Declaramos que a pobreza é ilegal
Declaramos que a pobreza é ilegal
Luis Infanti de la Mora
Em 2000 havia grandes expectativas para a humanidade. Parecia um número mágico, propício para que um novo milênio mudasse o rumo trágico da história. Em 1948, uma luz de esperança resplandecia sobre todos os povos que chegaram a um consenso para um estatuto mínimo da dignidade: a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.
Os surpreendentes avanços científicos, tecnológicos, econômicos e comunicacionais da segunda metade do século passado davam confiança ao estabelecimento de Paz, Justiça e prosperidade entre todos os países do mundo. No entanto, o afã predatório do ser humano pôs em marcha mecanismos avassaladores de exclusão dos povos mais frágeis, chegando a colocar em perigo a sobrevivência da humanidade.
Os gritos de alarme surgiram dos povos originários, especialistas em compartilhar agradecidamente os bens da Mãe Terra. Compartilhando uma vida sóbria, digna, fraterna, ao se verem despojados sentiram-se ofendidos em sua dignidade e empobrecidos em seus bens.
Surgiram sistemas econômicos impostos pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial e respaldados pelos governos dos países para desmantelar os Estados, liberalizar os mercados, desregulamentar quase todos os setores da economia, privatizar os setores públicos mais estratégicos, mercantilizar os bens comuns essenciais para a vida de todos os seres vivos (água, terra, alimentos...).
Não mais de 1% da população mundial se apropriou de mais riquezas que os 99% restantes (informe OXFAM, 19 de janeiro de 2015). Os objetivos que a ONU havia fixado já em 1974 para “erradicar a pobreza absoluta” em 2000, tornaram-se vagos. Tendo em vista o vergonhoso fracasso, em 1995 a mesma ONU repensou seus objetivos e fixou a meta de “reduzir à metade a pobreza” no mundo para 2015.
Ainda que em muitos países notam-se graus de diminuição da pobreza, em todos eles há elevação dos índices de desigualdade entre segmentos sociais e entre países. Impera a injustiça e roubam-se a vida e o futuro dos mais pobres, despojando-os dos alimentos, água potável, saúde, educação de qualidade... Roubam-se a dignidade e a felicidade, condenando-os à tortura permanente da pobreza e à escravidão da submissão. Surge em várias partes do planeta a voz dos INDIGNADOS, voz profética e exigente, a qual propõe novos rumos para a humanidade, voz que questiona o exercício do poder e a tomada de consciência do poder dos excluídos.
A partir de setores mais sensíveis às problemáticas ecológicas e ao drama da falta d’água (elemento vital para todo ser vivo), surge a Campanha “DECLARAMOS ILEGAL A POBREZA”, que tem por meta que a ONU, no aniversário de 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a ser celebrado em 2018, enfatize que a pobreza é imoral e a declare ILEGAL. É um imperativo, uma exigência, não é um “desejo”.
Efetivamente, a pobreza é produto de uma construção social, friamente planejada e presente nas leis, instituições e convicções mentais e culturais que promovem e potencializam a pobreza. A aliança genocida entre os poderes econômicos e políticos levou a um modelo que parece responder ao princípio dramático “não conseguimos eliminar a pobreza, eliminemos os pobres”.
A dignidade e a vida dos pobres merecem valente e decidida tomada de consciência de toda a humanidade para criar “outro mundo possível”. Como em outras épocas a escravidão foi declarada ilegal, hoje declaramos a pobreza ilegal (não os pobres).
Os sistemas econômicos quiseram fazer crer que a pobreza é apenas um problema econômico (é pobre quem “vive” com menos de 2 dólares por dia, situação imoral na qual, hoje, está crucificado um terço da humanidade); no entanto, uma visão ética e humana faz considerar a pobreza como toda situação em que a pessoa é degradada e ferida em sua dignidade, despojada dos bens naturais com que Deus nos bendiz, excluída da participação nas decisões essenciais na construção do bem comum e de sua própria vida. Reconhecemos hoje os rostos sofridos e ensanguentados nos deslocados, nos migrantes, nos povos indígenas, nos sem terra e sem água, nos sem teto, nos sem voz, nas crianças que ainda vão nascer, nos desempregados... Incluindo nossa Mãe Terra depredada. Milhões de rostos em que deveríamos reconhecer o rosto sofredor de Cristo hoje, e frente aos quais o Papa Francisco nos chama com força e profetismo a vencer a indiferença e a fazer efetiva a nossa fé.
A outra face da mesma moeda da DESIGUALDADE são a riqueza e a extrema riqueza. Não por acaso apenas 15 empresas transnacionais controlam 50% da produção mundial. Com o poder econômico das dez pessoas mais ricas do mundo poderiam ser alimentadas 1 bilhão de pessoas que passam fome, pelos próximos 250 anos.
São várias as cifras e estatítisticas que, em cada país, refletem uma humanidade e um planeta gravemente doentes. Cremos que podemos e devemos mudar a história. Começando por todos nós, nas pequenas ações, atitudes e decisões de cada dia. É possível ter estilos de vida mais sóbrios e solidários, de maior comunhão, ternura e sensibilidade com a natureza e nossos semelhantes, reflexo da relação com Deus e lutar para a mobilização em torno de uma ética mundial que nos questiona e interpela: “Que foi feito com seu irmão?”. Em uma cultura mercantil, não estamos dispostos a vender nossa consciência e nem nossa dignidade.
Riccardo Petrella, reitor da Universidade do Bem Comum (Sezzano, Verona, Itália), é um dos incentivadores da Campanha. Com diversos apoiadores, elaboramos alguns princípios básicos que a fundamentam:
1 – Ninguém nasce pobre nem decide ser pobre. Todos nós, ao nascer, antes de viver em condições de pobreza ou riqueza, recebemos a vida. A condição da sociedade em que nascemos “determina” nossa “pobreza” ou “riqueza”. Ninguém quer ser pobre. Temos medo da pobreza.
2 – Chegar a ser pobre. A pobreza é uma construção social. A pobreza não é um feito da natureza como a chuva. É um fenômeno social construído pelas sociedades humanas.
3 – Não é a socieade pobre que “produz” a pobreza. Os EUA são o país mais rico em termos monetários, no entanto, o empobrecimento de dezenas de milhões de cidadãos é parte de sua história.
4 – A exclusão produz o empobrecimento. A exclusão diz respeito ao acesso econômico e social aos bens e serviços imprescindíveis para viver de forma digna e conveniente, e ao acesso às condições e formas de cidadania civil, política e social de hoje. A exclusão corresponde ao conjunto da condição humana.
5 – Estruturalmente, o empobrecimento é coletivo. Isso implica cada pessoa e os núcleos familiares, populações inteiras e classes sociais determinadas.
6 – O empobrecimento é produto de uma sociedade que não crê nos Direitos Humanos e nem na cidadania para todos, nem na responsabilidade política coletiva para garantir os direitos a todos os habitantes da Terra. Os grupos dominantes não creem nos Direitos Humanos de vida e cidadania (universais, indivisíveis, imprescritíveis). Se por lei têm que ser respeitados (por exemplo, pelas Constituições), eles acreditam que não foram feitos para todos.
7 – Os processos de empobrecimento são oriundos de uma sociedade injusta. As sociedades injustas negam a universalidade, a invisibilidade, a imprescritibilidade dos direitos à vida e cidadania e o acesso tem que ser seletivo e condicionado segundo regras e critérios estabelecidos pelos grupos dominantes.
8 – A luta contra a pobreza (o empobrecimento) é necessariamente a luta contra a riqueza desigual, injusta e predatória (o enriquecimento).
9 – O “planeta dos empobrecidos” é mais povoado pela erosão e mercantilização dos bens comuns a partir dos anos 70. Para os grupos dominantes, o valor individual é o mais importante. Reduziram tudo a “recurso” (incluído o “recurso humano”), mercantilizado de forma que o “direito à existência” depende de sua contribuição à produção de riqueza pelo capital privado. Por isso, o trabalho, a educação, a proteção social foram tratados como “gastos”, e por isso é preciso racionalizar, cortar e privatizar. Não há comunidades humanas, apenas mercantis, não há direitos coletivos, apenas poder aquisitivo, não há solidariedade, apenas competência e, lamentavelmente, não há cooperação e mutualismo, apenas “guerra” por recursos, para suas próprias seguranças energética, hídrica e alimentar.
10 – Hoje em dia, a pobreza é uma das formas mais avançadas de escravidão, baseada no “roubo de humanidade e futuro” .
11 – Para livrar a sociedade do empobrecimento é preciso “ilegalizar” as leis, instituições e práticas sociais coletivas que geram e alimentam o empobrecimento em níveis local, nacional e mundial.
Luis Infanti de la Mora
Vigário Apostólico de Aysén, Chile