COM AFETO E CORAGEM

 

Mauro Passos

... podemos produzir as ideias
que permitem mudar o mundo.
(Milton Santos)
“O povo unido jamais será vencido”. Este hino de solidariedade transpõe fronteiras, dá sentido à luta, passa pela emoção como uma chama. Com gestos, palavras, valores e afetos, a esperança de um mundo diferente é sempre retomada. Assim, a vida pode se tornar um espaço de (re)encontro. O tempo e o espaço deixam seus sinais, seus símbolos, sua sinfonia. O que modula a relação do ser humano com outros seres? Com a natureza? É na partilha do amor que as relações se humanizam. São os gestos, os cuidados, os caminhos – no horizonte, na totalidade, nos fragmentos, na espera.
O tempo e o espaço registram histórias de pessoas que romperam as referências do dia a dia e anunciaram o bem para a construção de um presente comum para todos. Espaço abriga mistério, tempo gera sonho. Mais ainda: um futuro comum. Basta lembrar alguns nomes que desafiaram o medo e enfrentaram problemas numa marcha abraâmica rumo à verdade e liberdade. Há uma multiplicidade de caminhos carregada de gestos humanitários. Detenho-me em alguns nomes, mas existem muitos numa pluralidade de direções. Nesse sentido, vou adotar uma temporalidade descontínua, à maneira da história foucaultiana, que se cruza e se justapõe entre o passado e o presente. Entre outros, considero Bartolomeu de Las Casas que, com a ternura de seu coração, defendeu os indígenas mexicanos das atrocidades do sistema colonial espanhol e anunciou o Evangelho, inspirado nas ‘Bem-aventuranças’, na luta pela justiça, solidariedade e respeito aos povos originais. É o profeta da América Latina que revelou os impasses entre colonizadores e colonizados. E, hoje, como lutar pela justiça, igualdade dos povos, liberdade e por outra ordem política, social, econômica e religiosa, num momento de uma total globalização? Como sabemos, não basta resolver os problemas; é preciso avançar, pois o campo de ação é, também, uma abertura de portas. Constrói sentidos para a vida, provoca a criatividade, passa pela emoção. Mas não nos
1 Presidente do Cehila-Brasil
2
devemos esquecer – tudo isso carece de novos intérpretes. Mulheres e homens, como seres humanos, são construtores de existência.
Isso exige decisão e rompimento com as normas estabelecidas. Ao longo da história da América Latina, homens e mulheres lutaram por justiça, direitos humanos, sociais e políticos. No Maranhão, um líder camponês – Manoel da Conceição – lutou em favor dos trabalhadores urbanos e rurais, pela reforma agrária e direitos humanos, sociais e políticos. Soube lidar com a fragilidade dos camponeses e com os riscos e incertezas históricas. Militou em várias frentes de ação – Movimento de Educação de Base, Partido dos Trabalhadores, Diretas Já, entre outras.
Para progredir, alçar novos voos para outra interpretação da realidade, enriquecida e mais completa, deu destaque à educação, fator fundamental na construção de outro mundo. A educação tem uma dimensão de totalidade, pois abarca as diversas dimensões do ser humano – física, social, moral, religiosa e cultural. Diz respeito ao todo da vida. Comporta em seu bojo a sabedoria da maturação histórica e o cultivo de utopias. Em um de seus poemas, Mia Couto escreve: “Teus braços (da educação) foram feitos para abraçar horizontes”.
Esses líderes abriram veredas para utopias que pareciam adormecidas (esquecidas no tempo e no espaço). Partiram da realidade social em direção às pessoas, grupos e instituições. De passo em passo e com pequenas iniciativas foram organizando trabalhos, abrindo inciativas e unindo pessoas e grupos. Tudo começava pelo coração. Aqui, entra em campo a ação, esforço, coragem e esperança. Marcam feitos numa perspectiva utópica – utopia, representação construtiva de um mundo possível –, conceito com um componente ambíguo, decorrente da própria etimologia: oútopos e eu-topós, isto é, “não lugar” e “bom lugar”. Buscam reverter uma solução indesejável e necessitada de mudança. Temos aí o estereótipo das grandes vocações bíblicas – o ato da presença. Um após outro ou um e outro criam possibilidades de encontro. Modulam pensamentos. Abrem veredas para utopias que pareciam adormecidas. Partem da realidade social em direção às pessoas, grupos e instituições.
Outros exemplos podem ilustrar esses trabalhos numa conjunção da profecia com a mística. Esta harmonia interior alimenta e dinamiza a realidade. A trajetória de Dom Pedro Casaldáliga, por exemplo, articula dialeticamente vários elementos e relações latentes e difusas no campo social, político e religioso. Os atos e obras deste bispo compõem sua história, sua vida, sua causa, seu testemunho. Seu discurso e sua prática eram pela superação da pobreza, pois a práxis do amor fraterno ultrapassa o
3
nível particular para o social. Assumir o religioso, para este bispo era mover-se em ondas de criatividade, solidariedade e partilha. Obra e pessoa rimam em seu trabalho religioso, intelectual e social, como lembra o poeta Carlos Drummond de Andrade: “Tu és a história que narraste, não o simples narrador”.
Entre outros, tantos outros que compõem este cordel de coragem e esperança, menciono alguns – Zilda Arns, Marçal Guarani, Chico Mendes, Irmã Dorothy, Bruno Araújo, Dom Phillips, Dom Helder Câmara. Uma lista que no escuro de dores, projetaram outro tempo – um cordel de esperança. Lançaram raízes de gratuidade e amor de forma dinâmica e participativa. Desenharam gestos de fundação e novas formas de vida em comum.
“O povo unido jamais será vencido”. Dito de outra forma, este refrão pode transformar o destino imposto em destino construído, sonhado e desejado. Uma sinfonia para vestir o coração e desenhar o amanhã – outro mundo. Somos convidados a compor esse cordel de esperança com gestos de humanidade e palavras que acolhem e dão cor à vida.
Como num eterno retorno, ainda há lugar para a invenção e a solidariedade, pois o futuro pertence a quem tem motivos de esperança. Na partilha do amor, as relações se humanizam. Assim, o “mundo pode tornar a começar”, como lembrou Guimarães Rosa.