Ateus e ateias, gentes de espiritualidade

 

Mauro Lopes

Tenho muitos amigos e amigas ateus e ateias - na verdade, a maioria deles o é. Alguns deles questionam-me quanto ao à espiritualidade, afirmando que por não acreditarem, seriam pessoas a quem escapa o tema, que lhes soa como estranho.

Eu costumo responder: “Você lê poesia? Escreveu poesia? Se sim, então é pessoa dotada de imensa espiritualidade, pois nada pode haver de mais transcendente que a poesia.”

Dobremo-nos, você e eu, com o trecho de um poema do grande Vladimir Maiakovski (1893-1930), revolucionário, comunista, ateu. Escolhi este trecho de “Comumente é assim”, escrito para sua amada Lila Brik nos anos 1920:

Cada um ao nascer

traz sua dose de amor,

mas os empregos,

o dinheiro,

tudo isso,

nos resseca o solo do coração.

Sobre o coração levamos o corpo,

sobre o corpo a camisa,

mas isto é pouco.

Há um para além em Maiakovski em todos os poetas e poetisas e todos aqueles que são capazes de emoção com um poema, o canto dos pássaros, o nascer do sol, a criança que corre, o desejo de paz, a busca do amor…

É tudo um grande caminho de espiritualidade, que no mais das vezes é reduzido pelas religiões institucionais a um amontoado de regramentos e controles do corpo, da mente, da alma.

O grande e belo paradoxo do século 21 é, ao lado do ressurgimento do fundamentalismo, o florescer de uma espiritualidade que rompe com todas as arquiteturas rígidas e lança milhões de pessoas ao encontro da poesia, da oração, do diálogo e ad-miração com a beleza de cada jornada, do cristianismo ao budismo, do espiritismo à religiões de matriz afro, do santo daime ao ateísmo.

O que testemunhamos hoje é a busca do amor, da paz, da verdade no reconhecimento de que a beleza está na pluralidade e diversidade.

Nos últimos meses, nenhum texto impactou-me tanto quanto à jornada da espiritualidade quanto a carta escrita pela comunista Olga Benário Prestes a seu marido, Luiz Carlos Prestes e a sua filha, Anita, então com cinco anos de idade, na véspera de sua morte no campo de concentração de Bernburg (Alemanha). Olga foi assassinada na câmara de gás, em 23 de abril de 1942, aos 34 anos.

É um dos textos de espiritualidade mais sensível já escritos - repito, por uma comunista ateia.

Eis a carta:

Queridos:

 Amanhã vou precisar de toda a minha força e de toda a minha vontade. Por isso, não posso pensar nas coisas que me torturam o coração, que são mais caras que a minha própria vida. E por isso me despeço de vocês agora. É totalmente impossível para mim imaginar, filha querida, que não voltarei a ver-te, que nunca mais voltarei a estreitar-te em meus braços ansiosos. Quisera poder pentear-te, fazer-te as tranças – ah, não, elas foram cortadas. Mas te fica melhor o cabelo solto, um pouco desalinhado. Antes de tudo, vou fazer-te forte. Deves andar de sandálias ou descalça, correr ao ar livre comigo. Sua avó, em princípio, não estará muito de acordo com isso, mas logo nos entenderemos muito bem. Deves respeitá-la e querê-la por toda a tua vida, como o teu pai e eu fazemos. Todas as manhãs faremos ginástica... Vês? Já volto a sonhar, como tantas noites, e esqueço que esta é a minha despedida. E agora, quando penso nisto de novo, a ideia de que nunca mais poderei estreitar teu corpinho cálido é para mim como a morte.

 Carlos, querido, amado meu: terei que renunciar para sempre a tudo de bom que me destes? Conformar-me-ia, mesmo que não pudesse ter-te muito próximo, que teus olhos mais uma vez me olhassem. E queria ver teu sorriso. Quero-os a ambos, tanto, tanto. E estou tão agradecida à vida, por ela haver-me dado a ambos. Mas o que eu gostaria era de poder viver um dia feliz, os três juntos, como milhares de vezes imaginei. Será possível que nunca verei o quanto orgulhoso e feliz te sentes por nossa filha?

 Querida Anita, meu querido marido, meu Garoto: choro debaixo das mantas para que ninguém me ouça, pois parece que hoje as forças não conseguem alcançar-me para suportar algo tão terrível. É precisamente por isso que esforço-me para despedir-me de vocês agora, para não ter que fazê-lo nas últimas e difíceis horas. Depois desta noite, quero viver para este futuro tão breve que me resta. De ti aprendi, querido, o quanto significa a força de vontade, especialmente se emana de fontes como as nossas. Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo. Prometo-te agora, ao despedir-me, que até o último instante não terão porque se envergonhar de mim. Quero que me entendam bem: preparar-me para a morte não significa que me renda, mas sim saber fazer-lhe frente quando ela chegue. Mas, no entanto, podem ainda acontecer tantas coisas... Até o último momento manter-me-ei firme e com vontade de viver. Agora vou dormir para ser mais forte amanhã. Beijo-os pela última vez.

Minha jornada pessoal, no contexto do cristianismo, levou-me - não sem muitas crises, medos e rupturas - a este lugar: sinto-me hoje “em casa” partilhando a experiência, os ensinamentos, sintonias de todos os caminhos.

Mas, na verdade, nada há de original ou pós-moderno nisso. O ensinamento de Jesus indicava, num dos mais centrais textos dos Evangelhos, sobre o quê, ao fim e ao cabo, conta na vida (Mateus, 25, 31-40):

E quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os santos anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória. E todas as nações serão reunidas diante dele, e apartará uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas. E porá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à esquerda.

Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: “Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver”.

Então os justos lhe responderão, dizendo: “Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber? E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? Ou nu, e te vestimos? E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te?”

E, respondendo o Rei, lhes dirá: “Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes”.

Como se vê, Jesus não estabeleceu como critério para o balanço final da vida a presença em missas ou cultos, a reza do terço, o seguimento criterioso de prescrições de rabinos, pastores ou padres. É a relação com as outras pessoas que conta, especialmente com aqueles que são marginalizados e oprimidos pelos sistemas de poder.

Uma mística (buscadora) do século 20, Simone Weil (1909-1943), que não é possível enquadrar em qualquer rótulo institucional, escreveu numa carta nos primeiros meses de 1942 - portanto, sincronicamente à carta de despedida de Olga - o que é uma severa advertência aos cristãos: “Cristo ama aquele que prefere a verdade, porque antes de ser Cristo, ele é a verdade” (1985).

A verdade é a busca. Nesta procura, encontramos Cristo, Buda, Ogum, Allah, Iahweh, Energia, Paz. Cada qual com seu caminho único, pessoal, irrepetível - mas todos e todas na grande estrada.

Ateus e ateias podem ser buscadores e buscadoras, dedicados alunos e alunas e bons professores e professoras de espiritualidade, portanto.