Descolonizar nossa mente, regressar ao corpo, territorializar-nos!
Martha Zein
Os pequenos detalhes também falam do mundo e podem ser um minúsculo ponto de partida para uma transformação de longo alcance. Observemos nossos gestos cotidianos. Digitamos em vez de escrever à mão, multiplicamos nossos encontros virtuais em detrimento dos presenciais, usamos patinetes elétricos em vez de pernas, escutamos música em nossos fones de ouvido antes de ouvir o que acontece em nosso entorno… Estamos subindo por uma quase imperceptível escada que nos afasta do corpo e nos desconecta desse espaço comum que conhecemos como “a realidade”.
A experiência física é a fonte de um conhecimento que não vem apenas dos nossos sentidos, mas também daquilo que nossa presença no entorno gera. Quando nos ausentamos da realidade perdemos a oportunidade de saber mais sobre as causas e os efeitos, enquanto aprofundamos a fenda que separa o que dizemos do que fazemos, deixando uma grande parte de nossos atos ao abandono de nossas reflexões. Em uma escala maior, ao reduzir a conexão[1] dos nossos atos aos vínculos gerados por eles, estaremos desterritorializando nossa relação com a história e a memória dos lugares. Esquecemo-nos do que as feministas indígenas nos fazem recordar, frequentemente: o território da terra e o território do corpo andam de mãos dadas. Não poderemos reivindicar nossa soberania energética, por exemplo, sem reivindicar também nossa própria soberania física.
No entanto, nos movemos na direção oposta; nos acostumamos a contar mortos, mais do que a enterrá-los. Protegidos/as por nossos relatos, assomamos a nossos territórios espoliados como se não fizéssemos parte do que neles acontece. Assim fazemos porque o sofrimento que um dado provoca é infinitamente mais suportável, breve e substituível do que a consideração das consequências desse dano. Assim fazemos porque para narrar não é necessário pôr nossas pernas em ação, nem nossas mãos, nem sequer nossa presença. Narrar é um ato que pertence à razão – tão valorizada pela nossa cultura –, que nos liberta do corpo, mas também é capaz de gerar emoções. Ou seja, os relatos não saciam, nem tiram o frio, nem fazem com que as sementes ganhem raízes, mas permitem que não nos sintamos sozinhos nem desolados, em um mundo esgotado. Nossa hipernarratividade é tão grande como nosso dano. Em busca de uma saída, e ao mesmo tempo distantes do real, terminamos por envolver nossos territórios espoliados em um manto de relatos, acreditando que lhes damos vida quando o que fazemos é sufocá-los ainda mais.
A separação cultura/natureza, tão arraigada nas sociedades ocidentais (propiciada pelo patriarcado e agravada pelo capitalismo), chegou à sua máxima expressão, em nossa era. Para continuar espoliando a terra e suas riquezas, diante do nosso nariz, sem limite algum, para manter seu status, esta elite branca/ocidental/patriarcal/capitalista colonizou também nossas estruturas mentais, nossos valores, nossas formas de relacionamento, nossa forma de nos conceber, criando uma fábrica de relatos que saciam e que são suficientemente viciantes para que não precisemos contrastá-los com o real.
A profusão de suas narrativas tóxicas gera uma falsa sensação de que contemplamos a vida em suas múltiplas manifestações quando, na realidade, o que estamos fazendo é perpetuar a espoliação e o abandono de nossos territórios. De fato, são muitíssimo mais os atos silenciados, os que procuram alguém que se atreva a dar-lhes voz, do que os atos que narramos com frequência. Nossa hipertrofia narrativa aplaina o caminho para aqueles que lucram suplantando a realidade com relatos vinculados a atos que lhes interessam, ou sobre ações que nunca sucederam.
Não é de se estranhar que proliferem os embustes, as notícias falsas, os debates falsos, os algoritmos feitos para assassinar a realidade, os haters profissionais e as fake news. São úteis. Impedem que a dor nos desperte e a indignação nos leve a parar esse maquinário. As elites colonizadoras precisam que nossa mente não reconheça que a causa de nossa falta de potência é precisamente a espoliação de nossos territórios. Ao dedicar mais tempo a estas falas tóxicas do que ao resto dos afazeres, nos esquecemos que para que a verdade se sustente é necessário que o relato e o ato ao qual se refere sejam vinculados, que um corrobore o outro.
Mas quem mantém um palácio em pé? O tirano, sua corte ou as pedras que o sustentam? Por que este palácio narrativo não desmorona? Sem territórios, longe da realidade e dos cuidados que tudo o que é vivo exige, nossos relatos geram para nós a ficção de que somos milionários em relatos, que contamos com milhões de súditos e desfrutamos de nossa corte-fantasma, quando na realidade não somos mais do que as pedras que sustentam o tirano e seus acólitos.
Mas por acaso queremos tiranos? Creio que a resposta é muito mais terna e humana. Nossa espécie só é capaz de sobreviver em manada. A dificuldade de acesso aos nossos territórios é tão inegável, a avareza daqueles que nos colonizam gera tanta escassez para milhões de pessoas, que nosso inconsciente se pôs no modo ‘sobrevivência’. Diante de uma realidade cada vez mais distante de nossas mãos, nós, os habitantes com mentalidade do norte global, precisamos nos saber em companhia, porque esta é a única maneira de nos mantermos vivos, e os relatos criam vínculos sem a necessidade aparente de territórios.
Quanto desgosto precisaremos acumular, para abandonar esta fábrica de saciedade? Se a fome e as agressões sexuais são armas de guerra, o ruído midiático e a hipnose gerada pela fábrica de relatos também são. Manipular a realidade com relatos é um ato de violência que não mancha as mãos de quem o comete, nem de quem o repete, ainda que cause dano, gere sofrimento e, inclusive, morte. Trata-se de uma estratégia bruta, antiga, que só é eficaz para aqueles que lucram com o engano. O circo do decadente império romano está, hoje, cheio de relatos.
Aqueles que ganham com a colonização de nossos territórios (natureza e corpos) colonizam nossas mentes e isto gera uma espiral de violência que penetra múltiplas facetas de nossa existência. Assim, proliferam os seres perversos, manipuladores, mentirosos, tóxicos, que substituem o diálogo pelo confronto, precisamente para não dar espaço a essa reflexão que permitiria o reconhecimento da verdade. Estes seres são os que enterram as vozes mais questionadoras, as mais vinculadas aos territórios, sem que as elites colonizadoras precisem manchar as mãos. Pois é isso que procuram. Nossa voracidade faz parte de sua estratégia colonizadora. Potencializada pela instantaneidade e produtividade de nossa cultura, nossa forma – indetenível – de consumir relatos fere mortalmente nosso próprio espírito crítico. Nem sequer nos damos o tempo necessário para discernir os fatos das interpretações; e confundimos gorjeios e trinados.
Como reverter este processo? Em primeiro lugar, assumindo que nossa estrutura mental foi castigada pela cultura colonizadora a que pertencemos. Não existe ninguém absolutamente livre. Admitir que a aceleração e o imediatismo sufocam nosso espírito crítico também é um bom passo. Mas talvez o ato mais decisivo seja ‘dar corpo’ aos fatos dos quais falamos, manchando as mãos, passando frio e calor, correndo riscos, nos deixando afetar por nossos vínculos. Desta maneira fortaleceremos nosso espírito crítico, dizimaremos as fake news e os haters e encheremos de ‘carne’ nossos relatos, ou seja, colocaremos a razão e sua capacidade de transcendência a serviço de nossas mãos realizadoras. Ao descolonizar nossa mente, poderemos recuperar as rédeas de todos os territórios onde a vida se manifesta.
O fato de saber-se colonizado já é um passo, mas não significa que nos afastamos da fábrica. Além do mais, “descolonizar-se” é um compromisso incômodo, pois implica em conviver bem com a dúvida. O verdadeiro espírito crítico tem uma flecha de ponta dupla, se dirige para fora e para dentro, por isso é imprescindível cultivar a grandeza de coração.
[1] No original: acuerpamiento, palavra que vem de “acuerpar” e se refere a “encorpar, dar corpo”, no sentido de fortalecer, apoiar, acompanhar.