Democracia na Igreja

Democracia na Igreja

Andrés TORES QUEIRUGA


«Outra democracia é possível. Para que esse mundo, ferido, desconcertado e ainda impenitentemente sonhador, seja de verdade casa feliz de uma Humanidade fraterna». São palavras de Casaldáliga na introdução desta Agenda. E acrescenta: «e nós a exigimos como um direito fundamental das pessoas e dos povos, em todas as latitudes». Mas, é legítima, e, portanto possível, também para a religião?

Com sua voz humilde, e por humildade profética, ele o afirma com palavras que reconhecendo as falhas, não renunciam à audácia evangélica: «Para que a religião não seja um grande inimigo da democracia, como freqüentemente tem sido e ainda o é, até Deus deve ser ‘democratizado’ de outro modo».

Deus, sim, sem dúvida alguma, porque Ele é amor, e, portanto humildade e serviço. Já são João da Cruz, falando da «alma», tinha ousado dizer que Deus «se submete a ela (...), como se Ele fosse seu servo e ela fosse seu senhor, e é tão solícito em alegrá-la, como se Ele fosse escravo e ela fosse seu Deus. Tão profunda é a humildade e doçura de Deus!» (Cântico 27,1).

Mas, também a Igreja? Pode a Igreja ser democrática? Jesus de Nazaré, se tomamos a sério suas palavras limpas e concretas, respondeu que sim, sem lugar a dúvidas: «Sabeis que os que são considerados chefes das nações dominam sobre elas e os seus intendentes exercem poder sobre elas. Entre vós, porém, não será assim: todo o que quiser tornar-se grande entre vós, seja o vosso servo; e todo o que entre vós quiser ser o primeiro, seja escravo de todos. Porque o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em redenção por muitos» (Mc 10,42-45; cf. Mt 20,25-28; Lc 22,25-27).

Pode alguém duvidar honestamente de que aqui se está convocando ao mais radical e decidido espírito democrático?

É claro que a comunidade do Senhor recebe o encargo de tornar presente este espírito no mundo. De sorte que, como se Jesus previsse os duros limites e as terríveis perversões a que a democracia estaria sempre exposta às que, por desgraça, sucumbiria tantas vezes - repassadas as queixas de Casaldáliga -, insta à Igreja a ser fermento crítico e testemunha insubornável desses valores. Pois é deles que se trata, definitivamente, e não de formalismos definitórios.

O que aconteceu então, para que muitos - até em demasia - prossigam afirmando que a Igreja não é nem pode ser democrática?

Não cabe aqui negar que nesta negação tem influenciado terrivelmente a dinâmica do poder, que, desde os conflitos entre os próprios apóstolos e as rivalidades entre as primeiras igrejas, até muitos funcionamentos eclesiásticos atuais, continuam contaminando nossa percepção e tentando nosso desejo de honestidade. Mas o que lhe confere força e a protege com manto ideológico e inclusive com aparência piedosa, é uma hermenêutica que, sem malicia de ninguém, impediu e continua impedindo de atualizar eficazmente o mandato de Jesus.

Uma frase paulina teve nisto uma influência decisiva: «Não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem por Deus foram constituídas» (Rm 13,1). Um literalismo bíblico e uma concepção sacramental verticalista e «milagreira» levaram a uma interpretação abstrata e extracomunitária: na Igreja, através da imposição das mãos, a autoridade cairia vertical do céu sobre o eleito, em pura descida hierárquica. Desse modo, haveria somente dependência «para cima»: do sacerdote ao bispo, do bispo ao papa, e do papa... a Deus. A comunidade nada teria que dizer.

Assim interpretaram-no, encantados, também os reis e os imperadores: «O trono régio não é o trono de um homem, mas o trono do próprio Deus». Isto o escreveu o nada menos que o Cardeal Bossuet, aplicando-o ao rei da França. E Jaime I da Inglaterra soube tirar as conseqüências: «o estado da monarquia é a coisa suprema sobre a face da terra, porque os reis não são somente lugares-tenente de Deus sobre a terra e se sentam sobre o trono de Deus, mas que ainda o próprio Deus lhes chama deuses». O passo seguinte era óbvio: «não é lícito que se discuta o que concerne ao mistério - note-se a palavra, sublinhada por mim - do poder régio, porque isso seria reconhecer que os princípios erram, e abandonaríamos assim a reverência mística dedicada aos que se sentam no trono de Deus».

Seguramente como Igreja nos assombra ler estes absurdos ditos sobre os reis. Mas seríamos ingênuos se não advertíssemos que essa é exatamente a sensação de muitos que, de fora da Igreja, lêem hoje afirmações não muito diferentes em certas eclesiologias com respeito à autoridade dentro da Igreja; em concreto, da autoridade papal.

E o curioso é que, com respeito aos reis, a sociedade civil, encabeçada pelos teólogos (Suárez, por exemplo, polemizando com Jaime I), aprovados e apoiados pela hierarquia, compreenderam o fundamental. A saber, que o fato verdadeiro de que a autoridade vem de Deus, não exclui à sociedade, senão que a inclui: vem de Deus, mas através da sociedade. Pois bem, já é hora de que, por estrita fidelidade ao Evangelho, façamos o mesmo na Igreja: a autoridade hierárquica vem de Deus, mas através da comunidade.

Por sorte, o Vaticano II já colocou a base fundamental, e por algo se tem falado de «revolução copernicana». A Lumen Gentium, dando uma volta de 180 graus ao modelo pré-conciliar, assenta o «mistério da Igreja» (cap. I) em seu caráter primeiro e radical de «povo de Deus» (cap. II), e somente depois, já dentro dessa base comum, estuda sua «constituição hierárquica» (cap. III). Potencia assim uma «eclesiologia de comunhão» e deixa patente que todos os ministérios nascem já do seio da Igreja, que, enquanto habitada e movida pelo Espírito, os faz surgir de si ao serviço da realização de seu ser e de sua missão.

Yves Congar, estando ainda recente o Concílio, escreveu: «A expressão ‘povo de Deus’ encerra tal densidade, tal seiva, que é impossível empregá-la para designar essa realidade que é a Igreja, sem que o pensamento se veja envolvido em determinadas perspectivas. Enquanto ao lugar destinado a este capítulo, é conhecido o alcance doutrinal - com freqüência decisivo - da ordem posta nas questões e do lugar concedido a cada uma delas. (...) Tem-se continuado (...) a seqüência de Mistério da Igreja, Povo de Deus, Hierarquia. Assim se colocava como valor primeiro a qualidade de discípulo, a dignidade inerente à existência cristã como tal ou a realidade de uma ontologia da graça, e depois, no interior dessa realidade, uma estrutura hierárquica de organização social». Já se vê que falar assim, não questiona nem a eficácia sacramental nem, obviamente, a constituição divina da Igreja. Trata-se tão somente de reinterpretar e reorganizar o modo de seu funcionamento e exercício ao serviço efetivo do Reino na concretude da história humana.

Por isso, tampouco tem sentido uma objeção muito prolongada: a Igreja, afirma-se, não é dona da verdade divina, que, portanto, não pode ser «objeto de votação democrática». Mas, não se trata disso. Ao contrário, justamente porque a Igreja não é dona da verdade, deve buscá-la por todos os meios. E historicamente está demonstrado que, com todas as suas limitações, a busca democrática é muito mais eficaz e a mais livre das manipulações - conscientes ou inconscientes - do poder. Longe, pois de tornar-se dona da verdade, a colaboração de toda a comunidade constitui a maneira mais verdadeira e humilde de obediência ao Espírito.

Realmente, quando, para além das palavras, olha-se o espírito e por trás dos jurisdicismos se pensa nos valores, compreende-se que, inclusive as discussões terminológicas carecem de valor. Se alguém continua pensando que usar a palavra «democracia» com respeito à Igreja, pode ameaçar ou obscurecer a confissão de seu mistério, que busque em boa hora outros símbolos ou conceitos. Mas nunca para rebaixar o chamado de Jesus aos valores reais de humildade e serviço de participação e direitos. Isto é, se for mudada a terminologia, que não seja para baixo, enfraquecendo o Evangelho. A mudança somente poderá ser apostando para cima: se não for «democracia», então seja muito mais que democracia.

Que esta «outra democracia» na Igreja é possível, pode ver-se de modo intuitivo em uma citação de João XXIII, falando da sociedade civil. Basta pôr simplesmente «Igreja» no lugar de «nação» e «fiéis» no lugar de «homens», para ver a profunda legitimidade de uma nova visão: «do fato de que a autoridade provém de Deus não deve de modo nenhum se deduzir que os fiéis não tenham direitos a escolher os governantes da Igreja, estabelecer a forma de governo e determinar os procedimentos e os limites no exercício da autoridade. Daqui que a doutrina que acabamos de expor possa conciliar-se com qualquer classe de regime autenticamente democrático» (Pacem in Terris, 52).

Não faz falta discorrer muito para ver quanto ganharia a Igreja, em fidelidade ao Senhor e em serviço à humanidade, se entre todos fôssemos conseguindo que se levasse a sério e se pusesse em prática esta profunda verdade. Verdade somente em aparência inovadora, porque na límpida transparência de fundo se revela como puro Evangelho.

 

Andrés TORES QUEIRUGA

Santiago de Compostela, Espanha