Democracia paritária

Democracia paritária

Alda Facio


Em 1981, a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW – na sigla em inglês) especificou, para a metade da humanidade que havia sido excluída, as obrigações dos Estados acerca da garantia da participação igualitária de suas cidadãs nas práticas e decisões políticas. Estas obrigações já estavam previstas nos artigos 2º, 3º e 25º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Contudo, como não se entendia que estes artigos incluíssem as mulheres, foi necessário redigir o artigo 7º da CEDAW, que não deixa dúvida sobre o direito das mulheres à participação na vida política em igualdade de condições com os homens.

Com a CEDAW em mãos, o Movimento Feminista pôde convencer a comunidade internacional que era indispensável tornar efetivo o direito das mulheres à participação política para alcançar a eliminação da descriminação. Muitos Estados responderam implementando diversas medidas, que aumentaram substancialmente essa participação nas décadas seguintes.

Em 1993, as delegadas e os delegados oficiais da Conferência Mundial de Direitos Humanos cederam à pressão exercida por mulheres do mundo inteiro para que se estabelecesse no documento final – a Declaração e o Programa de Ação de Viena –, o reconhecimento dos direitos da mulher como Direitos Humanos, que inclui o Direito Humano à participação nas decisões públicas.

Em 1995, a Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher e seu documento final – a Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim –, se converteram nos catalisadores para que os governos de todo o mundo estabelecessem cotas de representação política das mulheres, propiciando que a média mundial desta representação dobrasse em menos de duas décadas.

Apesar deste aumento numérico e do crescente reconhecimento de que não se pode chamar de democrática uma sociedade em que homens e mulheres não compartilhem a tomada de decisões políticas e seus interesses não sejam levados em conta por igual, as inúmeras barreiras econômicas, sociais, religiosas e culturais com as quais ainda se enfrentam as mulheres, seguem limitando seriamente esta participação. Nem sequer as democracias historicamente estáveis puderam integrar plenamente, e em condições de igualdade, as opiniões e os interesses da metade feminina da população.

Por isso, é tão importante reconhecer que a eliminação das barreiras jurídicas que impediam – e, em alguns países, ainda impedem – a participação das mulheres, ainda que necessária, não é suficiente. A falta de uma participação plena e igualitária das mulheres nem sempre é deliberada, mas obedece a práticas e estereótipos inconscientes que, de maneira indireta, promovem o homem ou facilitam sua participação em detrimento das mulheres. É por isso que o artigo 4º da CEDAW estimula a adoção de medidas especiais de caráter transitório (“ações afirmativas”), para o pleno cumprimento de seu artigo 7º. E mais, eu diria que para superar séculos de dominação masculina na vida pública e acelerar a conquista da igualdade, os Estados tem a obrigação de implementar estas medidas especiais de caráter transitório. Estas devem orientar-se claramente para apoiar a igualdade substantiva, que não se reduz ao tratamento idêntico entre homens e mulheres, mas requer a implementação de todas e cada uma das medidas que sejam necessárias para alcançar essa igualdade. Assim, cumprir com os princípios constitucionais que garantem a igualdade entre todos cidadãos e todas cidadãs.

É importante distinguir claramente entre as medidas especiais de caráter transitório, para acelerar a conquista de objetivos concretos relacionados com a participação igualitária de mulheres e homens em espaços de poder, e outras políticas sociais gerais adotadas para melhorar a situação da mulher, para que possa participar em condições de igualdade. Nem todas as medidas que possam ser, ou que serão, favoráveis às mulheres, são medidas especiais de caráter transitório. O estabelecimento de condições gerais, que garantam os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais das mulheres e tenham como objetivo assegurar para elas uma vida digna e sem discriminação, não podem ser consideradas medidas especiais de caráter transitório.

Depois das duas Conferências já mencionadas, juntamente com a implementação de cotas, se começou a falar de “paridade”, entendida como uma participação equilibrada de mulheres e homens nas posições de poder e de tomada de decisões em todas as esferas da vida. Participação que constitui um indicador da qualidade democrática dos países, integrando-se este dado em diversos índices internacionais.

Mas, assim como muitas pessoas nunca entenderam o porquê das cotas ou seu funcionamento, acreditando que eram limites máximos para a participação das mulheres, ao invés de mínimos, muitas pessoas confundiram – e ainda confundem – o conceito de “cotas” com o conceito de “paridade”. As cotas são exemplos do que a CEDAW chama de “medidas especiais de caráter transitório”, que buscam dar resposta ao desequilíbrio de gênero nos órgãos de tomada de decisões. Com sua implementação, busca-se criar um mecanismo que garanta a integração das mulheres nos órgãos de decisão, através do estabelecimento de percentuais mínimos de participação feminina nestes espaços. Como seu nome indica, são medidas transitórias, que se tornam desnecessárias uma vez que sejam eliminadas as barreiras culturais e sociais que impedem as mulheres de participar destes espaços em condições de igualdade com os homens.

A paridade não é uma medida especial de caráter transitório, mas justamente uma medida, dentre muitas, para assegurar condições de igualdade de participação na tomada de decisões. Como afirma a destacada cientista política Beatriz Llanos, “a paridade é uma medida definitiva, que reformula a concepção do poder político, redefinindo-o como um espaço que deve ser partilhado igualitariamente entre homens e mulheres. Portanto, incide no resultado desde a sua própria concepção, não só na oferta eleitoral, como ocorre com as cotas”.

A paridade exige não só o reconhecimento de que o conceito de cidadania não é neutro, mas também o entendimento de, devido a este ser composto de homens e mulheres, ambos devem estar representados em percentuais similares no sistema político. Não se trata unicamente de aumentar a cota em cargos políticos a favor das mulheres, mas de reconhecer e respeitar, na prática, o direito à igualdade entre homens e mulheres. Em outras palavras, a paridade inclui o aumento quantitativo das mulheres nos espaços políticos, mas também acarreta uma mudança nos modos de fazer política, construindo uma nova cultura política.

Apesar de décadas de esforços para institucionalizar tanto as cotas quanto a paridade, em 2011 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) observou que “os avanços na representação política das mulheres nos distintos âmbitos de governo” ainda eram “desiguais” e “lentos” nas Américas. Ainda pior, nos últimos anos estamos vivendo sérios retrocessos em nome da cultura, da religião ou das tradições e em todas as regiões do mundo se verifica a intenção de fazer desaparecer novamente a sujeita “mulher”, igualando-a com a família; substituindo os órgãos públicos ou institutos da mulher, que foram construídos com tanta dificuldade na década de 1990, por órgãos públicos ou institutos da família; legislando para que a família seja mais protegida do que o direito das mulheres viverem livres de violência; e revogando as leis de cotas de participação feminina, com argumentação de que já não são mais necessárias. Menciono isso, porque é muito difícil buscar a igualdade na participação política e pública se nós mulheres somos invisíveis ou simplesmente não existimos como sujeitas de direito Ou, ainda, se temos que participar em condições de muita violência de gênero contra nós.

Para combater estes e tantos outros retrocessos no âmbito dos Direitos Humanos das mulheres, creio ser importante estudar e utilizar a CEDAW e suas Recomendações Gerais, que dizem como se deve interpretar a convenção. Mas, além de combater estes retrocessos, é importante criar a compreensão de que, sem as mulheres, a democracia não será democracia.

 

Alda Facio
San José, Costa Rica