Ceuta, migração e refúgio: uma análise crítica
Paula Domingo
Ceuta é uma cidade espanhola situada no Norte da África e separada da Península Ibérica pelo Estreito de Gibraltar. Devido à sua localização geográfica, uma de suas principais características é ser uma “porta de entrada para a Europa”, dentro do complexo mapa das migrações internacionais. A movimentação de pessoas entre Marrocos e Ceuta sempre fluiu de forma quase constante. Isto se deve ao fato de que as pessoas residentes nas províncias de Tetuán e Nador, em Marrocos, assim como a população espanhola, não necessitam de um visto para atravessar a fronteira.
Ao longo do tempo, a migração e suas diferentes formas na cidade de Ceuta sempre passaram por mudanças e sempre dependeram das relações entre a União Europeia, Espanha e Marrocos. Nada do que ocorre, no que se refere ao fenômeno migratório na cidade, se produz de maneira espontânea e casual: tudo está estreitamente relacionado a uma série de interesses políticos e econômicos, que convertem as pessoas migrantes e refugiadas em uma moeda de troca com a qual podem favorecer seus interesses.
Uma das principais violações enfrentadas pelas pessoas migrantes e refugiadas ao longo do percurso é, sem dúvida, sua passagem por Marrocos, uma experiência carregada de violência e injustiça, que as expõe ao não reconhecimento de sua dignidade como pessoas e à violação do direito à livre circulação. A violência, a repressão, as mortes e o desaparecimento de pessoas em trânsito têm aumentado nas últimas décadas, especialmente nos momentos em que o Marrocos recebe incentivos econômicos e materiais por parte da Espanha e da Comunidade Europeia, para que possa levar a cabo estas ações.
Depois de passar pelo Marrocos, as pessoas migrantes devem enfrentar a fronteira com Ceuta, uma barreira que foi mudando ao longo dos anos. Concretamente, de 2019 a 2021, o Governo elevou o muro até 10 metros de altura e retirou os elementos lesivos, enquanto fornecia ao Marrocos dinheiro e material para exercer violência e repressão contra essas pessoas, erguendo, por seu lado, um muro com concertinas e postos militares de vigilância. Em essência, Europa, Espanha e Marrocos, através destas relações e acordos, desencadeiam uma guerra constante contra as pessoas migrantes e refugiadas (que a violência e a injustiça convertem em ameaça), sem escutar nem atender a suas situações particulares:
Marrocos foi para mim um lugar onde me senti desumanizado; e quando escuto a palavra “Marrocos” me vêm todo esse sofrimento, os espancamentos, a impotência. (Freddy)
Quando as pessoas migrantes chegam a Ceuta, tornam a ver sua liberdade de movimento restrita, neste caso, ao território da cidade, já que, diferentemente do resto do território espanhol, Ceuta é uma exceção dentro do Tratado Schengen, ao qual pertence a Espanha, como parte da União Europeia. É por isso que Ceuta, para as pessoas migrantes e refugiadas, é como uma “prisão”, devido ao fato de não poderem viajar para o resto da península, por conta dessa exceção, até que o Governo central autorize. E, assim, essas pessoas podem passar períodos de tempo indeterminados, que podem abranger três ou quatro meses, ou três ou quatro anos. E na maioria dos casos elas acabam sem documentação, com exceção dos requerentes de proteção internacional.
No que se refere aos requerentes de asilo, a partir do ano de 2009 o governo da Espanha deixou de reconhecer o direito à livre circulação, em todo o território nacional, das pessoas que iniciavam o procedimento de asilo em Ceuta. Assim, os requerentes deviam esperar um ou dois anos, até que seu caso fosse resolvido. Este bloqueio implicava que pessoas em situação de requerentes de proteção internacional não a solicitassem em Ceuta, já que as pessoas que recorriam unicamente ao programa de ajuda humanitária permaneciam na cidade por menos tempo.
Devemos recordar que a restrição do direito à livre circulação das pessoas que requerem asilo consiste em uma flagrante violação do artigo 19 da Constituição Espanhola e da Lei de Asilo. Depois de anos de processos judiciais, o Supremo Tribunal concluiu, em duas sentenças – uma de julho de 2020 e outra de fevereiro de 2021 –, que nem as leis espanholas e nem as leis europeias justificam o bloqueio de saída das pessoas que requerem asilo em Ceuta e Melilla.
No momento, este bloqueio é agravado pela pandemia. A fronteira oficial com o Marrocos está fechada há dois anos, o que dificulta o acesso à cidade, situação que agrava ainda mais as dificuldades impostas pelas forças de segurança marroquinas, tanto em relação à fronteira terrestre como à marítima, convertendo o perímetro fronteiriço em um muro intransponível para muita gente. Apesar disso, algumas pessoas conseguem entrar, depois de vencer uma multidão de obstáculos, que deixam marcas físicas e psicológicas por toda a vida.
Como já mencionamos, Marrocos utiliza as pessoas migrantes, bem como seus próprios cidadãos, como ferramentas de pressão. Um claro exemplo disso é o que ocorreu entre os dias 17 e 18 de maio, momento em que o reino de Marrocos mobilizou sua população para entrar de maneira multitudinária e irregular em Ceuta, resultando num fluxo de mais de dez mil pessoas, em sua maioria jovens e crianças, e entre elas pessoas de perfis vulneráveis, que precisavam de proteção internacional, provenientes, por exemplo, de países subsaarianos, ou do Iêmen. Durante esses dias, de maneira sistemática e indiscriminada, centenas de pessoas foram devolvidas, sem identificação ou avaliação prévia de sua situação, sem que se determinasse se essas pessoas necessitavam, ou não, de proteção internacional e refúgio.
Face ao bloqueio de movimentos e da grande quantidade de pessoas migrantes e refugiadas que, após esses dias, permaneceram em Ceuta, o procedimento sobre pedidos de asilo e as sentenças do Supremo Tribunal possibilitaram a livre circulação dos requerentes por todo o território espanhol.
Concluindo, as pessoas refugiadas e requerentes de asilo viram-se, durante os últimos anos, sujeitas a uma violação constante do direito da livre circulação por todo o território espanhol, até o ano passado, sendo que a situação mudou no mês de maio, tal como já mencionamos. Contudo, notícias recentes informam que o governo da Espanha já anunciou mudanças de procedimento na gestão dos requerimentos de asilo, que serão resolvidos em um prazo de dez dias: prazo, a nosso ver, extremamente curto para que se possa fazer uma avaliação real e individualizada de cada situação pessoal e de fornecimento de informações às pessoas.
Isto representaria um novo obstáculo para as pessoas que realmente desejam requerer proteção internacional, visto que sua liberdade de circulação, uma vez mais, estará limitada e condicionada à vontade do Governo.
Elín: criando memória, defendendo a vida e exigindo direitos Nesta realidade, a Associação Elín vem trabalhando, desde 1999, com pessoas migrantes e refugiadas. A partir da Associação, temos centrado nossos esforços em acolher, acompanhar e defender os direitos de homens, mulheres, meninos e meninas, para possibilitar que sua passagem por Ceuta seja a mais digna possível. Do mesmo modo, parte do nosso trabalho tem o objetivo de, em colaboração com outras entidades que atuam no mesmo campo, tornar visível e denunciar as injustiças que ocorrem na cidade, com respeito às famílias, à infância e à juventude migrante e refugiada.
É por isso que denunciamos as injustiças e as violações de direitos a que são submetidas as pessoas migrantes e refugiadas, especialmente no que se refere ao direito à livre circulação. Acreditamos e exigimos que todas as pessoas tenham direito de viajar livremente e mais: a fazê-lo através de vias legais e seguras, que não ponham sua dignidade e sua vida em perigo. Ao mesmo tempo, defendemos um sistema de proteção real e efetiva para todas as pessoas refugiadas e migrantes que chegarem ao território espanhol.