Contribuição da cultura andina da água à nova consciência ecológica

Contribuião da cultura andina da água à nova consciência ecológica

Marco Antonio Arana Zegarra


Na cultura andina, a água, Yacumama (Mãe Água), e a terra, Pachamama (Mãe Terra), constituem uma realidade que contém toda a vida; portanto, têm um significado social, ético e cultural-espiritual de caráter incomensurável, irredutível a seu valor de mercado. Na cultura andina, a água não pode ser objeto de comercialização.

Na cosmovisão andina, as origens da história do povo inca remetem à água. Os fundadores do Império Inca (Manco Cápac e Mama Occllo) surgem das profundidades do Lago Titicaca (Mama Cocha) e vão em busca de terras férteis, que darão origem à civilização do mundo andino. O Wiracocha, criador de tudo o que existe, vem do mar, da grande Lagoa Mãe (Mama Cocha).

Embora se tenham passado mais de 500 anos de procedimentos de sincretismo religioso e aculturação, para muitos habitantes dos Andes a água ainda continua sendo a fonte de toda a vida. A cultura andina é uma cultura da água e da terra. Por isso, os anciãos quechuas de Porcón, em Cajamarca, percebem a destruição da água pelas atividades mineiras como um acontecimento catastrófico: todos os humanos, as plantas, os animais e a própria terra morrerão, se as águas continuarem sendo destruídas e contaminadas. O que acontecer com a água sucederá aos filhos da terra e a todo ser vivo.

Em um sentido simbólico, e também político, as lutas pela água das comunidades andinas podem significar uma contribuição para o mundo, se contribuí-rem para o cuidado e a salvação da água e da terra. Na cultura andina, o destino da água é o destino de toda a forma de vida; por isso, todos temos de aprender a viver em harmonia, fraternidade e agradecimento com Pachamama e Yacumama.

Essa sabedoria permaneceu no tempo. Há mais de 500 anos em Cajamarca, nos Andes do norte do Peru, o inca Atahualpa pagou oito toneladas de ouro para ser libertado da mão de seus captores.

O tributo não lhe serviu senão para que a morte na fogueira lhe fosse comutada pela do garrote, com o qual, ao não ser incinerado seu corpo, um dia reviveria. Seus súditos poderiam enterrar seu corpo vestido com suas roupas mais suntuosas, provisionando-o com abundância de bebidas e alimentos. Por séculos, sobre cada tumba andina, se continua derramando água para aliviar a sede ao longo do caminho. Na cosmovisão andina, a água é fundamental para todo o ciclo da vida, incluída aquela que está mais além da vida terrena.

No século XVI, os jesuítas levaram a cabo uma campanha sistemática destinada a extirpar as idolatrias dos índios. No culto aos mortos, os índios foram obrigados a substituir o uso da chicha (licor de milho) pela água benta, que até o dia de hoje é derramada sobre os mortos nos velórios e nos túmulos, de maneira especialmente intensa nas festas de 1º e 2 de novembro de cada ano.

Uma das características das festividades andinas é a música, as danças, os vestidos coloridos e as abundantes comidas e bebidas compartilhadas comunitariamente. As festas são o centro da vida social das comunidades; nelas se renova a solidariedade social e também com a terra. Não há festa boa sem a água, que é fundamental para fabricar a bebida principal à base de milho, açúcar de cana e água. A chicha alegrará todas as festas. Na hora de brindar, as primeiras gotas do copo serão oferecidas à Mãe Terra, a Pachamama. As gotas de bebida derramada unem as pessoas à terra, a quem se agradece sua generosidade.

Une-se também o mundo dos vivos com os mortos, quando os primeiros têm o cuidado de derramar água sobre as sepulturas para que não passem sede na caminhada; e se renova a solidariedade social no encontro dos vivos que se reuniram para celebrar as festas de seus queridos defuntos. A água é criadora de solidariedade social e cósmica muito profundas, daí a desolação quando falta água.

A partir de posições extremas, radicalmente opostas, há os que julgam encontrar na cultura andina da água os fundamentos para acusar os camponeses de serem causadores de sua própria pobreza (o presidente García os descreveu como «aqueles que nem fazem nem deixam que alguém faça»), enquanto que outros acham que nisso se descobre as razões para a oposição a todo tipo de atividade industrial extrativa moderna.

A cultura andina não foi cancelada em mais de 500 anos de colonialismo e globalização e, segundo minha opinião, tampouco será extinta se todos contribuirmos para resgatar e valorizar nela as lições que tem a dar à crise mundial da água. O surgimento de uma nova cultura da água faz parte de uma mudança de paradigma na justiça das relações sociais e da sociedade com a natureza (justiça ecológica). Formular uma nova cultura da água em termos economicamente viáveis não implica em perder de vista a finalidade: o bem-estar humano em sua relação de cuidado e respeito da natureza.

No entanto, na cultura andina da água não há lugar para tratá-la como um recurso que se possa negociar no mercado a exemplo de qualquer outro bem econômico (essa dimensão cultural pode levar muitas pessoas a “comerem pelas pontas” a sabedoria andina da água, tachando-a de idealista ou arcaica). As contribuições que ela é capaz de nos dar estão, sobretudo, no âmbito dos fins, dos valores últimos, em que toda a política hidrológica se deveria inspirar.

A tarefa que se impõe não é descartar mas, em primeiro lugar, aprender, valorizar e incorporar criativamente as contribuições de outras culturas.

 

Marco Antonio Arana Zegarra

Cajamarca, Peru