Crítica Global e Teológica À economia mundial

Crítica Global e Teológica À economia mundial atual

Jung Mo Sung


Ideias desenvolvidas no livro SUNG-RIEGER-MIGUEZ, Beyond the Spirit of Empire, SCM, Londres, a sair pela Paulus, Brasil em 2012.

Há uma novidade na forma de dominação que o atual sistema capitalista global está impondo sobre o mundo. Diferentemente dos impérios do passado que conquistavam novas regiões e países através da força bruta, de invasões militares, hoje a conquista se dá fundamentalmente pela atração e fascinação. Compreender essas novidades é fundamental na nossa luta por um outro tipo de globalização.

Sistema capitalista global como sistema imperial

Há autores que pensam que o mundo vive hoje sob o domínio do império norte-americano. Outros afirmam que a fase dos impérios já passou e que vivemos uma época pós-imperial e pós-moderna. Há outros autores que afirmam que não superamos a fase de impérios, mas que o modo como o império se organiza e funciona mudou. Juntamente com esses, eu também penso que o sistema capitalista global atual opera como um sistema imperial.

Em poucas palavras, o império não deve ser entendido aqui como uma forma política institucional, mas como um modo de conformar o exercício de poder que faz coincidir – para além das diferenças, organizações institucionais ou fronteiras nacionais e étnicas – os interesses das elites. Essa coincidência significa o fim dos controles e balanços de exercício de poder que se dão quando os sub-sistemas do poder econômico, político, militar e cultural se contrapõem e limitam uns aos outros por causa de interesses e visões diferentes. Por ex., o Estado colocando limites e regulando o sistema de mercado. Em outras palavras, o império é a constituição de uma «harmonia» de interesses entre as elites.

Outra característica importante é o fato de que o império tem a pretensão explícita de totalidade, de submeter o mundo conhecido ao seu domínio impondo a «paz», e, por isso, se apresenta como manifestação da vontade divina ou como ápice da evolução da história que irá durar para sempre.

O atual sistema capitalista global é exatamente um sistema com a pretensão explícita de totalidade, de alcançar todos os rincões do mundo, e em torno desse projeto une as elites de todos os setores de todos os países (ou quase todos), não importando se são de países ricos, emergentes ou pobres. E a sua expansão é apresentada e vista pela grande maioria da população mundial como a expansão do progresso econômico, a chegada da «boa-nova».

Tudo isso não seria possível sem um espírito que lhe desse essa unidade, força e legitimidade para a sua expansão: o «espírito do império».

Ao falar de «espírito» aqui, precisamos ter claro que não estamos nos referindo a uma realidade «espiritual» que se oporia à realidade material – fruto de uma visão dualista da realidade –, mas de uma «força» que move o sistema e lhe dá a unidade. O espírito do império se refere a uma forma de pensar, de agir, gerenciar, uma cosmovisão e até uma teologia que é consubstancial à forma de organização social que chamamos aqui de império. Assim como o capitalismo, para surgir, necessitou de um espírito capitalista que rompesse com o espírito do mundo feudal-medieval, o sistema imperial atual gestou e é movido pelo espírito do império.

Com isso, queremos enfatizar que a luta contra o atual sistema capitalista global pressupõe também uma luta espiritual contra esse espírito do império. Nesse sentido, é igualmente uma «luta dos deuses» (título de um importante livro da teologia da libertação escrito no início da década de 1980). Não haverá possibilidade de um outro mundo sem espiritualidade e teologia alternativa. Diante de um império que se pretende absoluto e movido por um espírito que se pretende «sagrado», vale a pena recordar as palavras de Marx: «a crítica da religião é a condição preliminar de toda a crítica». Isto é, sem a crítica da idolatria do império outras críticas – como a política e a econômica – não encontram eco na sociedade.

Dominação por atração

Com o aumento da complexidade e amplitude da divisão social do trabalho, que hoje é mundial, não é mais possível produzir os bens necessários para a vida da população de um país estando completamente fora do sistema econômico global. Por isso, a alternativa não consiste mais em sair da economia global. Entretanto, isso não significa que não possa haver uma outra forma de organizar a economia global ou pelo menos economia de um país ou de uma região.

O sistema atual impôs o sistema de mercado livre como o ideal de economia para todo o mundo. Com isso, os Estados nacionais e organismos multinacionais funcionam em função do mercado. A principal tarefa dos Estados e desses organismos é a defesa das leis do mercado. A política deixou de ser uma contraparte da economia para ser uma parceira submissa. Essa é a «harmonia» imperial que mencionei acima. É claro que aqui jogam papel muito importante os meios de comunicação que divulgam, anunciam, ao mundo inteiro que o progresso humano se identifica com o crescimento econômico e que isso só será possível se integrando à economia capitalista mundial.

Na medida em que tudo é medido e avaliado a partir do índice de crescimento econômico, a sustentabilidade do meio ambiente e a sustentabilidade do tecido social – fundamentais para a vida humana no planeta – ficam subordinadas ao critério econômico.

Esse poder avassalador do mercado global funciona como uma grande «massa» que atrai, quase como por gravidade econômico-social, todas as economias regionais que ainda estão fora do império ou que procuram caminhos alternativos de organização da sociedade.

Antes, os impérios usavam de suas forças militares, políticas e econômicas para manter os países e povos dentro da sua totalidade de dominação. Hoje, o império ameaça com a expulsão aqueles que resistem a assumir integralmente as leis e os valores emanados pelo «espírito do império». O medo que se impõe é o de ser expulso do império!

A fascinação do império: a colonização da subjetividade

Esse sistema de mercado global não teria sido possível se não tivesse ocorrido um processo de colonização da subjetividade, a cooptação do desejo dos povos do mundo inteiro capaz de criar um único mercado consumidor global. Sem mercado consumidor global, não é possível uma produção e distribuição de mercadorias em escala global e, com isso, um sistema econômico global.

As pessoas do mundo inteiro desejam consumir iPad, iPhone, iPod e outros ícones que os meios de comunicação socializam como objetos de desejo. As pessoas não desejam essas mercadorias por suas características próprias, mas pelo que elas representam na vida cotidiana e no que acreditam ser o caminho de humanização. Pois, no fundo as pessoas desejam adquirir mais «ser» que as tornem mais humanas. Só que para «ser» mais, elas precisam de um modelo, de um «ideal» de ser humano que lhes indique o caminho a seguir, os objetos a desejar. E os seus modelos indicam esses produtos como portadores do «ser». Essas mercadorias de grife mundial fascinam as pessoas e povos, pois lhes prometem força e pureza de seres humanos que todos sonhamos ser.

Só que no mercado, o que vale não é o desejo, mas sim o desejo transformado em demanda; isto é, desejo de pessoas com capacidade de consumo. Se o caminho da humanização consiste em comprar esses produtos, entrar na economia global que lhes permite ter acesso a esses bens lhes parece mais do que natural, se torna obrigatório. Ficar fora desse circuito e da possibilidade de realizar o desejo de se tornar humano reconhecido na sociedade é algo que dá muito medo. Pois os não-consumidores ou consumidores falhos são vistos como os «demônios» da sociedade. Fascinação e medo são dois lados da experiência diante de algo sagrado!

Paulo Freire, no seu clássico «Pedagogia do oprimido», já nos alertava que, na luta pela libertação, os oprimidos desejam ser como seus opressores. «O seu ideal é, realmente ser homens, mas, para eles, ser homens, na contradição em que sempre estiveram e cuja superação não lhes está clara, é ser opressores. Estes são o seu testemunho de humanidade».

A subjetividade dos oprimidos e marginalizados do mundo foi colonizada. É preciso descolonizar a cultura e a subjetividade e propor outros modelos de ser humano que realmente indiquem caminhos de verdadeira humanização. Em parte, a conversão consiste nisso: a descoberta de um novo modelo de desejo, um novo ideal de ser humano.

Alternativas?

Desmascarar a pretensão de totalidade e de eternidade do sistema capitalista global, com a crítica à idolatria e a afirmação da fé no Deus que transcende, que está além de todos os sistemas imperiais; romper a pretensão de «harmonia e paz imperial» introduzindo tensões entre os diversos sub-sistemas, – por ex., tensão entre mercado, o Estado e a sociedade civil –; criar e potencializar sub-sistemas econômicos não capitalistas – como por ex., economias solidárias – para romper com a lógica de um único princípio organizador na economia; e lutar no campo espiritual-cultural para apresentar o ideal de ser humano e modelos de desejo que não sejam subordinados à lógica do consumo, à espiritualidade de consumo. Esses são alguns dos desafios que devemos assumir.

 

Jung Mo Sung

São Paulo, SP