalho, na televisão, na universidade, nas ruas, ou aténo edifício onde moramos, pessoas de outras religiões. E cada um de nós podemos saudá-las, conhecê-las, perceber que são tão religiosas como nós, com suas grandes virtudes e suas limitações, como nós. O pluralismo religioso já não é mais uma idéia abstrata, mas uma experiência concreta sobre pessoas de carne e osso...
Estamos juntos na mesma planície.
Diz Hick que tudo ocorreu como se, desde sempre, cada povo tivesse caminhado ao longo de um vale ladeado de montanhas separadas, e cada povo louvando e cantando a seu Deus, vivendo ao longo dessa caminhada uma história de amor (e de pecado) com seu Deus.
Sempre caminhando pelo vale da história até que finalmente esse vale desemboca numa planície (a planície hoje criada pelos novos meios de comunicação). E ali, cada povo vê chegar os outros povos, que desembocam, cada um pelo seu vale, naquela grande “praça comum”, e todos os povos descobrem que os outros povos viveram com seu próprio Deus uma história muito parecida, com suas próprias palavras, seus próprios cânticos, suas próprias imagens....
O conflito religioso
Dir-se-ia que o esperado era que estes povos, aproveitando do desaparecimento das montanhas que sempre os separaram e isolaram uns dos outros em sua história particular, celebrassem jubilosos o encontro, estabeleceram um diálogo fraterno e tratassem de se juntar e unir e aproveitar todas as bonitas experiências de amor e comunhão vividas com seu Deus... Mas não aconteceu assim. Os povos experimentaram inicialmente uma dificuldade de relação. Suas instituições religiosas se sentiram desafiadas pela existência de outras instituições semelhantes e se negaram ao diálogo. Seus símbolos religiosos pareceram à primeira vista incompatíveis, e o povo simples talvez não teve tempo de reagir, educado como estava à obediência cega aos seus dirigentes. Nessa situação, a convivência se transformou em conflitos e as religiões, em vez de darem motivos para a convivência pacífica do mundo, jogam lenha na fogueira das diferenças e dos conflitos que o mundo vive já por si. É por isso que se diz o que recordamos no princípio: “Não haverá paz no mundo sem diálogo entre as religiões”.
Algo está morrendo.
A mesma pluralidade de religiões, nunca experimentada realmente como agora, é um desafio à inteligência humana em sua compreensão do fenômeno religioso. Em qualquer religião, os crentes “adultos” (no sentido literal da palavra) sentem receio ou pudor se tentam repetir –ou simplesmente pensar– a cantilena que aprenderam na formação religiosa de sua infância: como continuar pensando que só nossa religião é “verdadeira” e que as outras são “falsas”, ou que nosso pequeno grupo somos os “escolhidos” de Deus, ou que Deus quer que “convertamos” àqueles que vivem inutilmente em outras religiões? Um sexto sentido, um sentido difuso, mas certamente perceptível, diz à gente que isto é insustentável. Mesmo sem estudar teologia, alguém pode “compreender” e até “ver” claramente que estas afirmações necessitam de uma reinterpretação mais profunda. Aquela visão exclusivista e privilegiada da própria religião, está se afundando. Todo um enfoque religioso secular ou até mesmo milenar naufragou; mesmo que flutue aqui ou ali, está à deriva, sem que ninguém o assuma de coração, à espera do surgimento de uma nova proposta. Mas também, para quem saiba ver, é claro que algo está nascendo. Outra visão quer emergir. Um enfoque diferente a partir da raiz. Está acontecendo uma “mudança de paradigma” ou de modelo. Não é que estejam mudando algumas peças do conjunto, é o conjunto mesmo que está sendo reorganizado, compreendido de outra maneira. Algumas peças podem ser as mesmas e ter o mesmo nome, mas seu significado e sua posição no conjunto são radicalmente diferentes. A mudança de paradigma não é um conserto ou acréscimos, uma nova fachada ou uma simples atualização. É outra maneira de ver. É começar a viver em outra realidade. Ver a realidade de outra maneira. E em nosso caso, viver outro tipo de religião: “crer de outra forma”.
Mudança de paradigma
Em que consiste esta “mudança de paradigma” que traz o pluralismo religioso? Alguns comparam-no à “revolução de Copérnico”. Até Copérnico pensava-se que a terra estava no centro (geocentrismo, a visão de Ptolomeu) e que tudo –inclusive o sol- girava em torno dela). Nicolau Copérnico viu que essa era uma forma falsa de compreender a realidade, que o que estava no centro era realmente o sol (heliocentrismo), entretanto a terra e os planetas davam voltas ao redor dele. Copérnico e depois Galileu, colocaram a necessidade de mudar de paradigma, de mudar a concepção do universo, para acomodar o pensamento à realidade. Suas teorias -e suas pessoas- foram rejeitadas. Passaram mais de 300 anos para que as Igrejas cristãs aceitassem a nova concepção heliocêntrica, ainda que –como Galileu dizia- basta olhar no telescópio para comprová-lo.
Em termos religiosos , o “pensar que nossa religião é a única verdadeira”, é uma concepção ou modelo “geocêntrico”, ou seja auto-centrado: cada religião se considera estar no centro da verdade e da realidade, e as outras religiões estão mais ou menos distantes deste centro.
O modelo que hoje surge, o do pluralismo religioso, propõe que nenhuma religião está no centro como o sol, mas que o único sol é Deus, ao redor do qual giram todas as religiões: por isso se diz que é uma verdadeira revolução “copernicana”. Não haveria uma religião “central”. Todas as religiões estariam girando ao redor de Deus, como irmãs. Cada religião não deveria pensar -como até agora- que sua mensagem é a “realidade mesma” da salvação, mas “uma descrição” da salvação. Cada religião seria “um mapa do território”, não o território mesmo”...
Se isto for assim, as religiões terão pois que insistir em se conhecer mutuamente, se complementar, se enriquecer umas com as outras, e se sentir co-responsáveis do bem da humanidade e do cosmos... E colaborar e dialogar em pé de igualdade. Em definitiva pois, aceitar sinceramente o pluralismo religioso e rejeitar toda pretensão de exclusivismo (declarado ou dissimulado).
Desafios e tarefas
Umas mais, outras menos, mas quase todas as religiões se sentem desafiadas, destronadas, ameaçadas... pelo pluralismo religioso. Os “sistemas religiosos”, seus “stablishments” têm demasiado interesse de que tudo funcione “como sempre”; não podem aceitar uma mudança. Todo o capital simbólico de cada religião foi elaborado com outra mentalidade, a partir de outro modelo, e agora, cada palavra, cada rito, cada afirmação doutrinal... choca incompativelmente com a nova mentalidade, que está aí, imperceptível, no ar, na sensibilidade de qualquer pessoa sincera “de hoje”...
Por isso se faz necessário re-escrever a teologia. Há que recriar a espiritualidade, há que reinventar a liturgia, temos que re-encontrar a “missão”... porque as atuais formulações dependem daquele velho modelo que no momento não funciona mais. Temos pois, uma imensa tarefa por fazer. Vem uma revolução. Quem quer a comodidade da tradição já feita, a segurança do “sempre foi assim” e as marcas do passado histórico, chegou na hora mais inoportuna. A realidade nos convida a deixar a falsa segurança e a nos desprendermos dos obstáculos que hoje se tornaram invisíveis, mas que hoje descobrimos são fruto de culturas que já não são nossas, nem podem ser eternamente impostas. Libertar-nos do peso inútil da história. “Isto exige que nos emancipemos da rígida absolutização dos dogmas como se estivessem acima de toda cosmovisão e não estreitamente ligados a uma cultura que atualmente não pode abrigar a pretensão de ser universal”. (Panikkar nesta mesma Agenda, pág. 211).
Buscar a convergência do diálogo
Temos que olhar para dentro e perguntar: se Deus quis (porque positivamente o quis) tantas religiões, qual é o núcleo, a essência da religião, mais além das formas distintas que em cada religião específica revestem os ritos, as doutrinas e até a moral...? O que é que, mais além de suas diferenças legítimas e acidentais, Deus quer de todas as religiões? Isto é o que hoje temos que dialogar urgentemente entre as religiões, e é o que temos que nos esforçar por descobrir e pôr em prática.
Mas, como dizíamos a princípio, a solução não é, somente dialogar com outras religiões... mas criar o primeiro condições para o diálogo. A mudança de modelo que está acontecendo é demasiada profunda para ser refeita de uma hora para a outra, exige um período longo e trabalhoso de reflexão, de redescoberta, de balançar os alicerces e de novo e radical enfoque... “Antes de dialogar com outros temos que dialogar conosco mesmo”, Antes do diálogo religioso temos que realizar o “intra-diálogo”, como diz Panikkar. O urgente não é talvez o diálogo, mas sua condição prévia: a aceitação consciente, instruída, amadurecida, sincera do pluralismo religioso. Que cada religião abandone toda posição de exclusivismo, de privilégio, de auto-estima de “eleição”, que aceite sinceramente o pluralismo de religiões, “certamente querido por Deus”, com tudo o que esta aceitação porta consigo de mudança da auto-compreensão da verdade religiosa, reformulação da teologia, recriação de sua linguagem, de resignificação dos símbolos, renovação das próprias atitudes e transformação da missão.
Esse é o “intradiálogo” que é urgente realizar.
Estudar o tema do pluralismo religioso, enfrentar os seus desafios, ver seus fundamentos, aceitar suas conseqüências, pôr em prática a adequação necessária... atrevermo-nos a dizer que é hoje um dos maiores desafios da religiões e do cristianismo entre elas. Para que seja possível um diálogo real e eficaz. Para a Paz do mundo.
A Agenda Latino-americana-Mundial convida-os a assumir esta prioridade para o ano 2003.
La AGENDA LATINOAMERICANA-MUNDIAL, dada la importancia que este tema reviste, va a poner a disposición de los comunidades de base, grupos juveniles, grupos de catequesis, círculos de estudio, maestros, educadores populares, animadores de grupos cristianos, comunidades religiosas…:
---un CURSO POPULAR DE PLURALISMO RELIGIOSO, organizado en 24 unidades didácticas aptas para una reunión de grupo o sesión de trabajo cada una, o bien para el estudio personal. Irán siendo puestas en internet, progresivamente, a partir de noviembre de 2002, en la página de la Agenda Latinoamericana, concretamente en http://latinoamericana.org/2003/pluralismoreligioso así como en los Servicios Koinonía: http://servicioskoinonia.org/teologiapopular
---una serie de pósters sobre el tema, en formato jpg, aptos para imprimir en impresoras «plotter» (las hay ya en casi todas las ciudades medianas), en un tamaño de 69 x 48 cm (o en tamaño reducido en impresoras caseras). El primero de ellos será puesto en línea en noviembre de 2002, en el mismo lugar;
---también recomendamos estar atentos a la Revista Electrónica Latinoamericana de Teología, RELaT, que desde hace un tiempo está prestando especial atención a este tema del Pluralismo Religioso y proyecta publicar varios artículos importantes sobre el mismo;
---probablemente (no podemos asegurarlo cuando escribimos estas líneas) ofreceremos ahí mismo otros materiales para el estudio del tema, en forma preferentemente de material pedagógico popular utilizable tanto en la educación popular como en las comunidades cristianas y/o para el estudio personal. En todo caso les recomendamos visitar http://latinoamericana.org