Comunicação e manipulação da informação

Comunicação e manipulação da informação

Ináciko RAMONET


Os meios de comunicação hoje, em algumas circunstâncias, não só deixaram de defender os cidadãos mas com freqüência agem contra o povo no seu conjunto, como estamos vendo no enfrentamento que acontece atualmente na Venezuela.

Na Venezuela, onde a oposição política foi varrida em 1998 em eleições livres e democráticas, onde a oposição política foi democraticamente derrotada, os grupos de imprensa dos meios de comunicação, rádio e televisão, mais importantes do país, se lançaram em uma “guerra suja da mídia” contra a legitimidade democrática que representa o governo de Hugo Chaves.

Pode-se pensar o que quiser dele e do seu governo, mas é preciso constatar que contra eles, os meios de informação estando nas mãos de alguns privilegiados (entre eles o grupo Cisneros -véase la nota aqui em baixo-) utilizaram toda a artilharia das manipulações, das mentiras, das falsidades, para tentar intoxicar as mentes dos cidadãos, em uma guerra ideológica aberta para defender os seus privilégios e se opor a toda reforma social e a toda participação eqüitativa da riqueza. Até fomentar um golpe de Estado em 11 de abril de 2002, que provocou o afastamento, durante 36 horas, do presidente Chaves e a sua substituição pelo presidente da patronal venezuelana, Pedro Carmona...

O caso da Venezuela é um exemplo da nova situação internacional em que alguns grupos da mídia, enfurecidos, assumem abertamente a sua nova função de cães de guarda da ordem econômica estabelecida, e o seu novo estatuto de poder anti-popular e anti-cidadão. Estes grupos não se apresentam só como poder na mídia, mas – sobretudo – como poder ideológico. Um poder ideológico que procura conter as reivindicações populares e que ambiciona apoderar-se do poder político (como o fez, democraticamente, na Itália, Silvio Berlusconi).

O caso exemplar da Venezuela, esta “guerra suicida da mídia” contra o presidente Chavez, várias vezes eleito democraticamente, que o impediu muitas vezes de realizar as reformas sociais votadas pela maioria dos cidadãos, é um modo de se opor e de sabotar o resultado de uma eleição totalmente democrática, é o que nos anos 1970 fez o diário El Mercúrio no Chile contra o governo democrático de Salvador Allende, ou o que fez nos anos 1980 o diário La Prensa na Nicarágua contra os sandinistas, ou a mesma campanha que os grandes meios levaram a cabo no Brasil, na Argentina ou no Uruguai contra toda reforma democrática que modifique a hierarquia do poder e da riqueza.

A informação, durante muito tempo, em nome da democracia, foi um recurso dos cidadãos frente aos abusos do poder. Durante muito tempo, nos países democráticos, julgava-se que os poderes tradicionais – legislativo, executivo e judicial -, podiam se enganar e cometer atropelos contra os cidadãos. Não me refiro aos países autoritários e ditatoriais, onde e óbvio que o poder político é o principal responsável por todos os abusos contra as liberdades. Não. Estou me referindo aos países democráticos nos quais as leis (votadas democraticamente), o governo (eleito democraticamen-te) e a justiça (independente do poder político) podem cometer graves abusos, cada um a seu modo: por exemplo, condenar um inocente – lembremo-nos do caso Dreyfus na França -, votar leis discriminatórias referentes a alguma minoria – como nos USA durante decênios contra os afro-americanos -, ou tomar decisões de ordem social, por parte do executivo, que também podem afetar negativamente um setor da sociedade, como estamos vendo em muitos países europeus a respeito dos emigrantes.

Os meios de comunicação e os jornais, neste contexto, sempre consideraram como um dever denunciar estes atropelos, discriminações e abusos. Por isto, durante muito tempo, se falou de “quarto poder”, e se considerava que a imprensa e os jornais, enquanto “quarto poder”, constituíam, na realidade, um contra-poder.

O “quarto poder” era, em definitivo, graças aos meios de informação, o poder de que dispunham os cidadãos para criticar, rebater, opor-se, de um modo democrático, a decisões legais que podiam ser iníquas, injustas, e até criminosas contra alguns cidadãos inocentes.

Penso que, há uns 15 anos, à medida que se acelerava a globalização liberal, este “quarto poder” ia perdendo a sua função de contra-poder. O que descobrimos, ao analisar a globalização, ao estudar de que maneira hoje se estabelece um capitalismo de novo estilo, um capitalismo que já não é meramente industrial, mas financeiro, um capitalismo da especulação, na fase atual da globalização na qual o poder é possuído essencialmente por alguns grupos econômicos planetários. Nesta fase em que, em definitivo, o debate principal está em enfrentamentos frontais entre o mercado e a sociedade, entre o privado e o público, entre o individual e o coletivo, entre o egoísmo e a solidariedade, observamos que os meios de informação deixaram de constituir um contra-poder.

Diante desta filosofia da globalização econômica, as empresas globais têm muitas vezes um papel mais importante que muitos governos ou muitos Estados. Estas empresas e os empresários que as dirigem são aqueles que cada ano se reúnem em Davos, no Foro Econômico Mundial, precisamente onde se encontram os novos donos do mundo. Neste contexto geoeconômico e geopolítico do que significa hoje a globalização, se produz uma importante transformação dos meios de comunicação de massa. No coração mesmo da estrutura industrial e da propriedade econômica dos meios.

Globalmente, hoje em dia, os meios de comunicação (emissoras de rádio, imprensa escrita, canais de televisão, internet) pertencem, cada vez mais, a grandes grupos que têm também uma vocação global, uma vocação mundial. Como o grupo News Corp do Sr, Rupert Murdoch, ou América Online, ou Viacom, ou Microsoft. Grupos que têm novas possibilidades de expansão, graças à transformação da técnica, na medida em que a “revolução digital” rompeu as fronteiras que antes separavam escritura, sons e imagens. Esta revolução permitiu o surgimento da internet que aparece como um quarto meio, uma quarta maneira de se exprimir

Com esta “revolução digital” as empresas de comunicação reúnem agora não só os meios de comunicação tradicionais, “imprensa, rádio e televisão), mas também tudo o que poderíamos chamar de setor da cultura de massas, da comunicação e da informação. Estas três esferas estavam antes isoladas: de um lado a cultura de massas, com a sua lógica comercial, suas criações populares, seus objetivos de mercado planetário; de outro lado, a comunicação, no sentido tradicional, ou seja a publicidade, o negócio, a propaganda; e, enfim, a informação, com as agências de imprensa, os noticiários, os diários, os canais de informação contínua, os jornais de todo tipo.

Estas três áreas – cultura de massa, comunicação e informação - antes bastante separadas, constituem hoje uma só e única área, na qual cada vez mais há menos diferenças entre a atividade que se faz o ponto de informação e a atividade que pode se tornar publicidade ou cultura de massa.

Mas, alem destas empresas gigantescas de comunicação, estes produtores de símbolos trazem também para as suas atividades mensagens de outro tipo, como vídeo-jogos, os DVD, os CDs musicais, a música popular, as distrações, as cidades de ócio tipo Disneyland por exemplo, e também podem anexar o cine de diversão, a televisão, os desenhos animados, as fitas cômicas, o desporte-espetáculo, a publicação de livros, etc.

Quer dizer que temos agora alguns grupos de comunicação que possuem duas características novas. Primeira característica: ocupam-se de tudo que pode ser escrito, tudo que pode ser filmado e tudo que pode ser difundido mediante o som e, alem do mais, o difundem por todo tipo de canais, contanto que seja através da imprensa tradicional pelo papel, pelas rádios, pelas televisões artesianas ou pelos satélites, na técnica digital. Segunda característica: são grupos mundiais, planetários, e não apenas nacionais ou locais. Por exemplo: Orson Welles criticava o “super poder” de “Citizen Kane” nos anos 1940. Mas hoje nos damos conta de que em definitivo o Sr. Kane não era mais do que o proprietário de alguns jornais da imprensa escrita em um único país. Quer dizer que dispunha de um poder anão (ainda que não por isto deixasse de ser eficaz em escala local ou provincial) frente aos arquipoderes de mega-grupos de informação do nosso tempo.

Hoje estas hiper-empresas possuem todos os setores da comunicação em muitos países, em quase todos os continentes e, por conseguinte, os mega-grupos de comunicação, como a News Corp Viacom, NBC, AOL-Time-Warner, são atualmente atores centrais da globalização econômica. E a sua capacidade de adquirir ainda mais poder, mediante uma maior concentração, continua aumentando.

A globalização é também a globalização dos meios de comunicação e informação, e estes mega-grupos já não se apresentam como objetivo cívico de ser um “quarto poder” para corrigir os desfuncionamentos da democracia e aperfeiçoar assim este sistema político. Nem querem ser um “quarto poder”, nem tão pouco se propõem agir como um contra-poder.

Poderíamos dizer que estes grupos constituem um eventual “quarto poder”, no sentido que este quarto poder se une, se ajunta, se soma aos outros poderes existentes – legislativo, executivo, judicial – ao poder político e ao poder econômico, para por sua vez pressionar o cidadão, como poder suplementar.

Por conseguinte a questão cívica que se apresenta é: como resistir, reagir, como se opor, diante do que foi, durante muito tempo, o único poder dos cidadãos na oposição aos poderes dominantes? Como resistir face à ofensiva deste novo poder, que de certa forma traiu o cidadão, tornando-se adversário?

Penso que o que se deveria fazer seria criar simplesmente um “quinto poder”. O quinto poder que nos permita opor uma força cívica cidadã a esta nova soma, a esta nova aliança de poderes. Um “quinto poder”, cuja função seria a denúncia do novo super-poder da comunicação, das grandes indústrias da mídia, promotores e cúmplices da globalização.

Já não apenas os poderes da oligarquia tradicional, já não apenas os poderes da reação tradicional, agora os poderes da mídia são os que passam a travar batalha política – em nome da liberdade de expressão – contra os programas que definem os interesses do conjunto dos cidadãos. Esta é a fachada da mídia da globalização. E esta é fachada que a revela de modo mais claro, mais evidente, mais caricaturizado, a ideologia da globalização liberal. Daqui os meios de comunicação e globalização serem dois conceitos intimamente ligados, e que seria necessário desenvolver uma reflexão sobre como nós, cidadãos, podemos exigir dos meios mais ética, como podemos exigir que digam simplesmente a verdade, exigir o respeito de uma deontologia que obrigue os jornais – a maioria deles sérios e honestos – a agir em função da sua consciência e não agir em função dos interesses dos grupos, das empresas e dos donos das empresas.

Temos constatado que, de um lado, os meios são utilizados hoje como uma arma de luta na nova guerra ideológica. Mas também que a informação, pela sua explosão, pela sua multiplicação, pela sua sobre-abundância,encontra-se hoje literalmente contaminada, envenenada por todo tipo de mentiras, contaminada pelos rumores, pelas distorções, e pelas manipulações. Daí terem os cidadãos necessidade urgente de recorrer a uma referência que lhes garanta ou que lhes assegure que a informação que o cidadão vai consumir é uma informação válida, séria, segura, verídica, verdadeira.

Está acontecendo com a informação o que se passou com a alimentação. Durante muito tempo a alimentação foi muito escassa e em muitos luares do mundo, nos países pobres do sul, por exemplo, continua sendo escassa. Em muitos países a alimentação continua se caracterizando por penúria, e nos países hoje desenvolvidos também se caracterizou pela penúria durante muito tempo. Mas quando, graças à revolução agrícola, a superprodução permitiu, como nos países europeus, produzir abundância de alimentação e nos demos conta de que muitos dos alimentos que consumimos estão contaminados, envenenados por pesticidas, mal confeccionados, e causam doenças, produzem câncer, causam todo tipo de problemas de saúde e podem até causar a morte, como a peste das vacas loucas. Antes podíamos morrer de fome, mas hoje podemos morrer por comer alimentos contaminados...

Com a informação acontece a mesma coisa. Historicamente a informação foi muito escassa, freqüentemente não existia. Nas ditaduras de hoje não ha uma informação confiável, de qualidade, mas hoje, em países democráticos, a informação se multiplicou, se instalou, transborda por todas as partes. Empédocles dizia que o mundo era feito pela combinação de quatro elementos: ar, água, terra e fogo. Pois hoje podemos dizer que a informação é tão abundante que se constitui em quinto elemento.

Às vezes constatamos que a informação está, como os alimentos, contaminada. Hoje a informação que consumimos, muitas vezes, está nos envenenando o espírito, pressionando o cérebro, tentando nos manipular, entoxicar-nos, está tentando colocar em nossa mente idéias alheias às nossas. Por conseguinte é necessário elaborar o que eu chamo de “ecologia da informação”. É preciso limpar esta informação da “maré negra” de mentiras, descontaminá-la. Os cidadãos devem hoje se mobilizar para exigir que os meios pertencentes a estes grandes grupos na América Latina, como no resto do mundo, tenham um respeito elementar pela verdade, porque a verdade constitui em definitivo a legitimidade da informação.

Já faz tempo que muitos meios de comunicação privilegiam os seus interesses particulares em detrimento do interesse geral da sociedade e confundem a sua própria liberdade com a liberdade da empresa, considerada nestes tempos de globalização como a primeira das liberdades. Mas a liberdade da empresa não pode ser o pretexto para difundir falsas notícias, supostas verdades ou difamações.

A liberdade dos meios de comunicação não é mais do que uma extensão da liberdade coletiva de expressão, fundamento da democracia. Como tal,implica uma “responsabilidade social” e o seu exercício está portanto sujeito, em última instância, ao controle responsável da sociedade.

Posto que a informação é um bem comum, a sua qualidade não pode ser garantida por organizações compostas só por jornalistas freqüentemente apegados aos seus interesses corporativos. Os sistemas atuais de regulamentação dos meios são insatisfatórios. Os códigos deontológicos de cada empresa de comunicação (quando existem) revelam-se pouco aptos para sancionar e corrigir os desvios, os subterfúgios e as censuras. É indispensável que a deontologia e a ética da informação sejam definidas e defendidas por uma instância imparcial, independente e objetiva.

A função dos “ombudsmen” , mediadores e defensores do leitor, que resultou útil nos anos 1980 e 1990, está hoje mercantilizada, desvalorizada e degradada. Com freqüência é instrumentalizada por empresas, responde exclusivamente a imperativos de imagem ou se reduz a um posto de baixo custo, destinado a reforçar artificialmente a credibilidade do órgão.

Um dos direitos mais apreciados do ser humano é o de comunicar livremente o seu pensamento e as suas opiniões. Nenhuma lei deve restringir arbitrariamente a liberdade de palavra ou de imprensa.

Mas esta liberdade não pode ser exercida a não ser com a condição de não infringir os direitos nem as leis que protegem a sociedade contra a difusão de falsas notícias e contra o perigo das manipulações dos meios de comunicação.

* Com 4,6 bilhões de Dólares anuais de entrada, Gustavo Cisneros Rendiles se converteu no terceiro magnata em importância do continente americano. Assim o avalia a revista Forbes, na sua lista anual das maiores fortunas do planeta, acrescentando que o «grupo Cisneros» no posto de 38% das corporações mais importantes do planeta.

Com mais de setenta empresas em todo o mundo, o grupo Cisneros, nascido na Venezuela, enfrenta atualmente as posições do presidente Ugo Chaves. Colocando o enfoque da maioria dos seus negócios no entretenimento da família média latino-americana, desde as empresas de telecomunicações até a principal cervejaria do Caribe, das cadeias de alimentação às financeiras, a trama cobre praticamente toda a América Latina.

Companhias como Venevision, a principal televisão venezuelana, com ramificações em todo o norte da América Latina, alcançaram êxito completo em matéria de rating, que significa faturamentos astronômicos, o que representa 75% das pessoas que usam internet na região. A companhia mantém convênios publicitários com empresas como Sony, Volkswagen, Gillete, Ford, Peugeot e Siemens,

Direc TV Latino-americana e está competindo pelo ponto mais alto da televisão satélite do continente, com o objetivo de alcançar 100 milhões de pontos.

Em terceiro lugar do esquema da mídia, o grupo conta com o maior pacote acionista (19%) da Univision, a cadeia de televisão espanhola, líder e com maior projeção expansiva nos USA. As suas perspectivas levaram a revista Fortune a colocar a Univision na sua «carteira estrela», para a presente década.

Quanto à empresa primígena, alem da sua liderança na televisão venezuelana, agora, graças aos seus mega-distribuidores internacionais (Venezuela Internacional e Venevision Continental) alcança já uma audiência de centenas de milhões de pessoas em 62 países.

 

Ináciko RAMONET

Le Monde Diplomatique, Paris