Descolonizar o mundo e a vida, uma missão libertadora

 

José Geraldo de Sousa Junior

A Agenda Latino-americana Mundial, pautou para a edição 2024 de seu Livro-Agenda, o tema que dá título a este artigo. Coincidentemente ou não, o fez em seguida à realização, no Vaticano, sob os auspícios da Pontifícia Academia de Ciências Sociais (30 e 31 de março) uma Conferência sobre o Neocolonialismo, da qual participaram especialistas provenientes de diversas partes do mundo, sobretudo juízes e juízas.

Em uma Mensagem, enviada aos participantes, o Papa Francisco condena a exploração e a marginalização dos povos, por motivos econômicos ou ideológicos, e pede desculpas pelos cristãos que, em todos os tempos, contribuíram para a dominação na América e na África. Coincidindo com a súbita enfermidade do Papa, que chegou a ser hospitalizado, a Cúpula foi dirigida pelo Cardeal Peter K. Turkson, prefeito-emérito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral do Vaticano.

            O Papa Francisco vem enfatizando a importância de juízes e juízas, para um mister que contribua para superar desigualdade, conter perdas de direitos e assegurar a dignidade da existência. Num artigo[1], anotei como, de modo muito direto, porque dirigindo-se a juízes e juízas em encontro remoto com juristas das Américas e da África – Primeiro Encontro virtual dos Comitês para os Direitos Sociais da África e da América – ele exortou: “uma sentença justa é uma poesia que repara, redime e nutre”[2].  “Nenhuma sentença pode ser justa, – ele ainda afirmou – se gera mais desigualdade, mais perda de direitos, indignidade ou violência”.

            No encontro de agora, o Papa aponta para a sutileza atual de um neocolonialismo constituído como um crime e um obstáculo à paz[3]. Na reflexão do Pontífice, embora no século XXI não se possa mais falar, tecnicamente, de países "colonizados", do ponto de vista geográfico, nos aspectos econômicos e ideológicos, o colonialismo mudou em suas formas, métodos e justificativas. O que também preocupa o Papa Francisco é o colonialismo ideológico, que tende a uniformizar tudo, sufocando a ligação natural dos povos aos seus valores, desenraizando tradições, história e vínculos religiosos. Esta é uma mentalidade que não tolera diferenças e se concentra apenas no presente e nos direitos individuais, descuidando dos deveres com os mais fracos e frágeis.

Na síntese preparada pelo Dicastério há, na Mensagem de Francisco, a preocupação de que os interesses da ganância promovam a substituição da verdade por justificativas de dominação: “Eis as características do colonialismo contemporâneo. Como se, sublinha o Pontífice, diversos séculos de experiências históricas, sangrentas e desumanas, não tivessem servido para amadurecer uma ideia global de libertação, autodeterminação e solidariedade entre as nações e os seres humanos. Agora, tudo é mais sutil e corre-se o risco de que as verdadeiras causas, que levaram ao colonialismo, sejam substituídas por leituras históricas, que justificam a dominação com presumíveis lacunas ‘naturais’ dos colonizados”.

O evento transcorreu numa atmosfera que traz esclarecimento sobre outros temas próprios do colonialismo. Há poucos dias se noticiou o que se tem chamado de “doutrina da descoberta[4], que se prestou por séculos, apoiada pelo papado, “para justificar as empreitadas colonialistas dos soberanos católicos europeus – mas que foi repudiada pelo magistério da Igreja, e há muito tempo não representa mais o seu pensamento. Isso é afirmado em um documento de dois órgãos do Vaticano (os dicastérios de Cultura e do Desenvolvimento Humano Integral)”.

Com efeito, comentando o evento e seus debates, o juiz Andres Gallardo, presidente do Comitê Pan-Americano de Juízes e Juízes pelos Direitos Sociais e pela doutrina Franciscana na Cimeira sobre Justiça e Descolonização no Vaticano, afirma que “Não há mais espaço para leis injustas, pois para travar leis injustas, aqui estamos os juízes”.

Pude acompanhar, pela transmissão dos painéis[5], importantes participações, entre elas, de convidados pelo Papa Francisco, pela Pontifícia Academia de Ciências Sociais do Vaticano e pelo Comitê Pan-Americano de Juízes para os Direitos Sociais e Doutrina Franciscana, de minha estimada amiga Raquel Yrigoyen Fajardo, diretora do IIDS – Instituto Internacional Derecho y Sociedad, de Lima (Peru). Além de Raquel, outras expressões intelectuais latino-americanas e vou incluir por óbvia afinidade, a participação de Boaventura de Sousa Santos, marcaram posição com seu pensamento crítico decolonial: o Professor Enrique Dussel, Ramón Grosfoguel, Eugenio Zaffaroni, Karina Ochoa, entre outros, incluindo magistrados das Américas e da África. Para Raquel “resta o desafio de uma agenda de justiça descolonizadora, para efetivar os direitos dos povos. Esse é o grande desafio!”.

Entre tais proeminências, me deparei com a minha ex-aluna Ananda Tostes Isoni, juíza do TRT 10ª região, integrante do Capítulo Brasileiro do Comitê Pan-Americano de Juízes e Juízas para os Direitos Sociais e Doutrina Franciscana – Copaju Brasil, ela própria, falando depois deles, com uma belíssima exposição que a coloca, em sua perspectiva franciscana, no chamado então feito pelo Papa Francisco para a atuação judicante: “Vocês, juízes, em cada decisão, em cada sentença, estão diante da feliz oportunidade de fazer poesia: uma poesia que cure as feridas dos pobres, que integre o planeta, que proteja a Mãe Terra e todos os seus descendentes. Uma poesia que repara, redime e nutre. Não renunciem a esta oportunidade. Assumam a graça a que têm direito, com determinação e coragem. Estejam cientes de que tudo o que contribuírem com sua retidão e compromisso é muito importante”.

Em uma intervenção forte e interpelante, Boaventura de Sousa Santos chamou para a compreensão de que o período atualmente vivido não é propriamente de descolonização mas de recolonização, tanto mais que a voz dos que a sofrem não é em geral ouvida no debate. Antes de tudo, ele lembrou, que enquanto os que tem lugar no debate são ainda agentes do processo problemático que os mobiliza, como poderão ser promotores, ao mesmo tempo da formulação de soluções para ele? Não, ele diz em outro lugar, enquanto não se abrir a história, sobretudo a história do presente, decolonizando-a, para tamponar a ferida colonial e lutar para a sua cura[6].

A relatoria e leitura da Declaração Final ficou a cargo de meu dileto amigo o ítalo-argentino Alberto Filippi, investido da antiga proximidade com Jorge Mario Bergoglio, nas tertúlias portenhas. Com a epígrafe Colonialismo, Descolonização e Neocolonialismo: uma Perspectiva de Justiça Social e do Bem Comum, o documento aprovado por aclamação na Casina Pio IV nella Città del Vaticano. O teor da Declaração[7] é uma síntese da rica discussão, unânime em que as perspectivas decolonial e descolonizadora são “a base necessária da cultura jurídico-política para a formação de magistrados e defensores do direito e daqueles que concebem e promovem o acesso à Justiça dos mais débeis e desassistidos”.

 

[1] http://estadodedireito.com.br/justicia-poetica-la-imaginacion-literaria-y-la-vida-publica/

[2] https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-11/papa-francisco-juizes-africa-america-sentencas.html

[3] https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2023-04/papa-francisco-neocolonialismo-mensagem-ciencias-sociais.html

[4] https://www.ihu.unisinos.br/627642-a-doutrina-da-descoberta-repudiada-por-roma

[5] Aqui o link do evento, onde se pode encontrar as apresentações: https://www.youtube.com/watch?v=DEBucsSCajc

[6] Descolonizar: abrindo a história do presente. Boaventura de Sousa Santos. Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Boitempo, 2022; cf. http://estadodedireito.com.br/descolonizar-abrindo-a-historia-do-presente-boaventura-de-sousa-santos/

[7] https://www.youtube.com/live/gt_YQWiwXJg?feature=share&t=35520