Democracia e direito
Democracia e direito
Gregorio DIONIS
A democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo. Como sistema, é então aquele que permite recolher a forma pluralista de qualquer tipo de sociedade, entendida esta no sentido de nação e estado.
Uma condição necessária para que um sistema assim queira funcionar é que exista uma separação de poderes, isto é, que existam, ao menos, o poder legislativo, o executivo e o judiciário, e que estes sejam regidos pelo princípio de separação de poderes.
Na América Latina a república presidencialista tem sido o modelo mais utilizado, o qual tem sua origem no modelo da revolução norte-americana e da revolução francesa, sendo Francisco de Miranda e Tom Paine os que uniram ambas as revoluções.
Tom Paine foi deputado durante a revolução francesa e é famoso por ter sido o encarregado de dar resposta ao conservador Burke, que se opunha à democracia popular da revolução francesa. O livro – que foi a resposta não só ao mundo conservador, mas também ao absolutismo – se chamou “Os Direitos do Homem” , e é um livro imprescindível na defesa dos direitos civis e do pacifismo ativo apesar de que foi escrito faz já mais de duzentos anos.
Francisco de Miranda foi militar durante a revolução americana e depois general nos exércitos da revolução francesa. Intelectual de idéias profundas e grande estrategista. Ele morreu preso no cárcere de Cádiz na Espanha. É o primeiro grande preso político por causa da defesa da liberdade na América Latina e é também o primeiro que apresenta a questão das liberdades civis e da democracia.
A democracia, é, portanto, um sistema muito conhecido e especialmente estimado pelas massas populares na América Latina, mas seus limites têm estado em que as classes oligárquicas exercem o poder rompendo o equilíbrio necessário para que o povo se expresse livremente e seus representantes eleitos respeitem o mandato de seus eleitores e, mais ainda, governem para o e pelo povo.
As liberdades civis e os direitos humanos são condições necessárias para confirmar que um sistema democrático funciona como tal, e a liberdade, para sê-lo, necessita de uma educação livre, de segurança social universal, de controle dos bens de propriedade do Estado, tais como as matérias primas, hidrocarbonetos e aqueles meios técnicos e científicos necessários para conseguir uma república de iguais que garanta a inclusão social e cultural.
Estado de exceção e de controle político social
Mas também existem governos eleitos que decidem atuar de forma contrária aos interesses de seu povo e, muitas vezes, inclusive contrária a seu próprio mandato eleitoral. Estes governos, que decidiram esquecer a defesa dos interesses gerais, tem ainda um limite que romper, a saber, o direito internacional e o direito internacional de direitos humanos, que, com certas limitações, impõem condições legais que deveriam ser, e que são, de cumprimento estrito.
Geralmente estes dirigentes políticos, militares ou religiosos utilizam o conceito de estado de exceção ou inclusive de ilegalidade.
O estado de exceção é um conceito surgido do direito absolutista espanhol e, portanto, muito enraizado na cultura latino-americana. É um conceito amplo que facilita os golpes de estado sem necessidade de mudar a constituição.
Na Alemanha de Hitler foi representado pela doutrina de Carl Schmitt e permitiu a existência de “dois estados”, o existente e um regime de exceção permanente, sem necessidade sequer de modificar a constituição.
Este modelo de teoria do estado foi utilizado pelos governos de segurança nacional do Chile, Argentina, Uruguai e Guatemala, entre outros, e é desde esta concepção de onde se planeja e organiza um plano de extermínio sistemático de população civil como forma de controle político e social.
Contudo, este conceito também pode ser utilizado na democracia, e então nos encontramos com presidentes eleitos ou governos que atuam com leis de emergência, com leis que se originam no executivo ou na presidência e que não passam pelos parlamentares.
Esta ferramenta foi usada amplamente com os TLC (Tratado de Livre Comércio): Estados Unidos declara, como secreta, toda a documentação e esta é ocultada dos parlamentares e, muitas vezes, nem sequer é conhecida pelas equipes de negociadores.
Também foi utilizada amplamente nos denominados processos de privatização, nos quais foram passadas a mãos privadas enormes empresas, normalmente de recursos naturais (petróleo, gás, minérios, etc.) e para isto se usou a via da legislação de exceção; para evitar os protestos e o bloqueio do processo privatizante se dita uma lei de exceção que não passa pelo parlamento, ou inclusive, como no caso da Argentina, a leis secretas, que não eram publicadas no Diário Oficial.
E depois do ocorrido no dia 11 de setembro (nos EUA) estamos sofrendo a mais bem elaborada tentativa de estado de exceção mundial, para enganar não a um parlamento, senão ao direito internacional e, necessariamente, ao sistema das Nações Unidas.
Encontramo-nos frente a governos que decidiram violar o direito internacional e utilizar a força fora de seus próprios parlamentos e fora da ONU.
Os direitos como suporte da democracia
A construção de modelos democráticos de solidariedade social, de integração social, de eliminação da pobreza, de distribuição da terra, de educação para todos, de saúde para todos, têm que ser a base de qualquer governo que cumpra com o princípio de governar com o povo e para o povo.
Da mesma maneira deve ser garantida a propriedade social das terras comunitárias e originárias dos indígenas, assim como de todos os recursos naturais que afetam a vida como direito humano elementar: bacias hidrográficas, aqüíferos, bosques, etc.
Impunidade dos crimes contra os direitos
É trágico ver como existem economistas bem graduados que são capazes de defender modelos econômicos baseados na violação sistemática dos direitos civis e políticos. Muitos deles, além disso, crêem que estão usando as idéias de Adam Smith e sua “mão invisível”, sem saber que, na sua época, este homem defendeu justamente o contrário e significou precisamente uma tentativa de racionalizar a modernidade.
O que acontece é que utilizam a economia como instrumento ideológico frente às liberdades. Deixaram de pertencer à coletividade científica baseada na utilidade para o bem comum para converter-se em instrumentos das correntes mais reacionárias já havidas depois da revolução francesa.
Estes modelos que substituem as liberdades pela eficiência da curva da oferta-procura são complementares ao uso das doutrinas irracionais derivadas do discurso conservador. E uma vez postas em andamento não têm mais saída que a violação sistemática dos direitos civis e políticos.
Para esses economistas a impunidade não é uma conseqüência da violação dos direitos humanos: é simplesmente uma necessidade do mercado. O desarmamento dos instrumentos e organismos que estão na base da livre determinação dos cidadãos de um país, se converte em condição necessária deste modelo. Para ele é imprescindível romper a estrutura familiar para que uma família indígena esqueça de suas tradições culturais; é imprescindível romper a estrutura sindical que defende a dignidade de seus representados; é imprescindível romper a estrutura dos organismos de direitos humanos que têm sido porta-vozes do discurso da modernidade; é imprescindível romper a estrutura social que permite que os mais desfavorecidos se expressem publicamente de forma coerente e racional, para isto é necessário que os sistemas educativos não sejam elaborados a partir destes supostos de liberdade, solidariedade e fraternidade; é imprescindível que a racionalidade seja substituída pela lei da oferta e da procura, pela lei do mais forte, e, definitivamente, pela lei da selva.
Se deixarmos que sejam implantados definitivamente os modelos de impunidade na América Latina, na África, na Europa... correremos o risco seguro de perder as liberdades que o Pacto Internacional de Direitos, tanto Civis e Políticos, quanto Econômicos, Sociais e Culturais pretendeu universalizar.
E isto é assim porque, como dizia Jeremy Bentham, “do poder de perdoar sem limites surge a impunidade da delinqüência em todas as suas formas, da impunidade da delinqüência em todas as suas formas, a impunidade de todas as formas de maldade, da impunidade de todas as formas de maldade, a decomposição dos governos, da decomposição dos governos a decomposição política da sociedade”.
Por isso é tão importante a mobilização social, o associativismo, o cooperativismo e toda forma de organização social que permita fazer frente às políticas neoliberais e aos modelos de impunidade e de controle político e social.
Creio que ainda não têm conseguido impor um modelo definitivo. Contudo, existem milhões de seres humanos livres que desejam impedir que estes modelos de impunidade sejam universalizados. Ainda não humilharam a memória da humanidade de forma definitiva. Por isso é um grave erro admitir a limitação do direito à justiça, do direito à verdade, assim como de todo atentado sistemático contra as liberdades e os direitos humanos.
Restaurar os direitos civis e políticos e os derivados dos econômicos e sociais significa devolvê-los a liberdade aos nossos filhos e netos.
O contrário é aceitar os princípios maquiavélicos de que o fim justifica os meios e o princípio mais bem trabalhado de estado de exceção mundial, pelo qual o mundo político e social perde toda a conexão com o sistema de liberdades civis e de direitos humanos.
Gregorio DIONIS
Madri, Espanha