Como o vento zonda *

 

Julieta María Berbel

Sangue de mártires é semente de novos cristãos

A Kombi sai cedo, antes que as primeiras luzes da manhã acariciem as ruas do centro da cidade, com os passageiros arrastando os últimos sonhos afastados, alguns inclusive ainda enredados nos restos de uma sonolência persistente. Um silêncio calmo embala os restos do despertar prematuro.

Mariela se junta ao pequeno contingente. É a primeira vez que ela participa da peregrinação e, embora não conheça a totalidade do grupo com o qual viaja, no ambiente se respira uma camaradagem implícita.

O veículo se move tranquilamente, ronronando pelas ruas adormecidas da cidade, rumo à periferia progressivamente. Com o passar do tempo, os viajantes vão adormecendo e o interior da Kombi se enche de alegres conversas.

Ela, no entanto, permanece distante em seus pensamentos, com os olhos perdidos em algum lugar longe do horizonte. Evoca as últimas semanas vividas, as longas jornadas de trabalho, o trabalho pastoral em sua comunidade, as dores das mulheres que ela acompanha diariamente em busca da humanização roubada. A luta diária tem suas contradições e nunca está isenta de fadiga, impotência e dor. Sua alma está ferida pelos acontecimentos dos últimos dias, outra mulher é assassinada, mais crianças desaparecidas, outra garota é estuprada; acontecimentos reincidentes que se enrolam em uma bola emaranhada que parece não ter fim.

E lá está ela, exausta na luta incansável pelos Direitos Humanos. Sua vontade se tornou uma couraça resistente, que envolve suas dores; um calo que sustenta tanto ferimento aberto, que de outra forma a impediria de continuar. Impulsionada por um lampejo interior, ela se deixou levar por essa peregrinação e sente que, de algum modo, está onde deve estar.

Olha pela janela distraidamente enquanto o asfalto sem fim atravessa cidades e vilas. Através do vidro, as paisagens se transformam gradualmente e, enquanto a barulhenta cidade de Córdoba é deixada para trás, a estrada para as montanhas riojanas se abre.

A paisagem torna-se agreste, deserta e arenosa. A progressiva proximidade ao destino comum deixa os viajantes em um clima especial, cada um com sua ressonância interna que se harmoniza com os outros em um compasso musical. Começam a circular as anedotas e, a memória se faz presente tecendo histórias, armando o quebra-cabeça para deixar vislumbrar um pouco do mistério que está escondido dentro de cada ser humano.

Alguns recordam os testemunhos daqueles que o conheceram, daqueles que sonharam com ele um Reino de justiça social. Outros evocam algumas de suas palavras, carregadas de denúncia e de amor. E de repente, o tecido de sentimentos e lembranças começa a dar forma concreta àquele, cujo coração, profundamente atravessado pela Palavra, se tornou um grão de trigo.

Ela sai de seu egocentrismo e ouve as histórias. Atrás da janela, as montanhas de Rioja vão abrindo passagem no deserto. Deslumbrantes senhoras da paisagem, só as desafia o persistente vento zonda. A jovem pensa que talvez aquele mártir, que nesse dia os reúne numa peregrinação, fosse um pouco como o vento zonda. Como um vendaval, sacudiu as sementes da comunidade e, como o vento zonda, se transformou em parte da paisagem de La Rioja. O vendaval de suas palavras poderosas escorregou (e ainda faz) para as profundezas dessa terra sem tempo e de sua gente. Morreu como viveu, ou será que o seu modo de vida, manteve com insistência desconfortável uma verdade que, vivida como tal, só poderia decantar na morte.

Vida. Mensagem. Caminho. São desenhados e borrados permanentemente. E as lembranças daquele pastor e daqueles que sofreram o martírio ao seu lado, cristalizam-se nessa mistura de emoções. Adiante, o asfalto cruza essa planície árida. Adiante, o asfalto atravessa essa planície árida. Ao longe aparece uma construção simples. A peregrinação está chegando ao seu destino, naquela paragem de Punta de los Llanos. Ao se aproximarem, outros veículos se reúnem nesse lugar.

A Kombi para. Mariela sai e respira pela primeira vez esses ares riojanos. O chão estala sordidamente sob seus pés e a emoção a inunda das profundezas de sua existência. Nessa terra infértil, onde essas pessoas se reúnem em memória e oração, ali o pastor se tornou um grão de trigo e morrendo germinou para a vida.

Mariela submerge nesse pequeno santuário, onde o tempo parece não passar, onde as pessoas se encontram e compartilham de uma experiência comum que os irmana. Os testemunhos, os sentimentos e as orações enchem o lugar, inundam o espaço físico e, gradualmente, começam a esgueirar-se pelas fendas da intimidade da jovem.

Pode sentir como esse escudo de dor e impotência que leva dentro, começa a rachar. Através do entalhe de tanto desconforto começa a soprar, como um suspiro sutil, uma pequena brisa. Esse ventinho morno se mistura com o mais profundo do seu corpo. De repente, já não consegue saber se aquele sopro de vida entrou pelas brechas de sua couraça, agora rachada, ou se ele esteve sempre ali, em algum canto escondido, esperando ser despertado de um longo sono letárgico.

Esse sopro se torna cada vez mais intenso e enche Mariela de um calor vivo que a inflama das entranhas. O que começou perfurando a calosidade interior, torna-se corpo.

Naquele lugar esquecido de Punta de los Llanos, onde a vida do pastor Angelelli foi violentamente arrebatada, onde a impunidade era considerada rainha e senhora, ali mesmo, Mariela se inflama. Bem ali, Mariela aproveita a força do vento zonda e se transforma em um vendaval. Sente-se leve, etérea. Algo dela foi deixado para trás. Os fragmentos feitos cacos da desesperança não mais a aprisionam.

Mariela nunca mais será quem foi. Enquanto encara o retorno, medita o que viveu nessas horas. De sua cidade barulhenta, ela viajou para o deserto por um vasto caminho. Ali, na quietude dessa árida paragem riojana, cheia da memória alegre e dolorosa ao mesmo tempo, encheu-se de uma substância que oxigenou sua caminhada.

Ainda que a realidade na qual luta, ainda não tenha mudado, o vento que enreda seu corpo lhe promete que ela sempre poderá voltar, também a esse lugar quente para recuperar as forças.

* Vento quente e seco que sopra no noroeste da Argentina, especialmente na área da cordilheira e atinge intensidade particular na região de Cuyo. Há uma crença de que isso afeta negativamente o humor das pessoas.