CORAGEM, CONFIANÇA E COMUNIDADE
Arianne Van Andel
Escrevo esta reflexão em tempo de pandemia do vírus COVID-19 e durante a semana santa de 2020. Não posso imaginar quais serão as circunstâncias em que vocês a estarão lendo, quando sairá a Agenda 2021, dedicada ao aquecimento global. Vivemos em tempos de crises e de tão grandes mudanças, que não podemos predizer como nos encontraremos no ano que vem. É nestas circunstâncias que proponho a minha reflexão, desde a incerteza, com mais dúvidas do que certezas, mas com o meu desejo de partilhar a minha procura com a de vocês.
Em primeiro lugar, quero confessar-lhes um estranho alívio que eu senti, desde que surgiu a pandemia. Dói-me o profundo sofrimento humano, os mortos e as injustiças do sistema, que se revelam em toda a sua crueldade, mas também tenho a sensação de que o mundo tomará consciência, pela primeira vez, da profundidade da crise em que estamos. Um vírus veio somente a revelá-la, porque já faz tempo que estamos na orla do precipício. “A normalidade era a emergência”, disse Noami Klein, num webinar, só que muito poucos a viam.
Senti um certo alívio pelo fato de não estar só com esta sensação de pesadelo e tristeza diante da realidade. Durante anos, trabalhando as consequências das crises climáticas, me parecia estar vivendo num mundo surreal, em que as pessoas ao meu redor continuavam vivendo sua rotina eterna, correndo sem parar, como se não acontecesse nada.
Tinha a frustração que Greta Thunberg tem expressado muitas vezes, de que não podíamos resolver uma crise se não a tratamos como crise. “Temos que parar o mundo e refletir para onde queremos ir”, pensei muitas vezes, mas o capitalismo parecia impossível de parar. Até que chegou um vírus, e nos obrigou a parar, e nos desafiou, a todos, através da realidade, de viver em crise. O alívio que nasce é como quando já não é necessário fingir ou parecer, como quando o médico, ao final, te diz o que você tem, embora possa ser uma má notícia.
O vírus, embora não diretamente relacionado com as mudanças climáticas, nos revelou que não estamos bem, enquanto humanidade, e que esta é a única realidade que temos.
E como é este mal? Nas conversas sobre mudança climática, inevitavelmente, surge esta pergunta: Há ainda esperança? E o que é esta esperança e onde podemos encontrá-la? Nos olhos das pessoas que perguntam, vejo, geralmente, muita ansiedade e é uma tentação suavizá-la rapidamente.
Não quero semear desespero e depressão, e por isso costumo dar esta resposta: que há muitas discussões – também entre cientistas – sobre o grau de perigo em que estamos, sobre a probabilidade dos pontos sem retorno, e sobre as nossas possibilidades de reverter a situação... que o futuro sempre está aberto, e que poderemos mudar o rumo. Não sei se consigo mostrar convencimento, mas o digo.
Sem dúvida, ultimamente tenho me questionado sobre a mesma pergunta e suas interpretações na nossa tradição cristã. Hoje, talvez, perguntaria: O que você quer dizer com esperança? O que espera ouvir? Não será que esta mesma esperança seja parte do problema? Não se equivoquem! Para mim, a esperança tem sido um conceito fundamental em todos esses anos, porém, fui percebendo que o conceito, na tradição cristã, nem sempre é um termo que mobiliza e, nesta crise, não tem tempo para esperar. Quando interpretamos “esperança” como uma solução garantida no futuro, por nós, seres humanos ou por Deus, não quero usá-la. Esta interpretação de esperança se nutre com outras tendências no cristianismo, que, creio, seja necessário revisar.
Primeiro, o judeu-cristianismo é uma tradição de caráter histórico, com uma percepção linear do tempo, dirigido para o futuro. Por um lado, esta percepção a defendeu do determinismo, com um otimismo frente à possibilidade da mudança e da conversão: é um pleito de liberdade e de crítica a fatores socioculturais que nos determinam. Sem dúvida, este mesmo aspecto, tem o perigo de dar mais importância ao futuro do que ao presente. Enfoca o olhar para frente, até a meta, o objetivo ou até a vitória, desmerecendo o processo do que estamos vivendo agora. E até pode acontecer que o presente só tem sentido pela existência deste futuro, e que a esperança se funde com ele.
Segundo, a nossa tradição é, inerentemente, pró-vida (no seu sentido amplo). A diferença de outras religiões mostra uma luta contra as forças da morte, e representa a morte – especialmente, a prematura, ou por injustiças – como uma realidade que não pode ter a última palavra. É inconcebível que a morte possa vencer-nos ao fim deste caminho, que a humanidade poderia se extinguir. Partilho, desde as minhas entranhas, esta fé num Deus da Vida, mas também estou dando-me conta do outro lado.
Facilmente, nós sublimamos a morte, procuramos vesti-la com imagens do céu, de vida eterna, de ressurreição. Uma amiga querida me sugeriu, nesta Páscoa, que deveríamos dar mais peso ao Sábado Santo. Disse-me que, sublimar a morte, nem sempre nos ajuda a assumi-la, a encará-la, a falar com ela, e assim também a dar o valor real à vida neste planeta, que é absolutamente única e insubstituível.
Terceiro, a tradição cristã é antropocêntrica, o que, sem dúvida, dá uma responsabilidade especial aos seres humanos. Nos caracteriza como imagem e co-criadores de Deus, mas, devido às nossas imagens muito espiritualizadas de Deus, isso tem produzido um dualismo pelo qual temos subvalorizado nossa corporeidade, nossas emoções e impulsos, e o nosso ser parte da natureza. Estes dias de pandemia nos revelaram até que ponto temos subvalorizado as profissões que se ocupam do sustento a cuidado básico da vida: as pessoas que cuidam dos enfermos, nossas crianças e os adultos maiores que cultivam a terra, limpam, recolhem o lixo, enterram os mortos. Muitas delas são mulheres. Não podemos enfrentar a crise em que estamos, se não superarmos estes dualismos e começarmos a nos reconectar com a terra, começando pelo que nos sustenta a cada dia. Se continuarmos a procurar a esperança somente com a nossa parte racional e soluções que surgem no nosso intelecto, há pouca esperança.
Levando a sério estas três armadilhas da nossa tradição, convido a complementar o conceito, a partir de três conceitos diferentes: coragem, confiança e comunidade. Uma estudiosa do clima me disse uma vez: Precisamos de coragem, mais do que esperança. Coragem para permanecer no Sábado Santo e assumir a tristeza e o desafio das tremendas perdas já produzidas pela mudança climática, e as que virão. Coragem para olhar e sentir as feridas do presente, sem querer pular imediatamente para a solução. Coragem para aguentar o “não saber” e a nossa vulnerabilidade básica. Coragem, também, para poder fazer as mudanças que vamos ter que fazer, em nível coletivo e individual. A mudança sempre custa e pede coragem para enfrentar o novo e muito mais, quando algumas destas mudanças significam perdas, adaptação e renúncia a comodidades que pareciam estáveis. Além disso, coragem para revelar e denunciar todo o egoísmo, a avareza e a injustiça que nos des-espera.
A coragem é companheira da confiança. A confiança, mais do que a esperança, brota hoje nas relações interpessoais. Quando estamos mais conectados com o presente, e àquilo que valorizamos hoje, podemos ter confiança de que irão brotar as intuições para fazer as mudanças.
Confiança é uma pedra fundamental para a construção em conjunto, para poder fazer a sua parte e deixar que os outros façam o resto. Confiança também nasce quando descobrimos que nem todas as oportunidades e possibilidades estão no meu horizonte e, por isso, podem acontecer coisas inesperadas. A confiança ajuda a crer que cada ação que eu realizo tem um efeito indelével, e é de suma importância hoje, como bem me lembrou, nestes dias, uma professora holandesa.
Coragem e confiança se aprendem em comunidade. Em tempos de crise, aprendemos, como nunca, o quanto precisamos uns dos outros, na nossa grande e misteriosa interdependência, e de como podemos nos apoiar na dor e na alegria. Nos tempos de crise, que são e serão, somente em comunidade podemos nos cuidar, e podemos construir, dia após dia, uma nova realidade. O constatei nos últimos meses, no Chile, com o surto social, e agora na pandemia: coragem, confiança e comunidade crescente. Isso é agora: “...vejam que realizo algo novo; já está brotando, não o percebem?” (Is 43,19).