América Latina: agonia das velhas narrativas e seus personagens

 

Rolando Membreño Segura

A grande revolução do final do século XX foi tecnológica e nas comunicações, impossível de ser compreendida sem a física quântica e sem o capitalismo. Sua antecessora, a revolução industrial (desde meados do século XVIII), filha da física mecânica de Newton, impulsiona a vida urbana, a sociedade de massas e o proletariado, com seu correlato político, o socialismo nas suas distintas variantes. Ao mesmo tempo vai se derrocando as estruturas do velho regime, do autoritarismo absolutista e de suas bases teocráticas. Surge assim o fundamento moderno da democracia e da república, que, graças ao apostolado de sangue e fogo de Napoleão, consegue permear pela Europa toda as cabeças duras e coroadas da época. O extermínio massivo em Hiroshima e Nagasaki dá início ao inimaginável: a era atômica, encerrando o anacrônico Império do Sol.

 As consequências desta revolução e a era da internet estão aumentando, transformando radicalmente espaço, tempo, relações e cultura. Coincidência e base deste fato, é a globalização liberal, outra hecatombe de efeitos complexos, mas que, somada à explosão informática e digital, redesenham amplamente todas as geografias e sua maneira de compreender-se. Mais dois fatores, entre outros de consistência, terminam por redesenhar a velha imagem: o ecologismo e o feminismo.

 A revolução industrial chega à sua maturidade nos fins do século XIX, mas na América Latina os processos de nação e de novas classes emergentes (brancos de origem europeia –criolos - no comando, seguidos de mulatos, índios, negros fugitivos, etc.) apenas estão se forjando, e, embora as nações maçônicas e liberais se debatam sangrentamente em batalhas de machete, baionetas, espingardas e escopetas, com soldados em sandálias de couro, não se inicia a construção de nenhuma instalação industrial moderna: a velha fazenda espanhola predomina na paisagem. A Espanha é desalojada e vai-se embora, todavia, de alguma maneira, fica.

 O discurso liberal independentista mascara e perpetua o modelo colonial que, pelo feitiço das palavras, nos deixa a “república”, enquanto a fazenda - agora dos descendentes de europeus e de trabalhadores dependentes (antes eram índios das reservas) - será referência para as formas extrativistas coloniais, porém em formato mecanizado: o imperialismo de plantação (bananas, borracha, algodão, açúcar, café) e o enclave mineiro (cobre, ouro, prata, nitratos e, pouco a pouco, o petróleo), com os EUA expulsando a presença inglesa em América, começando a nascer o novo século ao ritmo do jazz, do charleston e do swing.

 Tudo se acelera ao ritmo do trem e do telégrafo. O jornal é para as elites ilustradas. O resto está num mutismo continental das maiorias, distantes dos focos do poder, para então trazer de volta o absolutismo, sob a forma de um caudilhismo brutal e pitoresco, dominante em toda a extensão latino-americana, e do qual ficam exemplares ainda hoje. Dupla herança daquela época: músicas “rancheiras” nascidas da revolução mexicana e os tangos do Sul (Gardel), fruto do urbanismo incipiente com a difusão de cantinas e ruas.

 O caudilhismo nos deixa um modelo extrativista e de exportação de produtos primários, com crescimento exponencial de portos e estradas e, com isso, de endividamento sistemático em economias insuficientes. Ficamos assim comprometidos numa dependência estrutural. Os fundadores da pátria são os grandes exportadores, com um Estado concessionário de territórios para explorações extrativistas alucinantes em extensão de tempo e espaço (lembremos o Canal de Panamá, ou a entrega do litoral Atlântico e Pacífico à United Fruit Company em Centro América). A crise econômica de 1930 abre um novo cenário. Desaparecem da paisagem os barcos a vapor. É a era do diesel e da eletricidade.

 O não ficar na continuidade de exportação somente de produtos primários, abrirá passagem, nas décadas dos anos 1960 e 1970 na América Latina, ao imaginário do desenvolvimentismo, por causa da chamada substituição de importações e à possibilidade do Estado do Bem-estar. Consequências do desenvolvimentismo: um novo ator social, as classes médias que encerram a época do direito por descendência e de hegemonia dos de descendência europeia, mas abrem um inédito e incipiente capítulo de cidadania mais urbana do que rural. É neste tempo que o telefone tem “aposentado” o telégrafo, a rádio conquista os espaços, e será seguida pela televisão. De vez, estamos na era das comunicações sociais, mas também, e com poucas exceções, nas ditaduras de cunho populista, com suas organizações sindicais poderosas, porém sob o controle estatal, querendo impulsionar esquemas de reforma agrária. Ditaduras, através das quais se prolonga o período anterior e suas instituições: o caudilhismo, o militarismo e o autoritarismo, com toda sua inerente corrupção, encravada e tóxica, fator de perene empobrecimento.

 Por mais que o hipnotismo romântico dos boleros e o ritmo dos mambos (Sandino foi assassinado enquanto ressoava a voz de Pérez Prado, nos salões de Somoza) buscassem afastar as massas da nova consciência social emergente, esta explode com força em meados dos anos 1960. É a imagem clara de uma América Latina explorada e oprimida. A queda do ditador Batista e o triunfo da revolução cubana (1959) se tornam a referência para todas as expectativas de mudança e aspirações de justiça dos povos Latino-americanos.

 A Teologia da Libertação é a grande elaboração, própria do momento, para este chamado de uma Igreja integrada aos problemas sociais. Medellín - 1968 - marca a pauta. A Doutrina Social da Igreja evoluiu a grandes passos entre a Rerum Novarum e o Concílio Vaticano II, expressando-se este, entre outros elementos, no protagonismo dos leigos e no surgimento e expansão das Comunidades Eclesiais de Base, com caraterísticas de movimento social intereclesiástico; começando assim o “pôr do sol” do catolicismo imperial conquistador missionário, prevalecente desde a colônia. Os grupos de poder se sentem ameaçados por estas formas eclesiais e as forças que alimentam um espírito mais autônomo, humanista e civil. Apresentam-se agora sociedades mais informadas, que aspiram a uma participação política, que foi sempre negada de forma sistemática.

 Para contrapor-se a estas tendências e de acordo com o feroz anticomunismo da época, os grupos de poder recorrem à repressão brutal e generalizada e à importação do evangelismo histriônico fundamentalista, de cunho norte-americano. A Igreja Católica faz assim experiência do martírio, com muitas figuras emblemáticas, uma delas, Monsenhor Oscar Romero, em El Salvador. Em três décadas, (dos anos 1960 a 1980) a América Latina é massacrada. Forma-se um longo elenco de desaparecidos e de impunidade, de Norte ao Sul, por crimes de lesa-humanidade.

 Chega-se assim aos anos 1990 e com isso à revolução informática e à globalização. Algo acontece nos circuitos de comunicação social: não somente o que se transmite e a velocidade usada, como também a forma interativa em que se dá a transmissão. Vão se instalando assim sociedades pluralistas, participativas, interativas: democratização das formas de expressão, de opinião, e também diversidade dos atores. A cidadania nunca concretada tem agora a sua chance no “galpão” das comunicações, paradigmaticamente as redes sociais: não importa se a ortografia está errada ou o vocabulário pesado. A guerra e toda a sua engenharia se deslocam para as comunicações: desinformação em todas as suas variedades, fake news, manipulação, frivolidades de entretenimento aos montes, silêncio de um Estado que fala de tudo, menos sobre a informação de como participar, mas também um incessante trabalho de comunicação, vinda de todos os lados, uma somatória nunca vista de vozes, sotaques e acentos, demandas, e também de novos sentidos.

 Do sonho independentista e suas alucinantes repúblicas de plantações e diferentes grupos humanos, passando à ideologia do progresso desenvolvimentista, e desta ao redentorismo socialista militarista de sonhos revolucionários tornando-se pesadelos, e daí às promessas e derrame de bênçãos do paraíso neoliberal, temos uma sucessão de deuses terríveis, na realidade demônios, com suas super-promessas e imaginários, ensaiados e fracassados, grandes sonhos desgastados, dando lugar, a partir da era das comunicações, a algo mais simples porém mais consistente e prometedor de resultados concretos, uma sociedade civil que gera, no dia a dia, milhares de possibilidades e micro imaginários flexíveis, fugazes, mas criadores de sentido humano em horizontalidade e não em verticalidade, que distribui da melhor maneira o poder entre todos e que deixa faraós, caciques e ditadores sem emprego. Não há mais heróis, nem mártires, redentores ou caudilhos. O velho modelo agoniza na teia de aranha das redes sociais, sem algoritmo que o salve no meio do proliferado mundo do hipertexto. O modelo da modernidade desmorona sob imperativos ecológicos, feministas, de tolerância, de solidariedade global, de comunicação. O novo protagonista latino-americano é uma cidadania da informação, que demanda a outro estado de coisas que deverá ser imaginado e construído.