Comunicação e democracia

Comunicação e democracia

Osvaldo LEÓN


Naquele tempo ninguém dizia nada. Era a era das comunicações. Evaristo Páramos Pérez1.

Tem sido um critério universalmente estabelecido que a vitalidade da democracia depende da participação cidadã. Deve-se acrescentar que, para que esta participação se dê efetivamente, é fundamental que os diversos setores cidadãos estejam devidamente informados e possam expressar seus particulares pontos de vista e inter-relacionar-se tanto interna quanto externamente, a fim de intervir no processo de decisões que configuram o mundo e o futuro.

Com o impressionante desenvolvimento de tecnologias e técnicas de comunicação que se têm produzido nos últimos tempos, foram estabelecidas possibilidades nunca vistas antes para que esta aspiração democrática se cumprisse in extenso; mas, paradoxalmente, ocorre o contrário, pelo caráter excludente que a globalização neoliberal imprime em nossas sociedades, onde as maiorias vêem sua palavra seqüestrada, sem poder se mover no que lhes concerne e interessa.

Com efeito, pelo mesmo fato de que as inovações registradas no campo da comunicação constituem um dos pilares das mudanças em curso, este se tem convertido em um setor de ponta e altamente rentável, gerando uma dinâmica que acentua a concentração monopólica em todas as suas esferas. E isto não somente se circunscreve ao cálculo dos benefícios econômicos, senão que, além disso, se expressa de maneira contundente nas orientações mesmas do curso, formas e usos do componente comunicativo.

Uma clara amostra destas reorganizações, por exemplo, é a importância que tem adquirido a chamada «opinião pública» no mundo da política. Não é que o poder político tenha deixado de ser poder, mas é que as regras do jogo para mover-se nele agora passam pelos espaços da opinião. Daí, que o uso dos códigos e técnicas de comunicação se tem tornado um pré-requisito para mover-se em tal campo, estabelecendo que o marketing, as pesquisas de opinião, o uso de imagens, etc., se tornem mais substantivos que as questões programáticas e ideológicas.

Neste contexto, os meios de comunicação têm forçado enormemente sua tradicional condição de fator de poder, até o ponto em que estabeleceram um «consenso midiático» virtual para poder atuar corporativamente com uma agenda política e econômica própria, que lhes serve de referência para estabelecer o que é pertinente ou não socialmente, sem passar por consensos pelos demais atores da sociedade. E é em virtude disso que passou a ter um protagonismo inédito na vida pública, particularmente em momentos determinantes (como, por exemplo, nos processos eleitorais); e em geral, um poder de decisão cada vez mais valorizado, sem que sobre ele seja exercido nenhum controle social, capaz de distorcer seriamente a convivência democrática, posto que, nos meios e sistemas de comunicação, constitui um fator decisivo na formação de sujeitos sociais e culturais.

Com a crise institucional que há tempos se instalou na região, afetando seriamente a credibilidade dos partidos políticos, cada vez mais se pode observar que as elites têm feito dos grandes meios de difusão o reduto para marcar posições, motivo pelo qual, diversos analistas coincidem em assinalar que estes desempenham, agora, o rol de novo e real partido articulador daqueles.

Neste sentido, fica muito claro o papel dos grandes meios, particularmente da TV, no golpe de estado contra o presidente venezuelano Hugo Chavez (11 de abril de 2002) e a conseqüente mobilização popular que lhe restituiu as rédeas do governo. Pois, tratou-se basicamente de um «golpe midiático», em razão do descalabro dos partidos de oposição, aqueles terminaram por ocupar o espaço «vazio» deixado por estes.

Mais ainda, durante aqueles acontecimentos, também foi notória a ressonância que os meios venezuelanos alcançaram em seus similares da região; isto é, todos em coro. Não é exagero assinalar, por isso mesmo, que agora é o «consenso midiático», mais que eventuais regulamentações estatais, a maior ameaça que se projeta contra o pluralismo e, portanto, contra a própria vida democrática.

Com efeito, recordemos que na tradição do pensamento liberal – que se mantém como paradigma –, a existência de uma imprensa independente tem sido considerada como o principal meio para garantir a expressão da diversidade de pontos de vista, a formação de uma opinião pública lúcida e a vigilância dos abusos do poder estatal. Daí, a imagem de «cão de guarda», contra-peso a «quarto poder», em consideração de que a ameaça provinha do Estado. Mas o capitalismo corporativo está se encarregando de estreitar distâncias, incorporando-o em seus domínios como um negócio lucrativo e, por certo, estratégico.

A partir da perspectiva estratégica, no plano internacional, os EUA é o país que conseguiu uma vantagem considerável. Uma vez que, com dinheiro do Estado, suas empresas construíram uma posição de competência jamais alcançada antes, estabeleceu que para os demais havia chegado a hora da desregulamentação e da abertura, canalizando estas políticas a seu favor. Como indicava Herbert Schiller, importante pesquisador norte-americano, para seu governo «o liberalismo é para os outros: embora exija para o resto do mundo um acesso sem limites para os produtos norte-americanos e a não intervenção do Estado, Washington não se priva, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, de intervir financeira, política e diplomaticamente nos setores considerados estratégicos para a continuidade da hegemonia norte-americana. A comunicação é um desses setores, e sem dúvida o mais decisivo, tanto desde o ponto de vista industrial quanto simbólico...»2

Para verificar como essa «continuidade da hegemonia norte-americana» se projeta, basta uma referência do meio mais influente, a televisão: as imagens de informação internacional que são difundidas na América Latina e no Caribe provêm de quatro agências vinculadas a monopólios fincados nos EUA: CNN (Time Warner) ABC (Disney/Cap Cities), NBC (General Eletric) e CBS (Westinghouse).

Por causa desses desenvolvimentos, dia-a-dia se somam vozes de preocupação pelo futuro da democracia. Com a sensibilização que o caracteriza, José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura de 1998, assinalava a respeito: «A experiência confirma que uma democracia política que não repousa sobre uma democracia econômica e cultural não serve de grande coisa... O sistema chamado democrático se parece cada vez mais a um governo de ricos e cada vez menos a um governo do povo. Impossível negar a evidência: a massa de pobres chamada a votar nunca é convocada a governar».3

Nesta encruzilhada, adquire singular importância a demanda em favor do Direito à Comunicação, enquanto condição indispensável para o exercício dos demais direitos humanos e um elemento fundamental para a vigência democrática e para o desenvolvimento das pessoas. Trata-se de um desafio muito complexo, pois não se circunscreve a quem está vinculado a este campo, senão que interpela o conjunto da sociedade. Com esta perspectiva está caminhando a «Campanha Continental pelo Direito à Comunicação» (movimientos.org/derechos-comunicacion), que, em primeiro lugar, busca articular as diversas expressões empenhadas na democratização da comunicação.

Com efeito, em síntese, existem grupos que buscam garantir o acesso universal e a apropriação efetiva das novas tecnologias de informação e comunicação; redes de intercâmbio para desenvolver o software livre; espaços de disputas para influenciar (advocacy) em instâncias de decisão na defesa dos direitos à informação e à comunicação; organismos empenhados em monitorar e implementar ações críticas frente aos conteúdos sexistas, racistas, excludentes, etc., veiculados pelos meios; programas de educação para desenvolver uma postura crítica diante dos meios (media literacy); associações de usuários para mover-se na programação dos meios; meios independentes, comunitários, alternativos, etc., comprometidos em democratizar a comunicação; redes cidadãs e de intercâmbio informativo articuladas por meio da Internet; pesquisadores que contribuem para flexibilizar as chaves do sistema imperante e apontar possíveis saídas; organizações sociais que entram em disputa na batalha da comunicação; associações de jornalistas que levantam a bandeira da ética e da independência; grupos de mulheres que articulam redes para que avance a perspectiva de gênero na comunicação; movimentos culturais que se negam a deixar-se sepultar no esquecimento; redes de educação popular; observatórios em favor da liberdade de informação; associações para opor-se aos monopólios; movimentos em defesa dos meios de caráter público; e um longo etc...

Em suma, trata-se de embriões de uma resistência cidadã na trincheira onde, na atualidade, joga-se o futuro mesmo da democracia. Mas também existem responsabilidades mínimas que compete a cada um, como por exemplo, a assinatura de meios impressos independentes e alternativos.

Notas:

1 Por los hijos lo que sea, Txalaparta, Nafarroa, 4ª edición, 2002, p. 93.

2 La Communication, une affaire d’Etat pour Washington, Révolution das la Comunication, Manière de voir, nº 46, Paris, Le Monde Diplomatique, julho de 1999, pp. 10-11 (tradução livre).

3 Al margen del poder econômico: ¿Qué queda de la democracia? , Le Monde Diplomatique, agosto 2004.

 

Osvaldo LEÓN

ALAI, Quito, Equador