Democracia ecológico-social
Democracia ecológico-social
Leonardo BOFF
A democracia é um ideal e uma realidade. Um ideal com as características da utopia e, por isso, sempre aberta para cima e para frente e, no termo, inalcansável. É uma realidade naquelas sociedades que tentam concretizar o ideal nas condições histórico-sociais-ecológicas possíveis e, por isso, sempre limitada. Entre o ideal e a realidade se dá o processo de construção permanente da democracia, na medida em que se amplia a cidadania e o empoderamento dos cidadãos. Quanto mais esses dois valores forem potenciados, mais e mais haverá democracia e se garantirá sua sustentabilidade.
1. Novo ideal democrático
O pressuposto básico de toda democracia é esse: o que interessa a todos deve poder ser decidido por todos, seja diretamente, seja por representantes. Como se depreende, democracia não convive com a exclusão. Na maioria dos paises latino-americanos onde existem grandes maiorias marginalizadas e excluídas -no Brasil são 50 milhões-, a democracia apresenta traços de irrealidade. Não obstante, propugna-se por democracia enriquecida, especialmente nos movimentos sociais de base, proclamando o ideal: uma sociedade na qual todos possam caber, a natureza incluída. Portanto, pretende-se uma democracia mais que delegatícia e representativa, mas uma democracia inclusiva, como valor universal, participativa e ecológico-social.
Esse último aspecto, o ecológico-social, merece ser aprofundado, pois representa um ponto de enriquecimento em nossa compreensão habitual da democracia. Ele nos obriga a superar um limite interno ao discurso clássico da democracia: o fato de ser ainda antropocêntrica, centrada apenas nos seres humanos, como cidadãos.
O antropocentrismo é um equívoco, pois o ser humano não é um centro exclusivo, como se todos os demais seres somente ganhassem sentido enquanto ordenados a ele. Ele é um elo, entre outros, da corrente da vida. Todos os seres vivos são parentes entre si, primos e primas e irmãos e irmãs pois todos possuem o mesmo código genético de base: as quatro bases fosfatadas e os 20 aminiácidos.
Sem as relações com a biosfera, com o meio-ambiente e com as precondições físico-químicas o ser humano não existe nem subsiste. Elementos tão importantes devem ser incluídos em nossa compreensão de democracia contemporânea na era da conscientização ecológica e planetária. Segundo ela, natureza e ser humano estão indossoluvelmente unidos de sorte que possuem um mesmo destino comum.
2. Democracia e cosmologia contemporânea
A perspectiva ecológico-social tem, ademais, o condão de inserir a democracia na lógica geral das coisas. Sabemos hoje pelas ciências da Terra que a lei básica que continua atuando na constituição do universo e de todos os eco-sistemas é a sinergia, a simbiose e a relação de todos com todos em todos os momentos e circunstâncias. Mesmo a sobrevivência do mais forte pela seleção natural de Darwin, em parte válida no reino dos vivos, inscreve-se dentro desta lei universal. Por ela se garante a diversidade e se inclui também o mais fraco que no jogo das inter-retro-relações tem chances de sobreviver.
A singulariedade do ser humano, dizem renomados antropólogos, como os chilenos Maturana e Varela, consiste no fato de comparecer como ser de socialidade, de cooperação e de convivialidade.Tal singularidade aparece melhor quando o comparamos com os símios superiores dos quais nos diferenciamos em apenas 1,6% da carga genética. Estes também possuem vida societária. Mas se orientam pela lógica da dominação e da hierarquização.
Ao surgir o ser humano, há alguns milhões de anos, ao invés da competitividade e da subjugação entra a funcionar a cooperação. Concretamente, nossos ancestrais humanóides saíam para caçar, traziam os alimentos, e os repartiam socialmente entre eles. Esse 1,6% de ácidos nucléicos e de bases fosfatadas que nos diferencia, funda o humano enquanto humano, como ser de cooperação.
Ora, a democracia é o valor e o regime de convivência que melhor se adapta à natureza humana cooperativa e societária. Aquilo que vem inscrito em sua natureza é transformado em projeto político-social consciente, fundamento da democracia: a cooperação e a solidariedade sem restrições. Realizar a democracia, da melhor forma que pudermos, significa avançar mais e mais para o reino do especificamente humano. Significa re-ligar-se também mais profundamente com o todo e com a Terra que são sustentadas também pelo princípio da cooperação.
3. Novos cidadãos: os seres da natureza
Cosmólogos vêm afirmando com insistência que há de se entender a vida como um momento da história evolutiva do universo, quando a matéria, colocada longe de seu equilíbrio, se complexifica e se auto-organiza. A vida humana é um capítulo da história da vida. Como humanos, consoante o mito antigo do cuidado, viemos do húmus (humus=homo); por isso somos fundamentalmente Terra que em seu evoluir chega ao momento de sentir, de pensar, de amar e de venerar. Não vivemos apenas sobre a Terra. Somos filhos e filhas da Terra. Melhor, somos a própria Terra que sente, pensa, ama e venera. Em razão disso, notáveis astrofísicos e biólogos como Lovelock, Mergullis, Sathouri, Swimme e Berry entre outros, sustentam que a Terra é um super-organismo vivo. Mostra tal equilíbrio em todos os seus elementos físico-químicos que somente um ser vivo pode revelar. Chamam-na de Gaia, nome mitológico dos gregos para sinalizar a Terra como vivente, ou como Magna Mater e Pacha Mama de nossos indégenas latino-americanos.
Se assim é, então a Terra é portadora de subjetividade, de direitos e de relativa autonomia, tanto ela, quanto os eco-sistemas que a compõem. Há a dignitas Terrae, a dignidade da Terra que reclama respeito e veneração.
Impõe-se ampliação da personalidade jurídica à Terra, às aguas e às florestas. Bem disse o pensador das ciências francês Michel Serres: «A Declaração dos Direitos do Homem teve o mérito de dizer “todos os homens têm direitos” e o defeito de pensar “só” os homens têm direitos». Os indígenas, os escravos e as mulheres tiverem que lutar para serem incluídos em «todos os homens». E hoje esta luta inclui a Terra e a inteira natureza com seus subsistemas, também sujeitos de direitos e, por isso, novos membros da sociedade ampliada.
Criamos uma máquina de morte, capaz de destruir a espécie humana e grande parte da vida da Terra-Gaia. Por isso, não podemos mais excluí-la do novo pacto social planetário, base da sociedade mundial que queremos democrática. Hobbes, Locke, Rousseau e Kant partiam do pressuposto de que o futuro da Terra estava garantido pelas forças diretivas do universo. Hoje não é mais assim. Devastada Gaia, não há mais base para nenhum tipo de cidadania e de democracia. Se quisermos sobreviver juntos, a democracia tem de ser também biocracia e cosmocracia, numa palavra: democracia ecológico-social que assume a preservação da Terra, incluindo-a no pacto social.
Foi em razão desta consciência que governos atentos ao cuidado ecológico (como o Governo do Estado do Acre no Brasil), criaram a expressão florestania. Por ela se quer sinalizar uma nova forma de relação do cidadão, habitante da floresta. Convive com a floresta, como um novo cidadão, vive de sua biodiversidade, sem agredi-la ou extenuar sua riqueza. Da mesma forma, o movimento da agroecologia está desenvolvendo semelhante compreensão da florestania. Aí se trata de uma nova relação interativa do homem com a natureza na qual ambos se vêem incluídos e respeitados. Poder-se-ia falar então de ecoagriculturania.
Uma cidade não vive apenas de cidadãos, instituições e serviços sociais. Nela, vivem também paisagens, árvores, pássaros, animais, montanhas, pedras, águas, rios, lagos, mares, atmosfera, ar, estrelas no firmamento, o sol e a lua. Sem tais realidades morreríamos de solidão,como diz o sábio indígena Seattle em 1854. São os novos cidadãos com os quais devemos aprender a conviver em harmonia. Faz-se mister uma educação ecológica para que os humanos aprendam a acolher todos os seres como con-cidadãos, no respeito, na justa relação e na irmandade universal. Eis o surgir da democracia ecológico-social, enriquecimento necessário da democracia clássica em tempos de nova consciência ecológica e de responsabilidade pelo futuro comum da Terra e da Humanidade.
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O número de espécies animais e plantas em perigo de extinção, em 2006, é já de 16.119, «um de cada três anfíbios, e uma quarta parte das árvores coníferas do mundo, a mais de uma de cada oito aves e um de cada quatro mamíferos».
O crescimento da concentração de CO2 pode ser mais destrutivo que a deflorestação. As zonas mais afetadas serão a região do Cabo (Suráfrica), as bacias do Caribe e do Mediterráneo e os Andes tropicais, que perderão 3.000 espécies de plantas. No Caribe, Indochina-Birmânia e os Andes tropicais desaparecerão 200 espécies de vertebrados.
O urso polar, Ursus maritimus, será uma das vítimas mais notórias do aquecimento planetário, dado que o fenômeno «sente-se sempre mais nas regiões polares, onde o gelo marino do verão se verá reduzido entre 50 e 100% nos próximos 50 - 100 anos». A população dos ursos polares diminuirá 30% nos próximos 45 anos.
56% das 252 espécies de peixes do Mediterrâneo e o 28% das da África do Leste estão em perigo de extinção. «As espécies marinhas estão tão expostas à extinção como seus parceiros terrestres».
O incremento de CO2 (em menos de um século duplicará) e o correspondente aquecimento planetário fará desaparecer 56.000 plantas e 3.700 vertebrados: 40% nas zonas mais ameaçadas do Planeta.
(Dados da UMCN, União Mundial para a Conservação da Natureza, que agrupa 81 Estados).
Leonardo BOFF
Da Comíaso da Carta da Terra, Brasil