Bartolomeu de Las Casas e a liberdade

Bartolomeu de Las Casas e a Liberdade

É possível uma evangelização sem liberdade?

Eduardo Frades


O menino Las Casas recebeu de seu tio Francisco em 1493 um escravo indígena. Mas quando a rainha se deu conta de que Colombo, em 1499, havia dado um indígena como escravo a cada um dos que vinham nos dois navios, que eram uns 300, “teve um grande nojo, dizendo estas palavras: que poder tem o almirante para dar a alguém os meus vassalos?”. E mandou anunciar a sua imediata libertação, e “que regressassem de imediato aqui, sob pena de morte, nos primeiros navios”. Las Casas teve de acatar a ordem; mas não se explica porque não o mandou antes. Não sabe que foi o novo confessor da rainha, Francisco Jiménez de Cisneros, quem lhe fez ver essa grave injustiça que se fazia com os indígenas.

Quando alguns anos mais tarde – em 1515 – Las Casas se encontra com o cardeal Cisneros, já há alguns anos regente de Castela, era apenas um jovem de 30 anos diante de um sábio senador de quase 80. Ele narra este encontro com orgulho por ter sido altamente estimado por esse grande religioso e político. Foi ele quem ensinou a Las Casas a falar com vigor da liberdade. Ele próprio se encarrega de o sublinhar. Confessa que ele “não ousava falar nem pensar em falar sobre a liberdade dos indígenas (como se tivesse de dizer alguma coisa que fosse absurda ou blasfema), até que um dia, falando com o Cardeal sobre a opressão e escravidão que sofriam, e questionando a justiça de tudo isso… o Cardeal respondeu com ímpeto: “Com nenhuma justiça: porquê? Não são livres?”. Comenta o nosso autor que o Cardeal tinha entendido bem a raíz e fundamento da injustiça que se fazia aos indígenas… “pois tantas vezes no preâmbulo recitado os chamava e afirmava serem livres”. A Las Casas este tom soava ainda algo exagerado.

Las Casas havia colocado entre as qualidades que deveriam ter as pessoas enviadas ao serviço dos indígenas “que fossem cristãs, religiosas, prudentes e… amantes da justiça, e das angústias dos pobres e compassivos para com os desamparados”; mas não nomeia a liberdade. Com grande honestidade nos confessa que “andava nos negócios, como em coisas novas e escandalosas, passo a passo e muito cauteloso, até que pensou que deveria ser melhor libertar os índios, tirando-os do poder do diabo; e… para tentar impedir a opressão que os índios padeciam, dada a grandeza dos males”. Conforma-se com a liberdade da escravidão; ainda falta um longo caminho a percorrer ao nosso clérigo.

a) Partindo da liberdade do homem diante da fé. A reflexão de Las Casas sobre a liberdade humana começou ou amadureceu ao tornar-se dominicano e ao escrever o De Único; bem enraizada na ideia cristã irrenunciável da liberdade da fé, já que – como muito bem expressou o gênio de Agostinho: “ninguém pode crer sem querer”. O mesmo voltará a recordar no Tratado Comprobatório por três vezes e na Apologia e ainda no De Thesauris, por ser o fundamento último e permanente de qualquer ideia antropológica de liberdade. Desta liberdade soberana do homem pende o fato criacional da submissão do resto das criaturas ao homem como o seu fim e para seu proveito. Neste ponto concordariam o dado bíblico (Gn 1,26.28; Sal 8,8 e Dt 4,19, a teologia do admirado Pseudo-Dionísio e a reflexão filosófica aristotélica: Somos de algum modo o fim de todas as coisas e usamos de tudo o que existe como se fosse para nós. A coincidência do filósofo com o ideal bíblico e evangélico de Las Casas talvez seja mais superficial que real; mas ao nosso autor basta-lhe o dado da fé e a partir dele lê ou interpreta a teólogos e a filósofos. Por isso retirará umas conclusões que nunca retirou – nem talvez o próprio Aristóteles poderia retirar – e que não se atreveu a retirar o gênio de Tagaste.

No Oitavo Remédio, de 1542, escreveu sobre a liberdade da fé que requer “nos que a hão-de aceitar e receber uma pronta liberdade da vontade, porque a deixou Deus nas mãos e arbítrio de cada um se quer ou não recebê-la. E como isto é o fim que Deus pretende… e assim se deve fazer, há regras, Evangelho e mandamento que Deus pôs”. Daí conclui que não há poder na terra que possa fazer menos livres os seres humanos, se não há uma culpa justificativa, “como a liberdade seja a coisa mais preciosa e suprema de todos os bens temporais deste mundo”. O que se fizer em contrário não tem nenhum valor ético nem jurídico, “porque é mudança do estado de liberdade ao de escravidão, que depois da morte não haja outro dano maior”. Acrescenta outros textos bíblicos que omitimos. O motivo é o costume geral e natural da Divina Providência no governo do mundo, que é “mover, dispor e levar todas as coisas aos seus fins de modo suave, sem violência, nem fardos pesados” (aludindo a Sb 8,1 pelo menos). E porque entre todas as naturezas tem Deus singularíssima Providência e cuidado singular pelas pessoas, criadas à sua imagem e semelhança (aqui é obvia a citação de Gn 1,26.28), e os fez tão livres e senhores dos seus atos e de si mesmos, dotando-os do livre arbítrio e de uma grande vontade, que por nenhuma força nem via pode ser forçada, e o acreditar é ato da vontade; por isso, não quis a Bondade infinita que pela sua santa fé (que providenciou para salvação e saúde dos seres humanos e para levar a natureza à perfeição), se quebrasse o seu mandamento e Providência universal e natural. Anos antes, no Oitavo Remédio já havia falado dos indígenas como “criados e formados à imagem e semelhança da altíssima Trindade, todos vassalos de Deus e redimidos com o seu precioso sangue, e que tem em conta e não se esquece de nenhum deles…”. O mesmo fundamento bíblico será repetido em diversas ocasiões, como no Tratado Comprobatorio para provar a jurisdição legítima dos reis indios, ainda que sejam infiéis. Nessa ocasião acrescenta um refrão seguido de Gn 1,26; Dt 4,19 e Sal 8,8 um texto de Pseudo-Dionísio: Há-que reconhecer que Deus é justo em outorgar a cada ser o correspondente à sua dignidade e salvar a natureza de cada coisa na sua ordem e valor. Seja ou não seja uma obra direta de Las Casas o De Regia Potestate, o autor cita o mesmo texto de Dt 4,19 e argumenta igualmente, para falar dos bem chamados alodiais, ou aqueles que não são reconhecidos a não ser por Deus, porque tudo o que Deus criou, o fez para serviço de todas as nações que há sob o céu. Todavia, nas Doze dúvidas voltará a falar sobre este assunto.

b) Até à liberdade política plena dos povos. Quando Las Casas consegue ser mais consequente com a liberdade dos indígenas é por ocasião das objeções de Sepúlveda. Enquanto nas Trinta Proposições havia posto como XIXª que “Todos os reis e senhores naturais, cidades, comunidades e povos daquelas Índias são obrigados a reconhecer os reis de Castela por universais e soberanos senhores e imperadores de modo feliz, depois de ter recebido de sua própria e livre vontade a nossa santa fé e o sagrado batismo…”. Em troca, na sua Duodécima réplica afirma que se os indígenas, já cristãos, “não quisessem receber tal supremo senhor… não é por isso que se possa fazer a guerra… E, neste sentido, entendo, declaro e limito à décima-nona proposição das minhas Trinta proposições…”. Sobre esta retratação voltará com mais força no seu tratado De thesauris, já no final dos seus anos.

Da raíz antropológica criacional segue-se o tronco da liberdade humana, como o maior bem do ser humano depois da vida. Aqui tem que citar o terceiro princípio, que versa sobre a liberdade de toda a pessoa e até de todas as coisas: “todo o ser humano, todas as coisas, toda a jurisdição e todo o regime ou domínio, tanto sobre as coisas como sobre os homens… são ou, pelo menos, se presumem que são livres, se não se demonstra o contrário”. Prova-o “porque desde a sua origem todas as criaturas racionais nascem livres; e porque numa natureza igual a Deus não fez a um escravo de outro, mas que a todas concedeu idêntico arbítrio. A razão é que a uma criatura racional (considerada em si mesma) não se subordina a outra, como a seu fim, como um homem a outro homem… Porque a liberdade é um direito inserido nos homens necessariamente e por si mesmo desde o princípio da natureza racional, e é por isso de direito natural… e que a escravidão é um ato acidental, imposto ao homem por casualidade ou por desgraça; mas cada ser alcança a sua espécie segundo o que é por si, e não segundo o que é acidental; e o mesmo vale do juízo sobre os seres; pelo que “não tendo sido demonstrado que algo ou alguém seja servo, o juízo deve estar em favor da liberdade e segundo a liberdade”.

A liberdade do ser humano pede cada vez maiores espaços de decisão. Assim, no Tratado comprobatório encontramo-nos já com a ideia da liberdade de eleição do soberano. “A razão é porque a eleição dos reis e de quem tivera de reger homens e povos livres, pertence aos próprios que hão de ser regidos, de lei natural e direito dos povos, submetendo-se eles próprios ao eleito por seu próprio consentimento, que é ato da vontade que de modo nenhum pode ser… forçada, como quer que todas as pessoas nascessem e fossem livres…”. Algum tempo antes, ao escrever o Tratado dos índios que foram feitos escravos, já cita frases jurídicas que propõem que a liberdade é uma coisa muito estimável; a liberdade é o melhor para todas as coisas; e pelo mesmo motivo, como “a liberdade dos humanos, depois da vida, é a coisa mais preciosa e estimável… quando há dúvidas na liberdade de algum… deve-se responder e sentenciar a favor da liberdade”. Repete-o um par de vezes mais, especialmente no corolário segundo, relativo aos deveres episcopais.

Por isso, não duvida em corrigir a própria Bula papal de doação, se “parece privar todos os senhores [das Índias] dos seus estados. A isto respondemos que nunca Deus quer que tal coisa se diga do vigário de Cristo. Se geraria… um ódio contra a fé, infâmia da Lei de Cristo… e assim nunca se dispunham nem amariam receber a fé; e, se a recebessem, não seria senão como forçados e de má vontade”. Além disso volta a referir a razão suprema, que é o exemplo de Cristo, que nunca usurpou reinos terrenos: “Deus não o fez estando corporalmente presente, não o faria hoje. Porque com a sua fé e com a sua graça não revogou a lei natural… antes a confirmou e a estabeleceu, ainda que tendo poder e autoridade para o fazer – supõe Las Casas, de acordo com a teologia da sua época. Também na História das Índias, ainda que de forma mais indireta, aparece o grande tema da liberdade humana, individual e política. A mesma ideia se encontra na Apologética História, que cita expressamente: “E por esta razão todo o estudo e cuidado dos tiranos, segundo o filósofo… é ter os cidadãos em grande servidão e temor para efeito de que não possam ocupar-se dos atos generosos, livres de razão e entendimento para pensar nos remédios da sua opressão, e que se façam covardes nem ousem acometer a procurar a sua liberdade”.

Onde chega a retirar as consequências antropológicas, sociopolíticas e éticas do seu ideal libertador é nos últimos escritos, como o De thesauris e as Doze dúvidas. É aqui onde repete as frases mais ousadas sobre a liberdade humana, inclusive a política, como um dos maiores valores humanos. Uma delas a tomou de Salustio, que escreveu: nenhum homem cabal perde a liberdade sem ser com a vida. Vem depois de recordar que a natureza, quando pode, recusa sempre o triste (desagradável), como diz Aristóteles; a esta classe de coisas tristes que recusa a natureza, pertence a “escravidão, que se diz imagem da morte», como afirma Policraticus”. Mas é Cícero quem afirma que a escravidão “é o último de todos os males, que deve rejeitar-se não apenas com a guerra, como também com a morte”. Outra frase chama a atenção: “a liberdade não se vende nem por todo o ouro do mundo” e aparece no Princípio VI das Doze Dúvidas e o repete.

Em todos estes textos se trata da liberdade política dos reis e nações índias, que têm de dar o seu livre consentimento, para que o rei de Castela seja com justiça e direito o seu Senhor supremo – sem suprimir os seus direitos e jurisdições – e até para que a famosa doação papal tenha algum valor jurídico real. Não apenas se retrata do que havia afirmado em ocasiões anteriores, como também concede inteira liberdade aos povos indígenas para apresentar ou não tal consentimento: tanto depois do batismo como antes, se não querem admitir os nossos reis como príncipes supremos, não há nenhum juiz no mundo que tenha poder para os castigar por esse motivo… Com efeito, dentro das suas faculdades naturais, têm direito a consentir ou a dissentir da tantas vezes citadas, a instituição papal.

Se os indígenas – inclusive depois de batizados – não dão livremente o seu consentimento, tudo é um mero direito à coisa, mas não direito sobre a coisa: um título não válido até ter conseguido esse consentimento livre. A demonstrar isto, Las Casas dedicará nada menos que a parte central do De thesauris, que abarca a particular 11, que formula assim: “Depois de mostrar-lhe o título jurídico, toda a modesta, branda e dulcissimamente que se possa, devem ser persuadidos os povos, gentes e seus reis, movidos e induzidos com boas razões, com doces e suaves palavras e com suaves induções – mostrando-lhes as vantagens que posteriormente obterão – a que consintam voluntariamente à instituição papal que torna os nossos reis príncipes e senhores universais daquela orbe, etc. Já o mero “juramento de fidelidade é uma certa escravidão”; que além disso acarretará consigo muitas outras, por exemplo a dupla tributação, como sublinha nas últimas obras. No final presume que não prestarão nunca esse consentimento com plena consciência e liberdade, por causa do medo que se lhes infundiu e no qual se mantêm; pois sob um sistema de medo o ser humano não vive a sua plena liberdade.

 

Eduardo Frades

Caracas, Venezuela