Da democracia à biocracia

Da democracia à biocracia

Margot Bremer


Hoje nos vemos diante de fenômenos alarmantes, como o esgotamento das reservas naturais, a contaminação ambiental do ar, da água, da terra... por agrotóxicos, lixos patológicos, nucleares, etc., destruição irreversível da camada de ozônio, perda da biodiversidade, desertificação, etc.

A causa principal é nosso ritmo e nosso modelo de consumo que oculta as consequências para o meio ambiente. Nesse momento, estamos presenciando um ecocídio, que é ao mesmo tempo um biocídio, pois com a morte da natureza desaparece todo tipo de vida, também a humana.

Não podemos viver sem a vida da terra, mas esta já dá claros sinais de que não aguenta mais. Chegamos a um ponto de insustentabilidade que já não tem jeito. O sistema neoliberal, o culpável principal por essa situação, transformou nossa «casa comum», a Terra, em seu mercado, submetendo a natureza a seus interesses capitalistas, sem misericórdia, explorando-a até o esgotamento, sem pensar nas gerações futuras. Seu projeto de “desenvolvimento” se mostrou insustentável, aumentou as desigualdades sociais, depredou a natureza e consumiu e está esgotando seus recursos.

Se não considerarmos nossas inter-relações e interações em sua interdependência, não estaremos a serviço da vida (bios), continuaremos nos servindo dela como nossa propriedade privada. Para chegar a viver em harmonia com a natureza é necessário que estendamos o sentido da comunidade humana para todos os seres vivos que a Terra produz. O mundo será outro quando formarmos uma só comunidade cósmica que inclua toda a diversidade da vida. Optar por essa convivência implica em optar por um estilo de vida austero, pois a vida (bios) não vai atrás do consumo, o lucro e o luxo; busca comunhão, mediante inter-relações solidárias; por isso é totalmente contrária à lógica do sistema neoliberal que fomenta o individualismo e a competência.

A lógica privatizadora chega à sua máxima culminância na pretensão atual do capitalismo neoliberal de patentear sementes ou conhecimentos ancestrais, desenvolvidos pelas culturas locais, que com razão resistem hoje em dia ao capitalismo.

Em busca de alternativas

A urgente necessidade de incluir toda a vida da natureza dentro de nosso sentido de comunidade não é resolvido com lindos sentimentos, mas exige uma mudança de visão e relação com a vida dessa terra que nos sustenta. Disse um cacique xavante na “Cumbre de la Tierra”, Rio de Janeiro, ECO’92: ...as multinacionais que vieram para cá não têm paixão pela terra. Não amam as plantas nem os animais, amam o dinheiro. Por isso, tampouco têm paixão pelo povo... Sem paixão pelo povo não é possível viver verdadeiramente a democracia (demos = povo). As sábias palavras daquele indígena confirmam que a ambição de lucro individual e privado se impõe aos interesses do povo e também sobre a sustentabilidade ambiental. Sua capacidade de relacionamento está reduzida ao dinheiro.

Essa situação atual exige uma mudança na visão e na relação, uma transição desde a democracia até uma biocracia, centrada na vida, com sua imensa diversidade. Vandana Shiva, ecologista hindu, propõe uma «democracia ecológica» que inclua todos os seres vivos, tanto na biodiversidade como na diversidade cultural. Será chamada comunidade da terra, com uma economia da terra, baseada na diversidade, na sustentabilidade e na pluralidade, como uma economia viva.

Essa nova economia deve ser construída a partir das necessidades locais. A futura biodemocracia terá seu fundamento na inclusão e na diversidade, tomará suas decisões desde o local até o global (ascendente), em um perfeito equilíbrio entre direitos e responsabilidades. Respeitando-se as culturas locais, será possível globalizar a paz, o cuidado e a compaixão.

Dois exemplos para a biodemocracia

Parte dessas propostas já são encontradas aprovadas nas recentes Constituições (2008) de dois países latino-americanos: Equador e Bolívia. Parece que, diante do fracassado sistema neoliberal, esses dois países, de antiga população inca, querem oferecer outro modelo de convivência baseado em sabedorias ancestrais.

Com um novo vigor fizeram emergir sua antiga e sempre nova utopia do BEM VIVER, ou do VIVER BEM, que os antepassados, há milênios, experimentaram como sustentável em seus respectivos lugares, souberam planejar um novo futuro sobre fundamentos próprios, que resgataram do passado, sem ter de copiar nem se deixar impor modelos do Primeiro Mundo.

O fato de as duas novas Constituições se apoiarem em valores de suas culturas “pré-coloniais” é sinal de que já se começou um processo de des-colonização de vários colonialismos de diferentes épocas, colonização que se deu sobretudo no campo de seus conhecimentos.

Segundo a Constituição equatoriana, o verdadeiro desenvolvimento se consegue somente mediante a convivência humana na harmonia com a natureza, reconhecendo e aceitando a íntima interdependência entre humanos (humus...) e terra. Tal convivência é constitutiva para o BEM VIVER.

A sociedade moderna não é capaz de respeitar a vida da natureza, devido à sua voracidade depredadora. Mas, sem respeito pela vida da terra, não é possível a vida humana. Portanto, um dos direitos fundamentais dos cidadãos é viver em um ambiente sadio, e um dos direitos fundamentais para a natureza é sua preservação, conservação e recuperação: ambiente sadio e ecologicamente equilibrado que garanta a sustentabilidade e o BEM VIVER, «sumak kawsay». Declara-se de interesse público a preservação do ambiente, a conservação dos ecossistemas, a biodiversidade e a integridade do patrimônio genético do país, assim como a prevenção do dano ambiental e a recuperação dos espaços naturais degradados (art. 14 e 15).

A nova Constituição proíbe o uso de contaminantes orgânicos persistentes altamente tóxicos, agroquímicos internacionalmente proibidos, tecnologias e agentes biológicos experimentais nocivos e organismos geneticamente modificados, prejudiciais à saúde humana que atentem contra a soberania alimentícia, assim como se introduzisse lixo tóxico no território nacional (cf. art. 15).

Aqui se manifesta claramente que a convivência com a natureza é concebida como parte integral da constituição humana, o que os povos originários sempre tinham expressado com a frase: «a terra não nos pertence, mas nós pertencemos à Terra».

Também a nova Constituição boliviana aponta para o meio ambiente como patrimônio natural (art. 384) de seus habitantes. Defende a natureza como um bem comum vital e penaliza sua depredação, já que prejudica seus habitantes:

Aqueles que realizarem atividades de impacto sobre o meio ambiente deverão, em todas as etapas da produção, evitar, minimizar, mitigar, remediar, reparar e ressarcir os danos que ocasionarem ao meio ambiente e à saúde das pessoas, e estabelecerão as medidas de segurança necessárias para neutralizar os efeitos possíveis das agressões ambientais (art. 347).

Ambas as Constituições afirmam a necessidade de uma convivência entre pessoas e natureza, pois a natureza é a nossa casa comum (eco-logia: oíkos + casa).

De especial importância consideram ambas as Constituições dos recursos naturais que formam parte do bem comum de toda a população. Na hierarquia dos direitos do BEM VIVER, a Constituição equatoriana menciona em primeiro lugar o direito à água. Para a boliviana, a água é patrimônio nacional e constitui um direito fundamentalíssimo para a vida, no marco da sabedoria do povo. O Estado promoverá o uso e o acesso à água sobre a base de princípios de solidariedade, complementaridade, reciprocidade, equidade, diversidade e sustentabilidade (art. 373).

Na Constituição equatoriana, a água é o mais essencial para a vida e, portanto, é inalienável, imprecindível, «inembargável» (art. 12).

Também a tão necessária produção energética deve mudar, para não continuar prejudicando a vida da natureza: o Estado desenvolverá... novas formas de produção de energias alternativas, compatíveis com a conservação do ambiente (art. 379).

O BEM VIVER dos cidadãos com os demais seres vivos é garantido pela Constituição equatoriana ao conceber a natureza como um sujeito vivo, com direitos constitucionais próprios.

Em nossa busca, pois, de alternativas, caminhando para uma biodemocracia, as duas constituições nos trazem os seguintes princípios fundamentais:

• conviver respeitosamente com a natureza e relacionar-nos com ela como um ser vivo;

• buscar uma convivência sustentável, com relações equilibradas entre os povoadores e a natureza;

• respeitar e proteger a terra, utilizando racionalmente os recursos naturais renováveis, e, como são limitados, deve-se rechaçar o supérfluo e buscar o essencial para uma vida digna para todos;

• uma visão integradora diante da complexidade e da diversidade da vida.

Encontramos aqui princípios que não estão longe do sonho da «democracia ecológica» defendida por Vandana Shiva. São princípios fundamentais que representam uma autêntica alternativa ao atual sistema globalizante, homogêneo, acumulativo e monopolizante que pretende ser a única solução contra a crise que ele mesmo provocou.

Debata / dialogue / comente com seu grupo:

• Nossas Constituições políticas são muito respeitosas com os direitos humanos, mas inimigas da natureza...

• A natureza, a fauna, os bosques... não podem votar, mas eu posso representar com meu voto os seus interesses...

• A forma política máxima já não pode ser a «demo»-cracia, mas a biocracia.

 

Margot Bremer

Asunção, Paraguai