De Medellín 196 a Aparecida 2007

De Medellín 196 a Aparecida 2007
Entre continuidade e rupturas, uma viagem sem retorno
 

Jorge PEIXOTO


O documento de Medellín inicia a aventura de renovação da Igreja na América Latina. Não é uma mudança superficial. É a grande viagem do novo modelo eclesial e de reflexão teológica. Uma viagem sem retorno.

Já se passaram quase 40 anos daquele Medellín que representou a “recepção criativa do Concílio Vaticano II” e o começo de “outro modo de ser Igreja” para a América Latina. O Concílio Vaticano II foi uma atualização para iniciar o diálogo da Igreja com o mundo, abrindo-a para uma nova perspectiva pastoral, para mudanças estruturais no interior da Igreja, para uma nova visão da evangelização e para um novo lugar para a construção da utopia do Reino.

Porém, nem tudo estava resolvido, pois permaneciam no interior da Igreja, grupos de pastores e instituições que não tinham assimilado as exigências de tais mudanças, com grandes contradições e conflitos, ainda não por resolver.

Estava começando uma renovação com um novo método pastoral: ver, julgar e agir. Trata-se de processos educativos e de aprendizagem, de caminhos de crescimento e integração, que durante estes últimos anos foram percorridos pelos empobrecidos de nosso Continente e pelo setor da Igreja comprometida com suas Causas, entre confrontos e desencontros, entre assimilações e resistências, com um importante setor da Hierarquia da Igreja.

Medellín nos ensinou a olhar a realidade de outro modo, nos permitiu ler as fontes do cristianismo de outra maneira, mudar nossa perspectiva e entrar em contradição com o verticalismo da instituição eclesial quando esta se distanciava do compromisso com as Causas da libertação e da justiça. Medellín 1968 nos convida para o compromisso de toda a Igreja com os pobres, animando a missão evangelizadora e libertadora ao propor uma pastoral de conjunto a partir das Comunidades Eclesiais de Base, na lógica de uma eclesiologia de comunhão. Esta chave de leitura é muito importante, já que a comunhão se expressa a partir das pequenas comunidades de base e do encontro com os movimentos emancipatórios.

Um novo modo de ser Igreja se torna teologia

O processo de reflexão popular que começou a acontecer nos centros de estudo, nas comunidades de base e na teologia da libertação foi extraordinário. Este tipo de reflexão tornou-se um fenômeno cultural, que se apresenta como alternativa leiga à teologia da dominação, pensada escolasticamente, sem fundamento bíblico e a partir dos centros de poder. Este modo de fazer teologia é o laço de continuidade que testemunham as mesmas comunidades, enraizadas na sabedoria e na sensibilidade dos pobres junto aos que lutam por uma transformação da realidade. Nasce da leitura orante da Palavra, se relaciona com o caminhar das organizações não governamentais, é ecumênico e pluralista.

A realidade nos desafia a jogar a partida decisiva

A desigualdade entre ricos e pobres continua aumentando. É o continente mais violento e de maior injustiça, com uma desigualdade sistemática. A pobreza e a exclusão conformam esse retrato antropológico e sociológico de nossa América Latina que não mudou dos anos 60 até a atualidade. Verificam-se situações de extrema perversão na flexibilização operária que hoje se constituíram como normais. Nos atos, nas leis do mercado funcionam como revogatórias dos direitos sociais básicos. O capitalismo realmente existente, na realidade concreta das pessoas mais pobres, se submerge no império da escravidão.

Já não existem possibilidades em curto prazo de superar a fronteira imposta pela pobreza e pela exclusão. Continua no ar um debate de fundo: a dívida externa, com a mesma injustiça de sempre enquadra em histórias de empobrecimento e corrupção, neoliberalismo e expropriação cultural.

Mas, como modificar a índole de toda essa realidade de sofrimento e de desigualdade estrutural? Devemos enfrentar essa racionalidade sem nos deixar enfeitiçar pelas propostas econômicas e políticas que não sejam geradas na lógica da opção pelos pobres e sua libertação. É por isso que também se mantém viva a crítica, a esperança e o compromisso em projetos de transformação rumo a uma nova justiça. Hoje, mais que nunca, existem novas esperanças na velha utopia da libertação.

Nem tudo está perdido, ao contrário, nos restam experiências consolidadas em projetos pastorais e presenças de vida religiosa inseridas nas causas populares e emancipatórias, o testemunho martirial, a aprendizagem comunitária. E não apenas dentro da Igreja, mas existe muita utopia em muita gente, muito compromisso e muita participação social na busca da verdade e rumo à justiça. E o Evangelho... e não é pouca coisa!

De cara à mudança de época, nosso olhar agora é mais amplo, mais plural, mais ecumênico. O ativismo e o imediatismo vão sendo superados. Releva-se uma mudança de gerações com uma acentuação na subjetividade. Não é uma ruptura nem uma negação de Medellín e sua proposta metodológica, mas um novo momento no desenvolvimento de seu caminhar com a história da libertação dos pobres, dentro de um compromisso cada vez mais preciso e profundo nos diversos campos sócio-eclesiais latino-americanos.

Podemos dizer, de modo sintético, que no momento atual, ao pretender re-afirmar a teologia da libertação, ela mesma se redescobre articulada entre educação libertadora, práxis política e reflexão teológica, uma nova fronteira de aprofundamento, crescimento e compromisso. Atravessar desde a educação libertadora às práticas pastorais para recuperá-las como lugares da aprendizagem, produção de conhecimento crítico e constituição da espiritualidade libertadora e recriação do pensamento teológico. Não é tempo de retraimentos e nem de distanciamentos da construção cultural de nossos povos. É o tempo de afiançar e consolidar práticas impregnadas de renovação que mantenham o espírito e as opções de Medellín ‘68. Porque os pobres e os excluídos esperam algo mais que anátemas, censuras, desconfianças, discriminações e disputas internas para conquistas de espaços eclesiais. Esperam o dinamismo evangelizador, a dimensão profética e a luta pela justiça.

Mais recentemente vem se dando explícitos desejos de mudanças em expressões eleitorais e democráticas que projetam novas esperanças. Fóruns e encontros internacionais que buscam outro mundo possível, necessário e indeformável. Está nascendo outra América, sem impérios que controlem o mercado e a soberania dos povos; sem pobreza nem exclusão e sem hipotecar o futuro das crianças e da natureza. E neste caminhar vamos e queremos ser outra Igreja, que não se ajusta ao modelo neoliberal e volte a recuperar a profecia de Medellín e sua opção pelos pobres. Uma Igreja do lado dos que lutam pela vida e pela paz, una e plural, centralizada na construção do Reino junto a tantos outros e apoiada no Evangelho. Não se pode entender a igreja que sonhou Medellín ’68 sem estar a par de tanta gente que continua comprometida nos movimentos sociais, na luta pela verdade e pela justiça, na defesa da vida.

Nem tudo será igual

É importante escutar as críticas. Teríamos que ter mantido muito mais aberta nossa espiritualidade libertadora e orante, aos canais de comunicação com as mobilizações sociais, com as organizações dos pobres, em uma atitude de educação evangélica e popular, em lugar de dar tanta atenção à relação intra-institucional para garantir a estabilidade. A continuidade do espírito renovador iniciado no Vaticano II depende do potencial transformador de nossa espiritualidade e compromisso com um novo modelo de Igreja. O espírito renovador é uma herança dessa Igreja dos pobres, inserida nas práticas libertárias do Continente que continua encarnando o dinamismo de renovação perseverante à qual nos convocou o Concílio e Medellín.

Vale a pena fazer memória, já que nos impede ser complacentes e interromper nosso compromisso com o caminho iniciado rumo a esse novo modelo de Igreja construída com os pobres. Vale a pena fazer memória quando não se cala e quando não se esquece, e, além disso, se é capaz de abrir novas esperanças.

A partir da teologia latino-americana que continua ativa em seu pensamento e produção, os que trabalhamos pela libertação reiteramos nosso compromisso por manter a fidelidade ao espírito de renovação empreendido por Medellín (uma renovação para frente e sem retorno) e aos pobres, sujeitos teológicos de qualquer mudança, esperando com eles o novo amanhecer. Mais ainda, devemos assumir essa inspiração e traduzi-la hoje para a nossa realidade. Não nos conformamos apenas em recordá-lo, reafirmamos sua validade para torná-lo factível.

Porque o chamado de Medellín continua ressoando – apesar dos avanços neoconsevadores de parte da condução institucional – para consolidar a opção pelos pobres e a testemunhar a pobreza da Igreja. Com os aportes da reflexão teológica comprometida no horizonte da libertação se está buscando afiançar uma Igreja mais fraterna e participativa, solidária com os pobres e cada vez mais desde os últimos e excluídos, mais ecumênica e inter-religiosa, mais esperançada e criativa, mais libertadora junto a tantas organizações populares e transformadora da sociedade.

A proposta é definitivamente simples: sem suavizar os argumentos e polêmicas, reforçar nosso compromisso já assumido. Crer em nós mesmos, progredir na coerência e responsabilidade como comunidade evangélica junto ao caminhar de nossos povos, partilhando o mesmo destino, os mesmos sonhos e a mesma esperança. Não nos cansemos de crer no amor que leva à justiça. Mas isso, como os apaixonados, nos lembramos do primeiro beijo, chamado Medellín. Este é talvez o desafio ético-evangélico mais sugestivo.

 

Jorge PEIXOTO

Buenos Aires - Roma