COMO CANTAR A VIDA, SE NOSSA PERCEPÇÃO DO QUE SIGNIFICA SER HUMANO ESTÁ MUDANDO?

 

Martha Zein

As tecnologias da comunicação, os avanços da neurociência e as leis do mercado têm facilitado para que nos enxerguemos como seres em rede. Aquela afirmação de Ortega e Gasset - "Eu sou eu e minha circunstância, se não a salvo, não me salvo a mim" - hoje poderia ser abreviada: Nós somos nossas circunstâncias. Agora é fácil entendermos que somos a soma dos nossos vínculos.
Essa mudança na percepção de nossa identidade parece contradizer o extremo individualismo em que cresce o mundo moderno. Além disso, parece nos aproximar do nosso oposto, dessa forma de entender a vida, que ainda guardam aqueles que foram colonizados e saqueados justamente pela chamada cultura ocidental. As comunidades indígenas ou afrodescendentes afirmam que o humano não está separado do não humano, nem a cultura da natureza, nem a mente do corpo. Se sou um ser em rede, significa que sou natureza, sou bosque, sou rio?
O pensamento, ergo sum (penso, logo existo) de René Descartes (“Discurso sobre o método”, 1637), em que se baseou o mundo moderno, parece ter ficado aquém. Agora, começamos a assumir que somos também o que está em jogo em nossos vínculos: as emoções que eles geram, nossos desejos, nossa imaginação... Essa torção em nosso modo de nos entendermos como pessoas, não é trivial, porque também transforma nossa relação com nossos semelhantes, com outros seres vivos, com o mundo.
Acaso, estamos assistindo ao fim do império da razão? Será que estamos preparados/as para admitir que é impossível analisar uma situação isoladamente, que qualquer relato que façamos sobre o mundo será sempre atravessado por nossa própria presença e participação? Será que com nossos podcasts, posts, tweets… estamos afirmando o princípio budista de que tudo interexiste?
Ou, simplesmente, estamos vivendo em uma profunda contradição? Reconhecemo-nos como seres em rede e, ao mesmo tempo, vivemos submetidos aos rigores do individualismo? Aceitamos que as emoções nos formem, mas continuamos a entregar as rédeas de nossa identidade pessoal à razão científica, ignorando o fato de que a própria ciência está demonstrando que árvores e pássaros (entre outros seres vivos) também interagem e se comunicam por meio de sua própria linguagem? Somos capazes de assumir que nossos gestos, nossa voz, a postura de nosso corpo, as reações químicas que sustentam as nossas emoções… marquem o fluxo da linguagem, mas continuamos afirmando que a
nossa biologia apenas se trata dos aspectos relacionados à reprodução, aos ácidos nucleicos ou às mitocôndrias?
Estamos assistindo às bodas de prata da razão e do coração, que anunciou Eduardo Galeano em “O livro dos abraços” (1989), ou os imaginamos como amantes ocasionais que brincam de dominação?
Sabemos, por experiência própria, que nós seres humanos vivemos em um eterno diálogo com o nosso meio ambiente; isto significa que também estamos em conversação com nossas contradições. Qual é a nossa participação nesse diálogo? A desintegração (o que emocionalmente implica a perda de potência, a esquizofrenia, a depressão etc.) ou a integração?
Esta segunda opção nos permitiria compreender que, em cada uma de nossas ações, se faz presente um mundo inteiro, participando por uma infinidade de práticas que vinculam uma multiplicidade de humanos e não-humanos. Além disso, está em nossa natureza a capacidade de enlaçar opostos para criar terceiras possibilidades. Por que não apostar por uma integração poética?
Maria Zambrano cunhou o conceito “razão poética” para expressar, precisamente, a dimensão além do racional do conhecimento humano: “Assim, pois, o conhecimento que aqui é invocado, pelo qual se suspira, este sentimento postula, pede, que a razão se torne poética, sem deixar de ser razão, que acolha o “sentir originário” original, sem coação, livre, quase naturalmente, como uma physis devolvida à sua condição original”, afirmou em “Da Aurora” (1986). Ela, Ortega e Gasset, Unamuno, Cocteau... postularam a relatividade da razão na primeira metade do século passado; tem havido correntes de pensamento, como a Filosofia da Libertação, que apresentam um ponto de vista pulsante da própria existência. Chegou a hora de seguir este caminho. Pensar com o coração e sentir com a cabeça está sendo oferecido como algo mais do que uma opção para uma sociedade que está mudando a sua forma de perceber-se a si próprio: é uma saída de emergência.
Os algoritmos da Inteligência Artificial estão mostrando que é possível conhecer as decisões de um indivíduo seguindo o rastro de suas ações. O fenômeno, de que a tristeza faz você gastar mais, é bem conhecido por psicólogos, publicitários e compradores, e foi documentado em vários estudos ao longo deste século. Não é a razão que nos leva à ação, mas a emoção, e quem administra os fluxos do mercado sabe disso, a ponto de levar o consumidor à exaustão. Para isso, recorrem precisamente à linguagem, à nossa capacidade de integrar histórias, à nossa eterna conversa com a vida. Esquecemos que toda vez que temos dificuldade em "fazer", há dificuldade em "querer", faceta que é ocultada por nossos argumentos sobre esse "fazer". Sentir, pensar e agir estão ligados. Ou o que dá no mesmo: ser, saber, fazer e querer nos definem.
Em poucos anos, a vanguarda científica (nanotecnologia, biotecnologia, tecnologia do conhecimento e da informação, inteligência artificial, robótica, biomimética ou neurociência espiritual) proporá a interação e incorporação de nosso corpo e nossa mente de tecnologias que mudarão, não apenas nossa percepção do mundo, mas a nossa própria identidade. Supõe-se que o resultado será uma espécie humana "melhorada", graças às tecnologias, enquanto a capacidade simbólica será aprimorada. Onde ficará nosso amor, nossos sentimentos, nossa capacidade de sonhar mundos, nossa imaginação e tudo o que, antes de ser nomeado, habita em nossos silêncios? Vamos dar-lhes um lugar subsidiário novamente? Vamos considerá-los desperdícios?
O inconsciente coletivo aparece no horizonte como o próximo território a ser saqueado. Eles esgotarão nossas fontes mais íntimas, aquelas a partir das quais criamos nossa identidade. Por isso, é urgente a apropriação consciente de nossa voz.
Sim, trata-se de colocar limites ao desenvolvimento de novas tecnologias e ao necessário reconhecimento de nossos neurodireitos, mas também é importante reconhecer que nossa percepção do mundo é baseada em nossos vínculos e afetos, tanto emocionais quanto físicos (sentidos) e mentais (memória), e que é esse processo de sentimento-pensamento, sua irregularidade, sua faceta poética e sua jornada pelo nosso próprio espaço/tempo, o que faz a diferença em nossa expressão de vida, em relação a qualquer uma dessas vozes pré-fabricadas por um supercomputador narrador.
Aprendamos dos movimentos sociais, concretamente dos liderados por indígenas e afro-descendentes. Para eles, o conceito de território compreende não apenas a terra e seus ecossistemas, mas também os processos de territorialização que geram identidades e apropriações. Defender a trama da vida também envolve guardar nosso inconsciente, fonte de nossos sentimentos-pensamentos, o berço de nossa identidade pessoal. Como alternativa ao modelo dual de percepção do mundo que confronta razão e coração, frente a agenda internacional do transumanismo, podemos assimilar as propostas do "Bem Viver", dos "Direitos da Natureza", das "transições para o pós-extrativismo", as práticas de "comunidade, relacionalidade e pluriverso" e levá-las a outros aspectos de nossa identidade como indivíduos.
Uma percepção renovada de nossa existência é possível e está em amadurescimento. Vamos expressá-la com uma linguagem tingida de emoções, sentidos, imaginação, intuição, sonhos e memória, abordemos os dados com uma linguagem poética, recuperemos o que há de orgânico na fala. Permitamos um conhecimento cordial da existência. Cantemos a vida de dentro.