Comunicar-nos com a Naturaza

Comunicar-nos com a Natureza
Com compreensão, compaixão e amor
 

Leonardo BOFF


Há milhares de anos, o ser humano está explorando os recursos da natureza, sem se preocupar por usá-los de modo que pudessem se renovar. Hoje ele despertou: ou cuida da Terra, de sua biodiversidade, dos ares, dos solos e das águas ou ele pode ir ao encontro do pior.

A ecologia é expressão desta nova consciência. Ela é mais que o gerenciamento de recursos naturais escassos. É uma nova relação com a natureza, com mais benevo-lência e respeito aos ritmos naturais, é um novo modo de consumir, com moderação e responsabilidade, é um sentido de responsabilidade para com as gerações que vêm depois de nós e com o futuro comum da Humanida-de e da Terra.

a) Cuidar a comunidade de vida com compreensão

Cuidar é envolver-se com o outro ou com a comunidade de vida, mostrando zelo e até precupação. Mas é sempre uma atitude de benevolência que quer estar junto, acompanhar e proteger. A compreensão quer conhecer afetivamente a comunidade de vida. Quer conhecer com o coração e não apenas com a cabeça. Portanto, nada de conhecer para dominar («saber é poder», dos modernos como Francis Bacon) mas conhecer para entrar em comunhão com a realidade. Com razão dizia Santo Agostinho, na esteira de Platão, que «nós conhecemos na medida em que amamos».

Cuidar com compreensão a comunidade de vida significa então utilizar a ciência e a técnica sempre em consonãncia e com essa comunidade e nunca contra ela ou sacrificando sua integridade e beleza. Cuidar aqui convida a rejeitar ações prejudiciais aos ecosistemas ou que causam sofrimentos aos representantes da comuni-dade de vida, implica manter a consorciação dos seres, evitar as monoculturas como a da soja, a do eucalipto e outros pois prejudicam a biodiversidade da natureza.

b) Cuidar da comunidade de vida com compaixão

Para entendermos corretamente a com-paixão precisamos antes, fazer uma terapia da linguagem. Consoante a compreensão comum, ter compaixão significa «ter pena» do outro, sentimento que o rebaixa à condição de desamparado sem potencialidades próprias e energia interior para se erguer. Então nos com-padecemos dele e nos con-doemos de sua situação.

Poderíamos também entender a com-paixão no sentido do cristianismo originário como sinônimo de misericórdia, sentido altamente positivo. Ter miseri-cór-dia equivale a ter um coração (cor) capaz de sentir os míseros e sair de si para socorrê-los. Atitude que a própria filologia da palavra com-paixão sugere: compar-tir a paixão do outro e com o outro, sofrer com ele, alegrar-se com ele, andar o caminho com ele. Mas essa acepção historicamente não conseguiu se impôr. Predominou aquela moralista e menor de quem olha de cima para baixo e descarrega uma esmola na mão do sofredor.

Diferente, entretanto, é a concepção budista de com-paixão. Compaixão tem a ver com questão básica que deu origem ao budismo como caminho ético e espiritual. A questão é: qual é o melhor meio para libertar-nos do sofrimento? A resposta de Buda é: «pela com-paixão, pela infinita com-paixão».

Dalai Lama atualiza essa ancestral resposta assim: «ajude os outros sempre que puder e se não puder, jamais os prejudique». Esta compreensão coincide com o amor e o perdão incondicionais propostos por Jesus.

A «grande com-paixão» (karuna em sânscrito) implica duas atitudes: desapego de todos os seres da comunidade de vida e cuidado para com todos eles. Pelo desapego nos distanciamos deles, renunciando à sua posse e aprendendo a respeitá-los em sua alteridade e diferença. Pelo cuidado nos aproximamos dos seres para entrar em comunhão com eles, responsabilizar-nos pelo bem estar deles e socorrê-los no sofrimento.

Eis um comportamento solidário que nada tem a ver com a pena e a mera “caridade” assistencialista. Para o budista o nivel de desapego revela o grau de liberdade e maturidade que a pessoa alcançou. E o nivel de cuidado, mostra o quanto de benevolência e responsabilidade a pessoa desenvolveu para com toda a comunidade de vida e para com todas as coisas do universo.

O ethos que se compadece nos ensina como deve ser nossa relação para com a comunidade de vida: respeitá-la em sua alteridade, conviver com ela como membro e cuidar dela e especialmente regenerar aqueles seres que sofrem ou estão sob ameaça de extinção. Só então nos beneficiar com seus dons, na justa medida, em função daquilo que precisamos para viver com decência.

d)Cuidar da comunidade de vida com amor

O amor é a força maior existente no universo, nos seres vivos e nos humanos. Porque o amor é uma força de atração, de união e de transfiguração. O amor é a expressão mais alta do cuidado, porque tudo o que amamos também cuidamos. E tudo o que cuidamos é um sinal que também amamos.

Humberto Maturana, chileno, um dos expoentes maiores da biologia contemporânea, mostrou em seus estudos sobre a autopoiesis, vale dizer, sobre a auto-orgnização da matéria da qual resulta a vida, como o amor surge de dentro do processo cósmico.

Na natureza, afirma Maturana, se verificam dois tipos de acoplamentos dos seres com o meio e entre si, um necessário, ligado à própria subsistência dos seres e outro espontâneo, vinculado a relações gratuitas, por puro prazer, no fluir do próprio viver. Quando este ocorre, mesmo em estágios primitivos da evolução há bilhões de anos, ai surge o amor como fenômeno cósmico e biológico. Na medida em que o universo se expande e se complexifica, esse acoplamento espontâneo e amoroso tende a incrementar-se.

Ao nivel humano, ganha força e se torna o movel principal das ações humanas. Foi essa relação de amorização e de cuidado que permitiu nossos ancestrais hominidas e antropóides darem o salto rumo à humanidade. Ao sairem para recoletar alimentos e para caçar, não consumiam o resultado individualmente. Traziam-no ao grupo e ai compartilhavam fraternalmente entre todos junto com seus afetos. A própria linguagem, característica do ser humano, surgiu no interior deste dinamismo de amor e de cuidado recíproco.

O amor se orienta sempre pelo outro. Significa sempre uma aventura abraâmica, a de deixar a sua própria realidade e ir ao encontro do diferente e estabelecer uma relação de aliança, de amizade e de amor com ele. Este é o lugar do nascimento da ética.

Quando o outro irrompe à minha frente, nasce a ética. Porque o outro me obriga a tomar uma atitude prática, de acolhida, de indiferença, de rechaço, de destruição. O outro significa uma pro-posta que pede uma res-posta com res-ponsa-bilidade.

O outro faz surgir o ethos que ama. Paradigma deste ethos é o cristianismo das origens, ligado diretamente à mensagem e à prática de Jesus. Este cristianismo dá absoluta centralidade ao amor ao outro, para Jesus, idêntico ao amor a Deus. O amor é tão central que quem tem o amor tem tudo.

O amor é assim central porque sem amor ao faminto, ao pobre, ao peregrino e ao nu, não se pode encontrar Deus nem alcançar a plenitude da vida. Esse amor é um movimento só, vai ao outro, à comunidade de vida e a Deus.

Ninguém no Ocidente melhor do que São Francisco de Assis se transformou num árquétipo dessa ética amorosa e cordial. Ele unia as duas ecologias, a interior, integrando suas emoções e desejos, e a exterior, se irmanando com todos os seres. Confraternizou-se com a própria Terra, como seu húmus original, com suas raízes obscuras. E eis que abriu um caminho de fraternidade que abrangia toda a criação, o sol, o vento, o fogo, a água e até a irmã morte.

O ethos que ama funda um novo sentido de viver. Amar o outro, seja o ser humano, seja cada representante da comunidade de vida, é dar-lhe razão de existir. Não há razão para existir. O existir é pura gratuidade. Amar o outro é querer que ele exista porque o amor faz o outro importante. «Amar uma pessoa é dizer-lhe: tu não morrerás jamais» (Gabriel Marcel).

Somente esse ethos que ama está à altura dos desafios que nos vêm da comunidade de vida, devastada e ameaçada em seu futuro. Esse amor respeita alteridade, se abre a ela, e busca uma comunhão que enriquece a todos. Faz dos distantes, próximos e dos próximos, irmãos e irmãs.

Conclusão: Terra e Humanidade somos uma coisa só

O poeta e cantor negro brasileiro Milton Nascimento cantava numa de suas canções: «há que se cuidar do broto para que a vida nos dê flor e fruto». Isso se aplica à Terra e a todos os ecosistemas: há que se «cuidar com compreensão, compaixão e amor» a Terra, entendida como Gaia, Magna Mater e a Pacha Mama de nossos indígenas, para que ela possa assegurar sua vitalidade, integridade e beleza.

Terra e Humanidade formamos uma única entidade, como o viram e extremeceram de emoção os astronautas, a partir de suas naves espaciais, lá fora no espaço exterior. De lá não há diferença entre Terra e Humanidade. Ambos formam uma única entidade, com uma mesma origem e um mesmo destino. Só o cuidado garantirá a sustentabilidade do sistema-Terra com todos os seres da comunidade de vida entre os quais se encontra o ser humano. Sua função é a do jardineiro, como se relata no segundo capítulo do Gênesis. Trabalho do jardineiro é cuidar do jardim do Eden, fazê-lo fecundo e belo. A Carta da Terra nos despertou, oportunamente, para essa nossa missão, essencial e urgente. Precisamos vivê-la para que tenhamos futuro e possamos co-evoluir como temos evoluido já há 4,5 bilhões de anos, pois esta é a idade de nossa Terra.

 

Leonardo BOFF

Rio de Janeiro, Brasil