BÍBLIA PARA DOMINAR E EXCLUIR, BÍBLIA PARA UNIR E LIBERTAR
Edmilson Schinelo
Bem sabemos que nosso continente latino-americano tem suas raízes
religiosas mais profundas nas espiritualidades indígenas. Somos também culturas
herdeiras da riqueza espiritual de diferentes povos africanos, em sua maioria,
arrancados de seu chão e trazidos à força para nossas terras. Apesar disso, não temos
como negar a presença da versão europeia do cristianismo que, mais adequadamente,
devemos chamar de cristandade.
Com a cruz e a espada, chegou também a nós a Bíblia, livro sagrado de povos
judeus e cristãos. Aos poucos, ela foi acampando no mais profundo ser de nosso povo.
De tal forma que, depois de séculos, é impossível dissociar a alma do povo latinoamericano deste livro sagrado. E, apesar de sabermos dos grandes estragos que a
Bíblia ajudou a causar ou pelo menos justificou em nossa história, não seria possível
simplesmente devolvê-la à Europa.
E nem seria correto, até mesmo porque se trata de um livro que é
“matrimônio” de toda a humanidade - para fugirmos do termo “patrimônio”. Além
disso, mesmo antes de estar na Europa, a Bíblia já estava na África e na Ásia (confira,
por exemplo, At 8,27-28). E para a fé cristã, estas Sagradas Escrituras nos mostram, em
suas narrativas, que o próprio Deus quis se fazer gente e acampar em nosso meio (Ex
3,7-10; Jo 1,14). Se, por um lado, a Bíblia foi utilizada para oprimir, por outro, também
sempre serviu como ferramenta de luta, de esperança e de resistência na caminhada
de libertação do povo latino-americano.
Um livro em disputa
Desde o século XVI, instituições políticas e religiosas utilizaram textos bíblicos
para justificar a opressão e a escravidão em nosso continente. Mas não faltaram vozes
que, também em nome da mesma Bíblia, denunciaram a violação da dignidade
humana. Se em outras épocas isso já aconteceu, em nossos dias a Bíblia é, ainda mais,
um livro em permanente disputa: em um campo, grupos fundamentalistas, com
práticas machistas e homofóbicas, defensores ou até mesmo praticantes da violência
armada, da intolerância religiosa e da degradação ambiental; em outro campo,
pessoas e grupos acreditam que a pluralidade e a diversidade fazem parte do sonho de
Deus para a humanidade e para nossa grande “casa comum”.
De um lado, a “bancada da Bíblia” se une e se mistura com as bancadas da
bala, do boi e dos bancos: religião legitimando violência. De outro, também em nome
da Bíblia, cresce o número de quem assume a causa e a voz de Marielle Franco, de
Romero, de Luther King: religião impulsionando resistência. As diferenças de leitura -
legitimando diferentes escolhas - são tão grandes, que a primeira impressão é de que
não se trata do mesmo livro.
Evidentemente fazemos a escolha política, em última instância uma escolha
de fé, ao estarmos no segundo campo. Até porque não queremos ver a Bíblia tendo
suas páginas rasgadas, seja por esta disputa, seja por interpretações que legitimem
violência e morte. Para nós, rasga as páginas da Bíblia quem faz leitura
fundamentalista e opressora, porque assim se “rasga” a vida de pessoas e de povos
inteiros.
Que critério, no entanto, utilizamos para essa escolha? A prática e a pessoa de
um camponês nazareno chamado Jesus. Fiel à cultura e à fé de seu povo, aberto à ação
do Espírito, ele nunca fez leitura fundamentalista ou legalista da Bíblia. Fieis a esse
critério, não partimos de um livro ou de uma doutrina, mas da possibilidade da
experiência com o Ressuscitado, o mesmo que viveu a experiência da cruz.
Para o Nazareno, a Bíblia sempre esteve a serviço da Vida, o texto escrito não
é maior que o texto vivido. Absolutizada em si mesma, a Bíblia é letra morta. E, se lida
de forma distorcida, a “letra morta” serve apenas para justificar outras mortes. O
Espírito comunica a vida, a letra mata (2Cor 3,6). O texto da Bíblia só tem sentido se,
liberto de qualquer leitura colonizada ou colonizadora, ajuda no processo de libertação
do texto da Vida. Esse texto vem em primeiro lugar.
Lâmpada para os pés e luz para o caminho
O Salmo 119 afirma que a Palavra de Deus “é lâmpada para os pés e luz para o
caminho” (Sl 119,105). A metáfora é significativa: ninguém volta a luz da lanterna para
os próprios olhos. Lida de forma distorcida, a Bíblia ofusca a visão. Propositalmente ou
não, muita gente faz do texto bíblico uma lanterna voltada aos olhos, um instrumento
de cegueira. E, deixando de enxergar o caminho, passa não só a tropeçar, como
também a pisar nos irmãos e nas irmãs, num “ensaio sobre a cegueira” cada vez mais
amplo e mais cruel.
A seleção de textos bíblicos feita para justificar posições já formadas pode
significar fechamento à ação do Espírito. Já com uma opinião formada, recorre-se a
textos deslocados de seu contexto histórico e literário somente em busca de
legitimação para pré-conceitos. Recorrendo-se a textos isolados, o risco de violentar o
texto da Bíblia é sempre grande. E se torna inevitável quando a intenção que move a
pessoa é justificar práticas antissolidárias, enriquecimento financeiro ou até mesmo o
ódio manifesto diante de quem pensa diferente.
Outro é o caminho quando se quer unir e libertar: não se retira
aleatoriamente um texto de seu contexto, tanto histórico, como literário; assume-se
que a Bíblia é Palavra de Deus, mas relevada a uma época e a uma cultura específicas;
admite-se que a própria revelação divina ao povo da Bíblia foi gradativa; e,
principalmente, lê-se a Bíblia com uma intencionalidade: a construção do Reino de
Deus, no qual há espaço para todas as pessoas e para todas as formas de vida.
Quem assim procede, ajuda a si mesmo/a e ao povo das comunidades a
iluminar sua história, a jogar luz sobre o caminho a ser construído e caminhado. Sem
concordismos ou legitimações superficiais e fundamentalistas. E uma nova experiência
de Deus e da Vida vai se tornando um critério determinante na leitura da Bíblia,
realizada de maneira popular e libertadora. Pouco a pouco, cresce a descoberta de que
a Palavra de Deus não está só na Bíblia, mas também e em primeiro lugar na Vida.
Reconhecido não como um livro de doutrina, mas como Boa Nova que revela
a presença libertadora de Deus na vida e na luta do povo, a Bíblia é também capaz de
unir sem impor modelos únicos.
Escolha de um caminho: o caminho de Emaús
Não escondemos nossa intencionalidade ao ir ao encontro da Bíblia: enquanto
palavra escrita, ela não é para nós um fim em si mesmo, não é ponto de partida, como
não é ponto de chegada. É instrumento, ferramenta que interage com mãos artesãs na
construção do novo. E é luz para o caminho que escolhemos construir.
Um texto bíblico sempre nos acompanha na descoberta e no trilhar dos
passos: o caminho de Emaús (Lc 24,13-35). Se seguirmos sua proposta metodológica
(meta+odós: através do caminho), não nos deixaremos seduzir e nem seremos
sufocados/as por leituras cegas da Vida e da Bíblia. Ao contrário, faremos comunhão e
comunidade com quem segue desanimado pelo caminho. Tal como se deu com o casal
de Emaús (Maria e Cléofas). E quem poderia ter se tornado presa fácil de discurso
religioso enganador e alienante, reconhece a Vida na partilha do pão (Lc 24,31) e volta
correndo para a missão (Lc 24,33). Se quisermos estar atentos/as a uma leitura
popular e libertadora da Bíblia, relembremos alguns passos observáveis no texto.
O primeiro passo é aproximar-se e caminhar junto (v.15). O interesse
primeiro é pela situação das pessoas (v. 16-17). Por isso, por um longo tempo, Jesus se
põe a escutar (v. 18-24): saber escutar é o passo fundamental. Só depois, para
iluminar a Vida, Jesus retoma a Bíblia, a história do próprio povo: “começando por
Moisés e passando pelos Profetas, interpretou-lhes as escrituras...” (cf. v. 25-26). A
Bíblia aqui não é utilizada para propósitos de ensino, não quer passar ou reforçar uma
doutrina. Jesus recorre à Bíblia para iluminar a realidade de sofrimento, de angústia,
de vida sem perspectivas daquelas duas pessoas. Ao final da jornada, algo também
essencial: entrar na casa, sentar à mesa, partilhar o pão. Quem se dedica
verdadeiramente a se sentar à mesa entenderá de fato o que é ler a Bíblia na América
Latina. Mas, um passo ainda é esperado: saber desaparecer; brincando com as
palavras, não fazemos as coisas “para aparecer”. Se a leitura que fazemos da Bíblia
tem a ver com interesses de projeção política e pessoal, os resultados serão
desastrosos do ponto de vista da uma leitura libertadora.
Repetimos e reafirmamos: qualquer uso da Bíblia que justifique a defesa das
armas, a homofobia, práticas machistas ou qualquer tipo de preconceito contra povos
indígenas e negros é a negação do próprio evangelho de Jesus Cristo. É a cristandade,
mas não expressão do cristianismo.
Na novidade de Espirito e não em caducidade da letra (Rm 7,6), a Bíblia nos
ajudará na difícil tarefa da busca de novos rumos às nossas sociedades.