Contra a pós-verdade

 

Salvador Martí i Puig

«No mundo de hoje, dominado pela revolução 4.0, um mal uso das novas tecnologias de informação e comunicação fazem a verdade se tornar a primeira vítima»

 Se se parte da concepção de que a política é uma atividade coletiva que os membros de uma comunidade desenvolvem a fim de regular os conflitos que aparecem, sendo seu resultado a adoção de decisões que devem ser cumpridas por todos aqueles membros, então se dá por suposto que a política é fruto da existência inevitável e inerente de conflitos sociais e das tentativas de lhes sufocar ou regular (Vallès, 2015).

Seria ótimo que na sociedade reinasse a concordância e a harmonia. Mas, a sociedade é o mundo da diferença, em todos – ou quase todos – os aspectos da vida – talvez, só a morte nos iguale. Há desigualdade (e diversidade) a respeito de crenças, valores, aptidões, habilidades, desejos, posses e oportunidades. Nem todos os membros da sociedade tem igual acesso à riqueza material, educação e oportunidade de difusão de suas ideias, nem tampouco compartilham os mesmos encargos e obrigações.

Este desequilíbrio gera tensões que podem, por sua vez, gerar conflitos. É neste marco de incertezas que a política aparece como uma resposta coletiva ao desacordo. Se deposita na política a expectativa de regulação – e não de solução – das tensões sociais.

É preciso partir desta concepção de política para perguntar-se sobre o tema da pós-verdade. Neste sentido, as perguntas que temos que fazer devem ser: existe a verdade quando se tratam de conflitos sociais em que as posições enfrentadas lutam por interesses que cada uma das partes percebe como legítimos? Quem tem a verdade quando há uma disputa? Se diz a verdade na política?

Não é simples responder a estas perguntas formuladas, embora sempre queiramos como resposta um sim ou um não. A verdade é que, salvo poucas exceções, os discursos políticos não tem como objetivo nem um nem outro. Os discursos políticos não se constituem a partir da busca pela verdade ou pela mentira. Os objetivos geralmente são outros: fidelizar, motivar e mobilizar.

O discurso político pretende ser uma ferramenta para dar coerência, consistência e credibilidade a relatos que tem como objetivo defender interesses e causas próprias, vencendo assim o adversário. O que fazem os construtores de discurso político é criarem “cosmovisões compartilhadas”, para darem sentido às suas reivindicações, expectativas e lutas. Isso é o que os acadêmicos chamam de criação de “marcos cognitivos”.

Nesta direção, o discurso político quer canalizar o descontentamento, identificar um alvo para onde podem se dirigir as queixas, reforçar as reivindicações e encontrar símbolos capazes de mobilizar as pessoas. Nas palavras de Snow e Benford (1998), as funções dos “marcos cognitivos” são três. Em primeiro lugar, explicar a realidade através de determinados valores; em segundo, elaborar diagnósticos que impliquem na identificação de um problema e na atribuição de culpabilidade ou causalidade; em terceiro e último lugar, mobilizar simpatizantes e convencidos. A tarefa fundamental do discurso político é convencer que as indignidades (ou os privilégios, dependendo do que se trate) da vida cotidiana não estão escritas nas estrelas, mas que podem ser atribuídas a algum agente e a alguma determinada correlação de forças, podendo mudar (ou manter-se) através da coordenação de esforços coletivos.

Assim, o discurso político deve incidir sobre três aspectos que são essenciais para a ação coletiva: a injustiça, a identidade e a efetividade (Gamson e Meyer, 1992). Neste ponto, cabe perguntar: É possível falar de verdade no discurso político?

Como foi sublinhado, a “verdade dos fatos” é só uma parte dos ingredientes deste tipo de discurso. No discurso político, tão importante quanto os fatos é a forma de interpretá-los e, sobretudo, a intencionalidade e os valores que lhes são atribuídos. É por isso que falar de verdade, em política, é um tema empolgante. Porque, as vezes, uma coisa é o que aconteceu no passado, outra é o que se conta e outra ainda é o que a maioria das pessoas acredita. Esta última, que pode não ter nada a ver com a primeira, os historiadores chamam de “a verdade social”, sendo frequentemente um relato construído a partir de equívocos interessados, deturpações e lugares comuns, que permanecem no imaginário das sociedades ao longo de gerações. Ainda que também possa mudar a partir de algum acontecimento.

Como, por exemplo, o escândalo que foi em 1995 na Argentina quando o capitão das Forças Armadas Adolfo Scilingo confessou, em um momento de desespero, que durante a ditadura que governou o país de 1976 a 1981 os militares drogavam as pessoas que haviam prendido ilegalmente (os desaparecidos), embarcavam em um avião de madrugada e as jogavam no Mar del Plata com blocos de cimento presos aos pés. Frente a estas declarações dadas aos meios de comunicação, um amplo setor da sociedade argentina se escandalizou. Mas, tudo o que Scilingo dizia já havia sido denunciado antes centenas de vezes.

Como foi exposto no início do texto, frequentemente cada um interpreta – em função de seus interesses – a realidade e acredita em “sua verdade”. O importante, neste caso, é poder distinguir entre a interpretação e os fatos, constatando que aquela também é real. De todo modo, se a política se baseia em interesses e nos conflitos que são derivados deles, não podemos aspirar a discursos neutros e nem assépticos, embora devamos reivindicar a presença de fatos contrastantes e realidades confiáveis. Isso é tudo, o que não é pouco. Sobretudo no mundo de hoje, onde o formato no qual se distribui a informação dá uma imagem de credibilidade a qualquer notícia. E é aqui que temos que debater sobre o conceito de pós-verdade.

A pergunta é se a pós-verdade é uma mentira clássica ou se é outro tipo de mentira mais elaborada, ampliada e com capacidade de chegar a muita gente. Minha posição é esta última. A pós verdade significa a criação de discursos e sentidos para manipular as sociedades, torná-las mais dóceis, mais confusas e menos críticas. É nesta direção que temos que pensar sobre as mudanças sociais, seus desafios e a necessidade de criar relatos críticos fundamentados em fatos e valores. Valores baseados em conceitos como justiça, igualdade, respeito às identidades, convivência e dignidade de todas as pessoas.