COLONIZAÇÃO, DESCOLONIZAÇÃO E NEOCOLONIALISMO UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA E DO BEM COMUM

 

Papa Francisco

Da carta aos juízes e juízas da Conferência sobre Colonialismo, Descolonização e Neocolonialismo. (março de 2023)

 

A história sempre nos abre a mente para uma leitura do presente e uma projeção para o futuro... Ao focar no temasobre a justiça e o bem comum, se coloca especial atenção à necessidade de compreender como e quanto o processo colonial incide, há séculos e até nossos dias, na epistemologia jurídica e social.

Então, uma primeira reflexão que caberia fazer é sobre a vigência do fenômeno colonial. De fato, se “tecnicamente” no século XXI já não podemos falar de nações geograficamente “colonizadas”, ainda que elas existam, o termo “colonialismo” todavia se usa comumente hoje, sobretudo em um sentido econômico e ideológico. Portanto, esta realidade sofreu mutações em suas formas, métodos e justificativas. Dispondo das novas características que apresentam outros tantos fenômenos políticos e econômicos, também o colonialismo se virtualiza, se mimetiza e se esconde, dificultando sua detecção e neutralização.

Igualmente relevante, e frequentemente entrelaçado com o econômico-político, é o fenômeno da colonização ideológica. Estas sufocam do vínculo natural aos valores dos povos, tentando erradicar suas tradições, história e laços religiosos. A colonização ideológica tende a padronizar, a igualar tudo.

Obedece a uma mentalidade que não tolera as diferenças e se centra apenas no momento presente, nas necessidades e nos direitos individuais, frequentemente descuidando dos deveres em relação aos mais fracos e frágeis.

O fenômeno colonial contemporâneo me preocupa. Parece que vários séculos de experiências históricas sangrentas e inumanas não serviram para amadurecer uma ideia global de liberação, autodeterminação e solidariedade entre as nações e entre os seres humanos. Muito pelo contrário, as formas se sintonizaram e “sutilizaram”. Busca-se substituir a verdadeira causalidade colonial por uma leitura histórica que justifique as práticas de dominação em supostas carências “naturais” dos colonizados.

Não devemos esquecer que as expressões concretas de justiça e do bem comum vão amadurecendo nos povos e como tais devem ser respeitadas. As histórias, as origens, as tradições, as religiões, atravessam as lógicas que dão sentido à determinação do justo e do bom.

Por isso, nenhuma potência – política, econômica, ideológica – está legitimada para determinar de forma unilateral a identidade de uma nação ou grupo social. A submissão e a espoliação dos povos através do uso da força ou da penetração cultural e política é um crime. Configura um crime porque não há chances para a paz em um mundo que descarta populações e oprime para saquear.

Neste contexto é necessário mencionar o rol transcendental que jogam as ciências, as academias, os foros de estudos,  quer seja para operar como fatores de liberação ou para sustentar a dominação dos povos periféricos ou a colonização ideológica.

É preciso fazermos o esforço necessário para terminar, antes tarde que nunca, com as práticas neocoloniais e suas expressões derivadas de racismo e segregação social. Para isso é necessário se aprofundar no fenômeno, compreendê-lo, detectá-lo no próprio seio de nossas instituições judiciais e não dar crédito às posturas negacionistas que atribuem ao diagnóstico neocolonial uma origem conspirativa ou fantasiosa.

Não haverá paz se, nos sistemas políticos de representação, não houver integração real dos povos excluídos. Não são concebíveis os corpos representativos onde somente o poder hegemônico ocupa espaços. É imprescindível um sistema de vagas que reintegre aos povos originários e às etnias deslocadas o espaço de decisão arrebatado.

Mais uma vez peço perdão pelos atos de alguns crentes que contribuíram de forma direta ou indireta aos processos de dominação política e territorial de vários povos da América e da África. Também o peço pelos erros ou as omissões que no presente se produziram ou estão sendo produzidas.