AMOR E SONHO: CURAR AS FERIDAS E SEGUIR EM FRENTE
Marcelo Barros
Contam que uma criança chegou diante de um pensador e lhe perguntou: - "Que tamanho tem o universo?". Acariciando a cabeça da criança, ele olhou para o infinito e respondeu: - "O universo tem o tamanho do seu mundo". Perturbada, a criança indagou novamente:
- "Que tamanho tem meu mundo?".
O pensador respondeu: - "Tem o tamanho dos seus sonhos".
E o pensador explicou: - “Os sonhos fecundam com sentido a sua existência. Se seus sonhos são frágeis, sua comida não terá sabor, suas primaveras não terão flores, suas manhãs não terão orvalho, sua emoção não será fecunda. São os sonhos que transformam as pessoas. Dão aos idosos o vigor da juventude e não deixam que morra, em nós, a esperança.”
A sociedade dominante tornou-se perita em roubar das pessoas o direito de sonhar. Para mais de um bilhão de pessoas humanas, os grandes conglomerados financeiros internacionais agem como verdadeiros “ladrões de sonhos” Organizam o mundo de forma que impede a maioria das pessoas viverem dignamente. Insistem que, se milhões de pessoas passam fome, isso é inevitável. No entanto, mesmo nessa realidade, povos tradicionais e comunidades resistem e lutam para alcançar o sonho de uma vida digna.
Embora a ONU não o tenha incluído na Declaração Universal dos Direitos Humanos, o poder de sonhar é o que, no mundo inteiro, mobiliza muita gente, principalmente jovens, que insistem em se reunir e testemunhar que é necessário organizar o mundo de outra forma. Há mais de 20 anos, o processo dos Fóruns Sociais articula projetos dos mais diversos coletivos, reunidos a partir de todos os continentes, para ensaiar novas formas de viver e organizar a sociedade humana.
Nas Américas, povos originários, do Norte e do Sul, das montanhas e das florestas, do litoral e dos sertões, levam muito a sério os sonhos individuais e coletivos. Em diversas etnias e nações, uma das importantes funções dos Xamãs é sonhar. Esses sonhos são instrumentos de escuta do Espírito, que conduz pessoas e comunidades para um projeto de vida e de justiça para todos. Uma das primeiras funções dos sonhos é nos ensinar a curar as feridas do corpo e do espírito. De fato, segundo o evangelho, na linha dos grandes profetas de todas as tradições espirituais, Jesus de Nazaré viveu a amorosidade e se dispôs a curar as pessoas e libertá-las de todo tipo de cativeiro (Cf. Lc 4, 16- 21).
Na Índia, cinco séculos antes, Sidarta Gautama nos apontou o caminho da compaixão (Karuna). É o que hoje faz o atual Dalai Lama afirmar: “Todos nós temos plantada dentro de nós uma semente de compaixão. Nossa tarefa é cultivá-la e fazê-la crescer”.
Em nossa realidade atual, jovens latino-americanos e caribenhos se organizam como grupos e comunidades de vida e assumem, como orientação de vida, o Bem-viver. Na África do Sul, o povo Zulu ensina a toda humanidade: “Ubuntu! Eu sou porque você é. Se você não for, eu não sou”.
Esses paradigmas culturais e políticos do Bem-viver e do Ubuntu supõem novas relações comunitárias que priorizem a educação como caminho para, na expressão do filósofo alemão Theodor Adorno: “desbarbarizar a sociedade e a vida”. Há dois anos, o Papa Francisco convida toda a humanidade a participar de um Pacto Educativo Global, que tem como meta nos educar para a fraternidade universal e à amizade social.
Para organizar uma sociedade mais justa e igualitária, são necessárias opções econômicas e políticas diferentes e novas. A base é a confiança que está ligada a fé, como confiança na bondade fundamental do ser humano e alegria de ver que existem sinais de uma nova consciência de paz e comunhão de toda a humanidade, e entre os seres humanos e a natureza. É urgente curar as pessoas e a sociedade do pesadelo de que governos e países precisam continuar sendo prisioneiros e reféns de bancos e de banqueiros. Trabalhe para abolir as fronteiras artificiais, construídas pelos impérios colonialistas, que nos dividem em cidadãos e estrangeiros. Somos todos e todas cidadãos do planeta Terra e parentes de todos os seres vivos, irmãos e irmãs das árvores, das flores, dos animais da floresta, dos campos, das águas e dos ares. Somos membros da grande comunidade da Vida.
Para viver isso, promova a ecologia do cuidado universal. Nesse caminho mais amplo, você pode se sentir livre e testemunhar a liberdade, que possibilita as pessoas a assumirem o seu direito às diversidades, em seus corpos, a partir das diferentes orientações sexuais e de gêneros, em suas culturas coletivas, na construção de uma sociedade plural...
As mais diversas correntes culturais da humanidade, desde as antigas tradições orientais, como também as espiritualidades dos povos originários e a própria Bíblia, revelam que, essa construção de uma humanidade irmã a partir das diversidades e da comunhão cósmica, é o projeto divino para o mundo e a humanidade. O biólogo Emmanuel Almada escreve: “O amor é fenômeno biológico, como belamente demonstrado por Humberto Maturana. Segundo o neurobiólogo chileno, “o amor é fenômeno biológico que não requer justificação”. É o amor, a emoção que fundamenta a socialização, uma vez que é ele que permite os encontros recorrentes entre os indivíduos. Para Maturana, o movimento contrário ao amor é a rejeição e a indiferença. Ao alargar o espectro do amor para os outros sistemas vivos, é possível compreender o amor como base de todas as alianças, não só entre humanos. É essa tendência de viver juntos, de atenção e aceitação da diferença, que permitiu, ao longo da história ecológica da terra, o encontro entre espécies, inclusive entre parasitas e seus hospedeiros. Foi assim, num processo amoroso, como nos ensinou Lynn Margulis, que há bilhões de anos, na imensidão dos mares primevos, uma bactéria aeróbica penetrou em outra anaeróbica, formando os primeiros eucariotos dos quais descendemos (Lynn, 1967, p. 14). (...) É o jogo autopoiético3, que caracteriza o encontro entre sistemas vivos, descrito também por Maturana e Varela, onde se muda para continuar a ser (o mesmo)”4.
É o amor, como postura e orientação de vida, que transforma o futuro em caminho real de um mundo novo de justiça e paz. Assim, o direito de sonhar não se restringe apenas à projeção de desejos inconscientes. É missão de todas as pessoas famintas e sedentas de justiça. Ao lutar pacificamente para realizar esse sonho coletivo de paz e justiça, não estamos sozinhos. Conosco está Alguém que se manifesta em todo ato de amor e nos dá a força de tornar real a utopia de uma vida verdadeiramente realizada
3 - A autopoesis é a capacidade dos organismos vivos se autoproduzirem em uma relação de interdependência e permanente renovação. É um fenômeno biológico das células, mas atinge também a vida em todas as suas dimensões (Maturana, 1998).
4 - Cf: https://kaiporabiocultural.com/2020/06/07/nao-e-uma-questao-de-guerra-ou-sobre-o-amor-nos-tempos-da-covid/
e feliz. Escute essa voz que fala em você e em todas as pessoas que amam a vida. Ela nos convoca para a prática do bem-viver, concretizado na caminhada da Justiça, Paz e cuidado com a mãe Terra e toda a natureza.
Em plena crise da pandemia, em uma audiência pública, em agosto de 2020, o Papa Francisco afirmou: “Um novo encontro com o Evangelho da fé, da esperança e do amor convida-nos a assumir um espírito criativo e renovado. Desta forma, poderemos transformar as raízes das nossas enfermidades físicas, espirituais e sociais. Poderemos curar profundamente as estruturas injustas e práticas destrutivas que nos separam uns dos outros, ameaçando a família humana e o planeta”. (audiência geral, 05/ 06/ 2020).
Em Chiapas, no México, há mais de 25 anos, as comunidades indígenas do sul do país se rebelaram contra o Estado, refém do colonialismo do Império, e proclamaram sua autonomia social e política. Os seus comandantes afirmavam: “Somos um exército de sonhadores. Por isso, somos invencíveis”.