Caminhos Que Caminharemos Juntos Para Resistir E Mudar

Caminhos Que Caminharemos Juntos Para Resistir E Mudar

RAquel Guzzo


Para se refletir sobre o «Bem viver, Bem conviver», sobre o Sumak Kawsay, é preciso buscar razões para explicar porque vivemos desistindo da vida e pensar sobre os caminhos que podemos percorrer para buscarmos modos alternativos de construirmos um novo mundo, com aquela disposição de quem não se entrega, não desiste, e que entende que mudanças só acontecem quando agimos, de fato, sobre a realidade.

Mesmo em situações difíceis, em que nossas ações são fortemente reprimidas, em que a luta pelas grandes Causas se dissolve em desânimo e dificuldades para a organização das pessoas em defesa do coletivo, é preciso alimentar a visão clara e a disposição de caminhar em direção de um horizonte utópico. O mundo não se reduz à defesa da vida individual para assegurar um cotidiano de pequenos horizontes, imediatos e descartáveis diante dos quais inúmeros apelos parecem nos levar a lugar nenhum. As expectativas por um novo mundo parecem não mais alimentar o cotidiano – instala-se um conformismo sem luta, desesperança e nostalgia pela vida que não mais encanta e anima.

Importante pensarmos sobre o fortalecimento e a resistência de pessoas e grupos para o enfrentamento a este modo capitalista de viver. Trata-se de nos movermos em direção a um horizonte ético e político de libertação, que implica na construção cotidiana, persistente e resistente de rompimento com o fatalismo e a alienação resultantes de vivermos sem grandes Causas, desvalidos diante de um poderoso inimigo, contra o qual não nos sentimos capazes de lutar e que nos contamina a cada momento, impregnando nossa vida de pequenas e perigosas concessões.

Não podemos olhar para a realidade como algo que se cristaliza e naturaliza nas condições de exploração, opressão, violência. A vida social, o mundo dos homens é uma construção histórica. Pode ser mudada pela ação dos próprios homens. Mas como mudar se não nos sentimos fortes e preparados?

Olhar um horizonte inalcançável e sentir a impotência de grandes mudanças tem um impacto, que pode ser traduzido em um constante sofrimento de almejar uma mudança que não acontecerá e, por isso, torna-se mais fácil, ou menos desgastante, abandonar a luta e tentar viver com as migalhas que caírem no caminho, ao invés de enfrentar a caminhada e conquistar o bem estar de modo coletivo.

A individualidade egoísta, primazia deste modo de estar no mundo, é a saída para não sentir a dor do outro, aproveitar o mundo para si e, de modo imediato, não pensar no futuro. Os efeitos deste modo de ser devastam, homeopaticamente, o sentido da vida. E assim, diversas formas de respostas aparecem nas doenças psicológicas, no desespero existencial, na insatisfação crescente justificada pelo princípio de que «muito nunca é o bastante» e na ausência da paz.

Buscar saídas é próprio do ser humano. Por que hoje não buscamos lutar pelas «grandes Causas» e preferimos deixar nos levar pela correnteza? Por que vemos a cada dia a destruição em grande escala, dissimulada em uma imagem hipócrita e cínica de progresso, sem questionarmos como um alívio para nosso sofrimento existencial? Por que preferimos nos alienar e buscar conforto no que está posto? Por que entendemos que não temos saída e assumimos uma vida de escravos, sem experimentarmos a liberdade de viver em plenitude?

Todas estas questões tem um elemento comum - para resistir e mudar é preciso compreender as contradições existente no mundo de hoje. É preciso ter clareza de que toda prática social é determinada por um jogo de forças que resulta em diferentes interesses, motivações e intencionalidades. É preciso entender que diferentes pessoas olham para o mundo a partir de seus próprios interesses e causas (individuais e familiares), disputam e se enfrentam com outros modos de viver.

A consciência de uma vida coletiva e humanizada não acontece por acaso. É preciso tornar visíveis as necessidades das pessoas que assumem diferentes posições neste mundo. É preciso dar às práticas sociais um sentido profundo e global que supõe um constan-te processo de reflexão/ação para a superação do imediatismo, do espontaneismo e do utilitarismo para alcançar outros níveis de realização e de consciência.

É sobre este desafio que se assenta a libertação de si mesmo para a construção da libertação da humanidade. A consciência se forja dentro de uma vida concreta e almejar uma outra condição de vida supõe romper com o que está vigente. Também o bem-estar ou o mal-estar se forjam na vida concreta. Não é possível, estar bem em um contexto de vida ruim. O bem-estar, quando separado do estar bem, no plano pessoal e coletivo, traz transtornos de consciência que são fontes de adoe-cimento. A vida simples, em contato com a natureza e preservando a convivência com os outros, nos integra em uma perspectiva de harmonia e paz. A defesa de bens comuns, de causas que nos colocam para fora de nós mesmos, atribui sentido à vida.

Quando a ameaça recai sobre a sobrevivência de um povo, é um sarcasmo pensarmos em bem-estar individual. O que está por trás da intenção de se discutir a saúde psicológica, como ausência de doença e apenas um bom funcionamento do organismo humano como uma característica individual, é tentar dissociar a vida real da capacidade de pensar, sentir, ou agir nos processos de luta para se adaptar ao mundo. Não somos sujeitos isolados, somos um coletivo e, como tal, precisamos nos organizar para viver.

A angústia, os delírios ou diferentes formas de desalento, depressões, medos e fugas compulsivas, presentes no dia a dia da vida sem esperança, constituem-se em obstáculos reais à luta coletiva por mudanças. Trata-se de uma postura ética e política em que se abandona o discurso vazio e hipócrita em direção à construção real e cotidiana. Esta luta se caracteriza por um movimento contra a maneira acrítica de compreender a vida, um jeito parasitário de viver o cotidiano para se tornar uma busca constante e intensa de uma Grande Causa.

Viver para acumular bens e perpetuar a herança aos que são a extensão e perpetuação da minha própria pessoa na terra é reduzir a existência ao etéreo e estéril diante do que somos. Os sujeitos humanos, ao se dedicarem a alcançar seus objetivos particulares, ao se empenharem em satisfazer seus desejos pessoais ou anseios de sua família, classe ou grupo, fazem história e perpetuam este modo de vida.

Fazer história é uma opção clara e consequente de fazer política. Precisamos da atividade para pensar e agir. Uma atividade que, por ser capaz de refletir de transformar a si mesmo e a se inventar, é capaz de transformar o mundo. Quando, ao invés de agir e criticar, passamos a relativizar tudo, certamente chegaremos a experimentar o fracasso, porque destruímos nossa capacidade de pensar e, com isso de tomar decisões, o que nos paralisa e enfraquece.

Este processo de nos constituirmos como sujeitos históricos exige que mudemos a formas de nos relacionarmos, de estarmos com as pessoas e, se as relações humanas, mesmo as mais apaixonadas, são relações entre pessoas diferentes e contraditórias, é preciso reconhecer que precisamos amar mais o coletivo, a humanidade do que os nossos ou a nós mesmos. E isto significa dedicar a vida a Grandes Causas.

O plano da utopia exige de nós decisões e escolhas radicais, que nos ajudem a dar sentido à nossa vida. Não podemos desejar uma coisa e efetivamente viver outra. É o cotidiano que traça o caminho. É o horizonte que define a direção.

O sentimento de impotência e desesperança presentes em parcelas cada vez maiores da população impedem o movimento na direção dos horizontes utópicos. Com isso, ao consideramos como naturais, as condições presentes de desigualdade e exploração, de opressão e violência enfraquecemos qualquer possibilidade de movimentos emancipatórios.

Apesar da sociedade dividida em classes sociais, injusta, desigual, opressiva e violenta, há espaço para a ação que constrói uma nova consciência sobre a realidade com potencial de superá-la. É preciso o fortalecimento de pessoas e grupos para que constituam espaços de discussões sobre a realidade e ações concretas.

O modo atual de viver separa as pessoas em suas vidas privadas. Por isso, a consciência que resulta desta forma de viver é aquela que mantém a lógica da individualidade egoísta e mesquinha, a da propriedade privada e da competição que instaura o outro como inimigo. Sendo a consciência a interiorização das relações vividas, a tendência é considerarmos o que percebemos como sendo a realidade e a aceitarmos tudo como a única forma possível de viver a vida.

Se a consciência se forja na vida, o ser consciente é o seu processo de vida real. Por isso, o sentir-se bem no mundo está diretamente relacionado ao construir um mundo onde o viver bem seja possível para todos. É preciso que sejamos capazes de construir uma ferramenta para a ação social e política que permita a compreensão e a mudança da realidade. Um compromisso daqueles que não se conformam com o potencial humano criador e libertário, transformado em escravos do capital, submetidos e explorados, doentes e infelizes. A razão vital e histórica, que nos alimenta a utopia de RESISTIR E MUDAR, de construir o novo e administrar o imponderável, de abrir caminhos e enfrentar os desafios.

RAquel Guzzo

Campinas, SP