DESAFIOS PARA UMA AGENDA LATINO-AMERICANA MUNDIAL
João Pedro Stédile e Frei Betto
Vivemos uma crise mundial do capitalismo. Crise estrutural e
profunda comparada às que ocorreram no século 19 e na década 1920-1930.
A crise econômica se agrava, porque agora o capitalismo é global
e domina todo planeta. O que muitos denominam globalização é, de
fato, globocolonização. As economias não crescem, há uma superprodução de
mercadorias, e o povo não tem dinheiro para comprar. Isso tudo porque o
capitalismo é dominado por sua forma financeira e rentista. As grandes
corporações e os bancos acumulam mais na especulação e nos ganhos com
juros. Nem mais precisam explorar toda mão-de-obra disponível. Com as
novas tecnologias, agora as pessoas são descartáveis. O desemprego tende a
se ampliar e as futuras gerações carecem de perspectivas de trabalho.
A crise virou social, porque joga todo peso sobre os trabalhadores.
Nunca tivemos tanto desemprego, que beira a 1 bilhão de trabalhadores em
todo mundo; tanta migração, e pessoas sem casa e sem futuro. Segundo a
FAO, quase 1 bilhão de pessoas passam fome todos os dias.
Há uma crise da democracia liberal. O povo não acredita mais na
democracia burguesa, formal, de eleições, manipuladas por mil mecanismos
de mentiras, por caixa-dois, por algoritmos controlados pelas gigantes da
Internet (Google, Facebook etc.). Mesmo na “politizada” Europa, apenas 50%
dos eleitores votaram nas eleições europeias de 2019. O estado virou de
exceção. É progressivamente privatizado. Não mais para garantir direitos para
todos, mas sim privilégios da elite. Políticos cedem lugar a empresários
(Trump, Macron, Macri etc.). Daí a sua crise de representação.
Há também uma crise de valores. O capitalismo, na chamada pósmodernidade, prega e defende apenas o individualismo, o egoísmo e o
consumismo, como se fossem valores de convivência social. Mas eles
representam o antissocial. O anticoletivo. Não é possível ter sociedades
baseadas nesses critérios. A história da humanidade vem sendo construída
com base na busca constante da prática dos valores da igualdade e da
solidariedade entre todos, e da justiça social. Justamente o contrário do que
propõe o capitalismo.
Tudo isso comprova que o capitalismo não significa mais
progresso e solução para a humanidade. “O capitalismo e o mercado
representam apenas o lucro para algumas poucas empresas e, portanto, não
resolvem os problemas sociais e devem ser condenados”, disse o Papa
Francisco.
O nosso continente latino-americano está inserido, de forma
subordinada, nessa hegemonia do capital internacional e financeiro, dominado
pelos bancos e empresas transnacionais. Por isso, somos, com a África, os
dois continentes mais explorados e dominados pelo capital internacional.
Nas outras crises estruturais, o capital apelou para as guerras
como forma de destruir o capital acumulado e a mão-de-obra (é assim que
eles tratam os seres humanos...) e, com isso, os períodos pós-guerra,
independentemente do país vencedor, abriam sempre um novo período
promissor de acumulação do capital. Agora já não podem mais apelar para as
guerras, devido aos arsenais nucleares, porque colocariam em risco todo
planeta e os próprios capitalistas.
Assim, o plano deles é se apropriar, de forma privada, dos bens da
natureza (petróleo, minérios, água, biodiversidade, agricultura etc.) que podem
garantir uma renda extraordinária, acima da normal. Erradicar e destruir
direitos dos trabalhadores que, para eles, elevam o custo da mão-de-obra e
afetam a taxa de lucro. Daí as reformas das leis trabalhistas que, de fato,
significam cortar direitos conquistados ao longo de décadas de luta da classe
laboral.
E, ainda, privatizar os serviços públicos da educação, da saúde, do
transporte, conquistados como direitos e que, agora, se transformariam em
mercadorias. Só poderá ter acesso quem puder pagar. Privatizar as empresas
estatais dos continentes periféricos, como a América Latina, pois dão muito
lucro, e eles precisam se apropriar desses lucros.
O que fazer diante de tudo isso?
Uma agenda popular latino-americana e mundial envolve vários
desafios, não como receitas, mas como projetos a serem perseguidos e
construídos:
- O enfrentamento ao plano do capital e a conquista de mudanças
socioeconômicas necessárias somente acontecerão com
poderosos movimentos de massa. Por isso, nossa missão
é construir, permanentemente, lutas de massa contra as injustiças, na
solução de problemas sociais, de modo a consolidar um novo fortalecimento
de mobilizações populares. E, como o capital é internacional, os movimentos
de massa terão que ser também internacionalizados. Há diversas iniciativas e
motivações internacionalistas de setores sociais, como a Marcha Mundial das
Mulheres, a Via Campesina Internacional, foros de partidos e centrais
sindicais. E estamos construindo a ASSEMBLEIA INTERNACIONAL DOS
POVOS, para motivar a articulação e a luta internacionalistas.
- Precisamos recuperar a formação política, em todos os níveis: na base, nos
militantes e em nível superior. Somente a formação poderá nos dar
discernimento sobre os desafios colocados pelo capital e, assim,
construiremos projetos populares, pós-capitalistas, em níveis nacional e
internacional.
- Desenvolver novos métodos de conscientização de massa, naquilo que
chamávamos de agitação e propaganda de nossas ideias, utilizando cada vez
mais formas culturais, lúdicas, prazerosas. O povo não aguenta mais a
discurseira pedante que o reduz ao papel de escutar... E devemos nos focar
prioritariamente na juventude trabalhadora e no pobretariado, que hoje moram
nas periferias das cidades médias e grandes.
- No campo, priorizar a produção de alimentos saudáveis, baseados nas
técnicas da agroecologia, que o modelo do agronegócio do capital jamais
conseguirá produzir sem agrotóxicos e destruição da natureza.
- Construir redes digitais de comunicação, que nos permitam conectar-nos
com todos e todas, para usarmos os novos mecanismos tecnológicos a favor
das ideias progressistas, e travar a luta ideológica, central hoje na luta de
classes.
- Construir nossa prática social através de nosso exemplo, baseados sempre
na ética, na luta pela igualdade social, pela solidariedade permanente entre
todos e todas, e pela justiça social. Esse é o programa de valores capaz de
enfrentar o capital e construir uma sociedade pós-capitalista.
O povo organizado sempre derrotou seus opressores, por mais
que eles fossem poderosos e renovassem seus métodos de dominação e
opressão.
João Pedro Stédile é economista e integra a direção do MST (Movimento dos
Trabalhadores Rurais sem Terra) e a Frente Brasil Popular.
Frei Betto é escritor e assessor de movimentos populares.