Animais Não São Coisas

Animais Não São Coisas

Uma reforma necessária da legislação em nossos países

Associação Parlamentar em Defesa dos Direitos dos Animais


A questão não é se têm capacidade de raciocínio ou de linguagem, mas se têm capacidade de sofrimento (Jeremy Bentham, filósofo do século XVII).

Desde a origem da vida neste planeta, a humanidade estabeleceu seu domínio sobre todas as coisas, os recursos naturais, a terra, a água e sobre os demais seres vivos, incluídos outros homens e, em especial, as mulheres. Durante milênios utilizamos os animais como objetos a nosso serviço. Em consequência, o Direito esqueceu de tratá-los como seres vivos, reduzindo-os a ser mera propriedade das pessoas.

No entanto, nas últimas décadas, a percepção que temos dos animais está mudando: já não podemos equipará-los às coisas. E a mudança social de visão, impulsionada pelos avanços da ciência, chegou ao Direito, que deve ser adaptado à nova realidade, com as consequências que trará consigo. Assistimos a um processo de descoisificação dos animais, que deveria ser ininterrupto, e que vem de mãos dadas com um novo conceito: a “sentiência animal”. O que queremos dizer quando qualificamos os animais como “seres sencientes”?

Os conhecimentos científicos sobre a consciência animal, de sua comunicação e linguagem, ou da inteligência analítica e emocional, estão transformando nossa visão, o que nos obriga como sociedade a aprofundar sua proteção legal. Hoje em dia, a comunidade científica demonstrou que os animais têm sentiência, isto é, sensações físicas e psíquicas complexas, e percebem e transmitem emoções e estados de ânimo.

A sentiência é a capacidade de sentir, e daí vem o adjetivo senciente, que deriva diretamente do latim. Pode não ser uma expressão habitual em nosso vocabulário coloquial, porém, é um termo que encontramos em ensaios filosóficos e textos legais, sobretudo em sua forma culta, senciente, como na Psicologia, de Pinillos, de 1975, ou na Inteligência senciente, do filósofo Xavier Zubiri, de 1980. Sua aplicação aos animais vem da ciência do bem-estar animal durante o século XX. Sem dúvida, a recente irrupção da palavra produziu a raiz das reformas do Direito Civil aprovadas em distintos países depois da inclusão no Tratado de Lisboa da União Europeia da expressão sentient beings, em seu original em inglês. Não diz sensitive beings (seres sensíveis), mas sentient beings (seres sencientes). Não é o mesmo “sensible” que “senciente”. Uma coisa é ser sensível, perceber o que nos chega do exterior, e outra é ser senciente, sentir por dentro, ter sentimentos e emoções. Os animais, incluídos nós, os humanos, não apenas somos sensíveis, mas somos sencientes, dotados de capacidade para sentir, experimentar sensações complexas, emoções e estados de ânimo. Isso é a sentiência, que nos diferencia das plantas e objetos.

Os primeiros textos legais que explicitamente reservam aos animais uma categoria distinta das coisas são os códigos civis da Áustria (1988), Alemanha (1990) e Suíça (2000), porém neles ainda não se menciona a sentiência. Opta-se por uma definição negativa: “os animais não são coisas”. No entanto, não se diz o que são. A resposta virá a partir de 2009, quando o Tratado de Lisboa emprega a expressão seres sencientes para justificar as exigências em matéria de bem-estar animal na União Europeia. Os Códigos Civis, modificados posteriormente, preferiram continuar desenvolvendo esse conceito positivamente, embora substituindo o termo senciente pela sua explicação. Assim, na França (2014), Portugal (2016) e Espanha (2018) se reconhece um novo status jurídico para os animais como seres vivos dotados de sensibilidade. Na mesma linha, em 2016, a Colômbia reformou seu Código Civil para reconhecer os animais como seres sencientes, pelo que “receberão especial proteção contra o sofrimento e a dor, em especial os causados direta ou indiretamente pelos humanos”. Em outros países, a sentiência animal não chegou ainda a seus códigos civis, porém se lança mão de leis específicas, como na Lei de Bem-estar Animal da Guatemala (2017): “Todos os animais terão a partir da promulgação da presente lei, o reconhecimento jurídico de seres vivos sencientes, e contarão com especial proteção contra o sofrimento e a dor causados direta ou indiretamente pelos seres humanos”. Na legislação similar da Nicarágua (2010) e Honduras (2015) se fala de seres vivos que sentem, capazes de “sofrer dor ou estresse”. No Peru (2016) se reconhecem os vertebrados domésticos e silvestres como “animais sensíveis que merecem gozar de bons tratos por parte do ser humano”. Nos últimos anos se sucedem as iniciativas legislativas para reconhecer a sentiência animal em outros países latino-americanos, ainda que pareça encontrar muitas resistências.

Na Argentina, os tribunais de Justiça abriram o debate dos direitos animais com sentenças históricas ao aceitar o habeas corpus para a orangotanga Sandra em 2014, e para a chimpanzé Cecília em 2016. No primeiro caso, os grandes símios foram reconhecidos como pessoas não humanas; e no segundo, os animais como seres vivos sencientes, “sujeitos de direitos”.

A nova concepção dos animais está se convertendo em fenômeno global, proporcionando contagiosa e contagiante mudança na legislação de diversos países de ambos os hemisférios, que alcança até a Nova Zelândia (2015) ou Canadá (2016). Os animais não podem ser tomados como “coisas ou bens móveis”; agora devem ser tratados como seres sencientes ou seres vivos dotados de sensibilidade. Obviamente, a consideração não podia ser atribuída exclusivamente aos “animais de companhia”, pois se refere a qualidades que afetam todos os animais. Seria cínico falar da sensibilidade dos cachorros e gatos com os quais convivemos, mas negá-la ao elefante ou ao leão que atuam no circo, ao touro que lida na praça ou à vaca e ao porco, criados na fazenda. Todos eles estão dotados de sensibilidade. Assim o demonstram os cientistas, e juízes e legisladores o aceitam, com as consequências que isso implica. O incontrolável processo de descoisificação não é declaração oca: converte os animais em sujeitos de direitos, que devem estar sob a proteção da lei.

O novo status jurídico dos animais se chocará de frente com milênios de utilização, mercantilização e, por que não dizê-lo, de exploração dos demais animais com quem compartilhamos o planeta. Nós os usamos não apenas para nos alimentar, mas como objeto de entretenimento e diversão, meio de transporte ou expressão de luxo e distinção. Convivemos com algumas práticas que, embora se amparem na tradição ou no costume, ou ainda que as envolvamos com a etiqueta de patrimônio cultural, são exemplos evidentes de maltrato animal, absolutamente incompatíveis com o reconhecimento dos animais como seres dotados de sensibilidade. Práticas que deveríamos erradicar em pleno século 21

Se uma opção ética crescente em nossa sociedade impulsionou a mudança na legislação, agora é o Direito que nos empurra a dar uma resposta ética à nossa relação com os demais animais. Não será um processo simples e nem rápido, porém o reconhecimento da sentiência animal terá consequências. E já não mais podemos negar que os animais são sujeitos de direitos, e que nos corresponde exigir esses direitos, pois eles não têm como fazê-lo. Isso significa exigir dos poderes públicos que adequem a legislação ao novo adjetivo para os animais: endurecendo as leis penais para o castigo pelo maltrato animal ser eficaz, melhorando as leis de proteção animal para acabar com a compra-venda, o abandono e o sacrifício indiscriminados, fomentando a adoção, erradicando o maltrato e morte de animais em espetáculos públicos, acabando com a utilização de animais nos circos, eliminando o modelo colonialista dos zoológicos e apoiando a criação de santuários, questionando o uso e abuso de animais na experimentação, pondo fim à exploração de animais empregados na tração a sangue, reafirmando o modelo insustentável e cruel da criação industrial, ou incorporando a empatia para os animais nos currículos educativos, entre distintas outras medidas que nos ajudarão a nos reconciliar com o planeta e todos os seres vivos, com os quais o compartilhamos. Respeitando os animais nos converteremos em pessoas melhores.

De tudo isso falamos quando afirmamos que os animais não são coisas.

 

Associação Parlamentar em Defesa dos Direitos dos Animais,

Zaragoza, Espanha