Arquivos da repressão nos países do Cone Sul

Direito de informação e dever da memória
Arquivos da repressão nos países do Cone

Laura BÁLSAMO


Desde os anos da década de 60 até os anos 90, di-versos Estados da América do Sul iniciaram um conjunto de práticas políticas e ideológicas que mais tarde seriam conhecidas como o «terrorismo de Estado», fundamenta-das na «Doutrina da Segurança Nacional», sob os gover-nos autoritários e ditatoriais. A coordenação repressiva entre os distintos Estados teve uma expressão sangrenta e tristemente eficaz: o denominado «Plano Condor».

Com a chegada da democracia em todo o Cone Sul latino-americano, diante das múltiplas violações dos Direitos Humanos, as organizações de DDHH e grande parte da sociedade reclamam justiça e reivindicam o direito à verdade ou o direito ao saber e o dever da memória ou o dever de recordar.

Justiça

O pedido por justiça para acabar com a impuni-dade teve sorte diferente em diferentes países, desde a impunidade absoluta imposta pela lei e convalidada pela população através de um referendum, no Uruguai, até o julgamento das Juntas e os processos aos militares por seqüestro de menores, na Argentina. Na maioria dos países houve leis de «ponto final» ou de anistia para os militares que cometeram violações de direitos humanos.

Verdade

Deste modo foram formadas, em diferentes paí-ses, as denominadas Comissões da Verdade, criadas para ajudar as sociedades, que enfrentaram situações de violência política, a superar os traumas criados e a evitar que tudo isso se repita. Os objetivos específicos são a investigação das violações contra os direitos humanos, o estabelecimento das responsabilidades jurídicas e a recomendação de uma política de reparação às vítimas. Em alguns países essas comissões surgiram como fruto de uma resolução governamental, em outros surgiram das organizações de direitos humanos.

Memória

A partir do denominado «terrorismo de Estado» surgiram, ou foram criados e formados arquivos: docu-mentos, dados, números, que falam dos afetados e dos que afetaram; de civis, militares, torturados e desapare-cidos; enfim, da sociedade inteira. Sua existência foi, em muitos países, sistematicamente negada pelos governos durante anos.

O acesso aos arquivos, como parte do trabalho de recuperação da memória, é de crucial importância, pois os arquivos da repressão são um dos pontos de partida para começar a reconstruir uma sociedade digna, justa, e democrática. É necessário preservar os documen-tos que testemunham a magnitude da repressão e a existência das vítimas, para que não se instaure o «memoricídio» (esquecimento deliberado das atrocidades cometidas por parte do Estado), como foi tentado por parte dos regimes ditatoriais e de alguns governos de-mocráticos que os sucederam. Desta forma, os arquivos podem servir como meio de comprovação para as vítimas no exercício de seus direitos e, além disso, servem para a identificação das responsabilidades pela violação dos direitos humanos.

Abertura de Arquivos

No Brasil, entre 1991 e 1996, foram recuperados –por conta da pressão dos organismos de direitos humanos– alguns dos arquivos dos DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Os documentos foram trans-feridos aos arquivos públicos e passaram a ser também de acesso público. Os arquivos são provenientes da polícia política e se constituíram em fontes de grande valor para o exercício do hábeas data –reconhecido na constituição brasileira– para solicitação de compensa-ções por parte das vítimas de violação contra os direitos humanos e para a localização de desaparecidos.

Os arquivos pertencentes à área militar ainda não foram abertos para o acesso público, devido a um decreto através do qual foram estabelecidos prazos muito longos para a consulta à informação secreta. (O Presidente Fernando Henrique Cardoso estabeleceu um prazo de 50 anos, com prorrogação indefinida; Lula baixou-o a 30 anos, prorrogáveis por mais 30).

O único caso de acesso a um arquivo militar é o de uma equipe de advogados que fotocopiaram os processos que estavam em poder do Superior Tribunal Militar: ex-presos denunciavam torturas e torturadores. Com esse filtro os documentos foram editados no livro Brasil Nunca Mais.

Na Argentina, em 1998, foi descoberto o Arquivo da Direção da Inteligência da Polícia da Província de Buenos Aires, que posteriormente foi cedido à «Comissão Provincial pela Memória». Essa comissão é um organismo criado por lei e integrado por personalidades provenien-tes das organizações de direitos humanos, legisladores e jornalistas. Na Comissão existe uma equipe que trabalha na tarefa de classificação, mapeamento, conservação e digitalização dos documentos. O arquivo contém quase quatro milhões de folhas e trezentas mil fichas pessoais e temáticas, que vão desde a década de 1940 até 1998, além de 750 fitas de vídeo e 160 fitas cassetes (de áudio), com gravações de eventos e escutas.

No ano de 2003, o presidente Kirchner criou o «Arquivo Nacional da Memória», subordinada à Secretaria de Direitos Humanos da Nação. Esse arquivo tem como atividades fundamentais obter, analisar, classificar, digi-talizar e arquivar informações, testemunhos e documen-tos sobre a violação dos direitos humanos. Em seu acer-vo estão os arquivos da CONADEP, o arquivo de falecidos, o Arquivo da Comissão Nacional pelo Direito à Identida-de. Uma das utilidades do arquivo está em função das leis reparatórias. Reúne informação a fim de emitir os certificados de «ausência por desaparecimento forçado», exigido pela legislação.

No Paraguai foi descoberto, em 1992, o chamado Arquivo do Terror. Foram encontrados 600 livros encader-nados, 115 livros de «Notícias de Guarda», 574 pastas sobre partidos políticos, mais de oito mil fichas de deti-dos, quase dois mil passaportes, três mil fotografias, 543 fitas com gravações de milhares de informes confiden-ciais. A descoberta obteve grande repercussão por conter documentos que confirmavam a existência da coordena-ção repressiva no Continente, conhecida como «Plano Condor». O arquivo está sob a guarda do Poder Judicial e foi micro filmado; seus documentos serviram para iniciar julgamentos e separar funcionários implicados em torturas.

No Uruguai, no ano de 2003, um grupo de antigos estudantes universitários, dirigiram uma petição aos Ministérios de Defesa e do Interior, solicitando a classificação de documentos de Inteligência sobre as atividades estudantis desenvolvidas durante a ditadura. Foi possível o acesso a documentos reservados do arqui-vo de Inteligência do Ministério do Interior. Pela primei-ra vez pode-se ter acesso, no Uruguai, a fotografias, recortes da imprensa, informes de seguimentos de mar-chas estudantis... provenientes de um Arquivo do terror.

No ano de 2004 foram realizadas eleições nacio-nais no Uruguai e, mesmo que as novas autoridades tenham tido inicialmente uma recepção favorável do tema, ainda resta saber como se procederá com respeito ao acesso aos arquivos. O governo está preocupado com a confidencialidade dos dados e o controle do acesso.

Considerações finais

É necessário que exista um marco legal que regule a administração, a preservação e o acesso aos arquivos da repressão. É necessário evitar a destruição e ou a subtração de documentos e regulamentar o acesso e a consulta a esses arquivos.

Os documentos aí arquivados possibilitam, não somente reconstruir a história recente e a memória coletiva, bem como indagar sobre a violação dos direitos humanos, seus métodos e seus responsáveis.

Tudo isso em função do «dever de memória», já que «recordamos para a posteridade (...) esse passado no qual nossa história parecia estar enlouquecida e saiu do mundo conhecido para habitar por um tempo na realidade do inferno» (Luís Pérez Aguirre, El Uruguay impune y la memória social, Tribunal permanente de los Pueblos, Sesión Uruguay, 1990).

Alguns dados

ARGENTINA 1976-83: 30.000 mortos e desaparecidos.

BRASIL 1964-85: 365 desaparecidos.

CHILE 1973-90: mais de 3.197 mortos e desaparecidos.

PARAGUAY 1959-89: mais de 2000 desaparecidos.

URUGUAY 1973-84: mais de 200 desaparecidos.

PERÚ 1980-2000: mais de 30.000 vítimas, entre elas mais de 4.000 pessoas desaparecidas.

BOLIVIA 1964-82: 155 desaparecidos.

Bibliografia

- CUYA, Esteban, Las Comisiones de la Verdad en América Latina, KO’AGA ROÑE’ETA sesión iii (1996) - www.derechos.org/koaga/iii/1/cuya.html

- GONZÁLEZ QUINTANA, A., Los archivos de la represión: balance y perspectivas, COMMA, 2, 2004, pp. 59-74.

- OLIVERA, Rubén, Archivos de la represión: a propósito del estudio geoarqueológico del Batallón 13, en «BRECHA», 24/03/05, pp.19-22.

Fontes:

www.menschenrechte.org/beitraege/koalition/beit008ko.htm

www.memoriaviva.com

www.nuncamas.org

www.tau.org/familiares

www.desaparecidospoliticos.org.br

 

Laura BÁLSAMO

Centro de Documentação "Luís Pérez Aguirre",

de SerPaj- Uriguai, Montevidéu.